"e depois o fernando pessoa morreu em trinta e cinco, senti-me afundado na metafísica, não sabia se havia de protestar por me ter mentido ali vertido como um homem sem profundidade, ou se havia de o abraçar pela maravilha de dizer coisas assim, coisas tão interiores como se fossem de ser vistas. e eu tinha razão. havia uma intimidade entre nós, uma ligação para sempre, que me haveria de colocar um pouco nas mãos daquele homem. como se dominasse algo em mim, o orgulho talvez. esse paradoxal orgulho de me ter dirigido o olhar, de me ter querido num verso seu, e ao mesmo tempo me ter desgraçado, porque a partir de então não pude mais sonhar com ser vago e feliz. a vida tinha sido, e havia comprovadamente de continuar a ser, um rol de violências sobre as quais erguíamos infindáveis noites de insónia. o fernando pessoa havia morrido e o poema ficou para sempre a fazer que éramos amigos, com aquele cumprimento no fim, como regozijando por me ver. uma mentira qualquer, ou não, que em todas as vezes que nos vimos não lhe deu para me chamar ou agradar."
valter hugo mãe, a máquina de fazer espanhóis, Editora Objectiva, Carnaxide: 2010, p. 115.
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