Tuesday, October 12, 2010

RESIGNEMO-NOS À ORDEM DO DESTINO 1



"- Mas, objectei eu a Mme. Delbène, não será o dogma da imortalidade da alma um consolo para os infelizes? Mesmo que seja uma ilusão, não será ela doce, não será agradável? Não será bom para o homem acreditar que poderá sobreviver-se e gozar, no céu, da felicidade que lhe é recusada na terra?
- Na realidade, respondeu a minha amiga, não vejo por que razão, para tranquilizar meia dúzia de imbecis infelizes, há-de valer a pena envenenar milhões de pessoas honestas. Será, aliás, razoável atribuir aos nossos desejos a dimensão da verdade? Tenhamos um pouco mais de coragem, aceitemos a lei geral, resignemo-nos à ordem do destino, cuja lei diz que, à semelhança de todos os homens, também nos regressaremos ao seio da natureza para dela voltarmos a sair sob outras formas. Nada perece, com efeito, no seio dessa mãe do género humano. Os elementos que nos compõem reagrupar-se-ão a breve trecho sob outras combinações. Um loureiro perpétuo cresce no túmulo de Virgílio. Dizei-me então, néscios deístas, não será esta gloriosa transmigração tão sedutora quanto a vossa alternativa entre o inferno e o paraíso? A verdade é que, se é certo que este último é reconfortante, não podeis negar que o primeiro é tenebroso. E não estais sempre a afirmar, cristãos imbecis, que, para alcançar a salvação, é preciso obter a graça que o vosso Deus só a muito poucos concede? Raciocínios muito consoladores, não há dúvida. E não será infinitamente preferível ser aniquilado do que arder por toda a eternidade? Quem ousará, pois, de acordo com essas ideias, negar que a teoria que nos livra desses tremores é mil vezes mais agradável que a incerteza em que nos deixa a aceitação de um Deus que, dono e senhor das graças que dispensa, só as concede aos seus favoritos e permite que todos os outros se candidatem ao suplício eterno? Só o entusiasmo ou a loucura podem ser responsáveis por preferir um sistema evidente, que tranquiliza, a conjecturas improváveis, que trazem o desespero.
- Mas o que será de mim?, interpelo Mme. Delbène. Essa falta de clareza assusta-me, esse aniquilamento eterno apavora-me.
- E que eras tu, podes explicar-me, antes de nascer?, respondeu-me essa mulher extraordinariamente engenhosa. Um conjunto de partes repletas de matéria desprovida de organização, não tendo ainda recebido qualquer forma ou tendo recebido uma forma de que não consegues lembrar-te. Pois bem: voltarás a ser o mesmo conjunto de partes de matéria, prontas a organizar novos seres, assim que as leis da natureza achem conveniente. Experimentavas prazer? Não. Sofrias? Não. É pois esse um estado que não é penoso e qual é o ser que não consentiria sacrificar todos os seus prazeres à certeza de nunca experimentar sofrimento? Que seria ele então se conseguisse concluir esse acordo? Um ser inerte, sem movimento. E que será ele depois de morrer? Exactamente a mesma coisa. De que serve, pois, afligirmo-nos, já que a lei da natureza nos condena, sem qualquer dúvida, ao mesmo estado que aceitaríamos de bom grado se a decisão dependesse de nós? Pois é, Juliette: será a certeza de não existir para sempre mais desesperante que a certeza de não ter sempre existido? Vá lá, vá lá, meu anjo, tranquiliza-te: o terror de deixar de existir só é um mal real para a imaginação criadora do absurdo dogma de uma outra vida."


Marquês de Sade, História de Juliette ou as prosperidades do vício, trad. Rui Santana Brito, Lisboa: Guerra e Paz, 2007, pp. 40-41.

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