Wednesday, February 29, 2012

VIDA FÚTIL


"Vida Fútil - P'lo que acabas de dizer,
                   Facilmente se adivinha,
                   Que isto, que me faz mover,
                   É a vida, mas não é minha.
                   Mas isso pode lá ser !?...

Morte - É essa a verdade nua.
             E, se achas a vida bela,
             É mesmo por não ser tua,
             Pelo contrário, és tu dela;
             Tu cais, ela continua.

Vida Fútil (em tom de desafio)
            E se não sou eu também
            Quem à vida dá vigos,
            Diz-me, pois, quem a mantém?

Morte - São o prazer e a dor;
             Começam quando começa
             A vida a dar-se o sonhar;
             Quando uma e outro acabar,
             A vida já não interessa."


António Aleixo, "Auto da Vida e da Morte", in Este Livro que Vos Deixo, vol. I, 13ª ed., Lisboa: Editorial Notícias, 1998, p.115.

EROSÃO


"Tinha tanto receio de aborrecer as pessoas que evitava contradizê-las, e assim cada uma adoptava o Renoir da sua preferência, na certeza de que o Renoir mais íntimo considerava que tal querela era conversa vã. Porém, um dia, depois de ter suportado uma demonstração, demasiado longa para o seu gosto, da inexistência de Deus, disse ao orador: «Acho que, se tivesse de escolher entre o senhor e os padres, escolhia os padres.» O outro protestou, pensando que o meu pai estava a brincar. Mas Renoir continuou: «Ao menos os padres têm uma vestimenta própria. É mais honesto! Assim, quando vejo um, fujo. Se o senhor quer ser pregador, também devia vestir um hábito. Assim já ficávamos todos prevenidos!»"

Jean Renoir, Pierre-Auguste Renoir, meu pai, trad. Francisco Agarez, Lisboa: Bizâncio Editora, 2005, p. 126.

Monday, February 27, 2012

ARCAICO


"Um dia fomos jantar a casa da Natália Correia. Ela tinha uma criada muito inteligente e quando chegámos, a Natália chamou-a e disse-lhe: "Olha para este senhor e diz-nos o que achas dele.» A resposta dela foi sem hesitação: «Arcaico».
- Sabe que quando cheguei a casa fui ver qual era bem a definição de arcaico. Fiquei pasmada, porque se se tivesse que definir o Mestre Almada só com uma palavra, só podia ser arcaico, que quer dizer um regresso erudito às fontes antigas. Um regresso à infância, à simplicidade, no fundo à tal ingenuidade do Mestre Almada.
Eu não sei como é que ela pôde dizer arcaico!"
Maria José de Almada Negreiros, Conversas com Sarah Affonso, 3ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993, p. 86.

Sunday, February 26, 2012

EUCARISTIA


"O mago partiu pão e comeu.
«Contra a morte não preciso de nenhuma arma, porque não há morte. Mas há uma coisa: o medo da morte. Este pode curar-se, contra ele há uma arma a usar. É coisa de uma hora, vencer o medo. Mas Li Tai Pe não quer ir. Li ama a morte, ama o medo da morte, a sua melancolia, a sua miséria, só o medo lhe ensinou tudo aquilo que sabe fazer, e tudo aquilo por que o amamos.»"
Hermann Hesse, O último verão de Klingsor, trad. Patrícia Lara, Lisboa: Guimarães Editores, 1999, p. 70.

Saturday, February 25, 2012

ASSISTENTE


"A floresta virgem escurecia maternalmente, a lama do mundo primordial exalava um odor a decadência e procriação, cobras e crocodilos rastejavam, a torrente de imagens transbordava sem limites.
"Afinal vou voltar a pintar", disse Klingsor, "amanhã mesmo. Mas não estas casas e pessoas e espaços. Vou pintar crocodilos e estrelas do mar, dragões e cobras púrpuras, e tudo o que está em devir, tudo o que está em mutação, cheio de desejo de ser humano, cheio de desejo de ser estrela, cheio de nascimento, cheio de declínio, cheio de Deus e de Morte."
Hermann Hesse, O último verão de Klingsor, trad. Patrícia Lara, Lisboa: Guimarães Editores, 1999, p. 52.

Thursday, February 23, 2012

O MAL


"- O mal existe - disse Précieuse. Tinha um véu negro em volta do pescoço.
- Os milagres também existem - disse Baltar. - É por isso que o mal pode ser levado para longe e o seu mistério espalhado no universo como uma poeira inofensiva.
- Mas, às vezes, o mal tem que ser praticado.
- Deus nos livre de começarmos por ser bons. Ficamos à mercê do mal. Só os maus o podem combater."
Agustina Bessa-Luís, As Terras do Risco, 2ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1999, p. 231.

Wednesday, February 22, 2012

QUARESMA NUMBER ONE



"Mas eu sou um texto vivo; valho mais que um folheto, que uma elucubração passageira; esse volume dentro de um ano será uma folha seca esquecida; dentro de dois anos, um montão sujo de papel e, moralmente, pó; na memória dos leitores que tiver nada... e eu ainda serei eu: um jovem, velho para a metafísica, mas vistoso, novo, sempre novo para o amor, que é um doce engano compatível com todos os nirvanas do mundo e com todas as obras pias.
A literatura era uma coisa estúpida; porque se fosse má era estúpida por si, e se fosse boa era néscio e inútil entregá-la ao vulgo que não pode compreendê-la. Aquela senhora, bonita e tudo, com os olhos pensadores e as sobrancelhas carregadas de ideias nobres e de poesia, seria, é claro, como são as outras mulheres no fundo; inteligente só no rosto, não na verdade, não por dentro. Se o livro fosse bom, caso pouco provável, não o compreenderia, e se fosse mau, para quê lê-lo?"


Leopoldo Alas (Clarín), "Rivais", in O Senhor e O Resto São Histórias, trad. José Colaço Barreiros, Lisboa: Teorema, s.d., p. 76.

Thursday, February 16, 2012

ONDE HABITAM OS FANTASMAS


"Num tempo de casas fechadas, quando
o calor desce do céu baixo e empurra
as portadas das janelas com o ruído
seco de invisíveis detonações, a
tua voz monótona confunde-se com uma
súbita alteração no mecanismo do relógio:
rodas que saltaram dos eixos, ponteiros
arranhando o mostrador, e o pêndulo
às voltas dentro da caixa. No entanto,
quem dorme a dois passos de tudo isto
nem imagina que o pesadelo passou para
a realidade. O sonho tem a consistência
da vida; e a voz que se ouve obedece
a uma lógica que impede o despertar - mesmo
quando batem à porta, com insistência,
como se a casa não estivesse desabitada."
Nuno Júdice, Meditação sobre Ruínas, 3ª ed., Lisboa: Quetzal Editores, 1999, p. 74.

Wednesday, February 15, 2012

ENCHER INTEIRAMENTE O MUNDO


"Não roubes
à tua pura solidão
teu ser calado e firme.
Evita o necessário
explicar-te a ti mesmo
contra quase toda a gente.
Tu sozinho encherás
inteiramente o mundo."

Juan Ramón Jimenez, Antologia Poética, trad. José Bento, Lisboa: Relógio D'Água, 1992, p. 96.

Tuesday, February 14, 2012

DIGNIDADE FEMININA


" - O que é uma mulher? - disse Baltar, vendo que Martin tinha interrompido as leituras que fazia e se sentara ao sol no pátio dos monges. - Uma mulher é bom - continuou ele. - Picasso, quando estava a morrer, segredou isto ao médico. Ou o médico quis gozar um pouco de glória, como nós gozamos um sol de Inverno neste lugar. "Uma mulher é bom." Mas o que é uma mulher? Confesso que as vejo sempre como uma coisa de pouco valor, que nunca nos serve bastante e povoa a nossa solidão e às vezes a degrada. Não sei de pior companhia do que a duma mulher. Faz barulho com a loiça, bate com as portas, arrasta as cadeiras, queixa-se o dia inteiro, encontra todas as maneiras de ser desagradável, tem um cheiro horrível às vezes, e quer que a gente lhe diga que a ama. Quer ser notada em casa e na rua, usa roupas impróprias no amor e no trabalho. Só aqueles brincos enormes lhe dão um ar arrepiante. Parecem instrumentos de tortura. Se me beijassem, eu tinha de proteger a cara e os olhos, usar um elmo, não sei bem. São tão ignorantes! Mesmo quando fazem o liceu e um curso superior, ficam ignorantes. Não são capazes de ideologia nem de utopia nenhuma. Quanto a construírem o mundo, limitam-se a limpar-lhe o pó e a fazer constar que isso é uma regra de oiro. Eu não digo que não tenham jeito de governar; mas o que eu digo é que se enchem de complexos de culpa e fazem do governo uma atitude e não um ofício. Não sei como as hei-de tratar. Já não lhes podemos bater nem fazer-lhes filhos; nem pedir-lhes que nos façam a cama e a sopa. Respondem: "Basta de autoritarismo militar, de faxina, de continências, de galões." São mais brutais e menos guerreiras. Querem convencer e não agradar. Como é possível? Apetece-me meter-me num canto e não sair de lá. O mundo tornou-se limpo demais para o meu gosto. É para esquecer."
Agustina Bessa-Luís, As Terras do Risco, 2ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1999, p. 87.

Monday, February 13, 2012

THIS IS NOT A RAVEN


"Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,
"Doubtless," said I, "what it utters is its only stock and store,
Caught from some unhappy masters whom unmerciful Disaster
Followed fast and followed faster till his songs one burden bore -
Till the dirges of his Hope that melancholy burden bore
                                                                   Of 'Never-nevermore."

Edgar Allan Poe, O Corvo, trad. Fernando Pessoa e Machado de Assis, Lisboa: Relógio D'Água, 2009, p. 58.

Thursday, February 9, 2012

MODERNIDADE


"De aí o conceito moderníssimo da Arte que confunde vitalizar com deformar."


Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Lisboa: Ed. Ática, s.d., p. 24.

Wednesday, February 8, 2012

TAN RAROS FEITOS VENSE


"Pasan naquesta vida
cousiñas tan estrañas,
tan raros feitos vense
neste mundo de trampa,
tantos milagres vellos,
tan novas insinanzas,
e tan revoltos allos
con nome de ensaladas,
que non che digo nada...
Pero vaia!"

Rosalía de Castro, Cantares Gallegos, ed. Mauro Armiño, 5ª ed., Madrid: Espasa Calpe, 2009, p. 219.

Tuesday, February 7, 2012

TENDÊNCIAS MORTUÁRIAS

(O Conde D. Raimundo, catedral de Santiago de Compostela)

"22. Ao escrevermos, publicarmos, produzimos obras que, de uma forma ou outra, se prolongam para lá do nosso tempo, mesmo que só como matéria inerte, lastro de esquecimento. Somos nós, assim, os principais cultores, responsáveis, por uma literatura (e uma cultura) da e para a morte, seduzida por uma ideia póstuma de futuro.
(Apócrifo. Os mortos-vivos não necessitam de ser enterrados, só os vivos-mortos precisam de alguém que os sepulte [de uma tendência «mortuária» na cultura e na poesia portuguesas])."
  Fernando Guerreiro, Teoria do Fantasma, Lisboa: Mariposa Azual, 2011, pp. 14-15.

Sunday, February 5, 2012

DO OUTRO LADO DOS SONHOS


"O carácter de aparição do fantasma -
era assim que começavam todos
os manuscritos em que procurava
dar corpo pela letra ao que, de
outro modo, talvez não tivesse
consistência suficiente para se
impor à tessitura fina dos sentidos.
Tudo se passava como se pela palavra
se instalasse um dispositivo
de produção directa das imagens
independente de qualquer reflexão
sobre o carácter verosímil do sentido.
Bastava estar escrito para de imediato
se impor como realidade. E era
isso que procurara atingir na poesia:
fazer coincidir o real com o poder
evocatório - vindo de detrás, do
outro lado dos sonhos - das imagens.
Retirar todos os panejamentos
à beleza e depois profanar,
fazer amor com esse corpo
até que ele se reanimasse
e erguesse, arrastando e
espojando-se sobre o túmulo.
Ah, então, talvez compreendesse
o que resta de real quando
a visão do fantasma é tudo
o que nos prende,
pela fímbria dos dedos,
à borda crua do precipício."
Fernando Guerreiro, Teoria do Fantasma, Lisboa: Mariposa Azual, 2011, pp. 42-43.

Saturday, February 4, 2012

CORPOS GLORIOSOS




"40. Ligando o poder da representação à possibilidade de re/evocação de um objecto perdido, Louis Marin sublinha que qualquer «ficção» (representação) se funda como uma ficção da origem, elaborada a partir de (sobre) uma «perda original» que lhe permite, afinal, a repetição do seu discurso. Ficção do «fantasma»: fantasma das origens que faz da literatura fantástica o terreno consagrado (reserva de catacumbas) de onde se desprende o corpo glorioso de qualquer discurso."

Fernando Guerreiro, Teoria do Fantasma, Lisboa: Mariposa Azual, 2011, p. 21.

Friday, February 3, 2012

PROFETAS E ABOMINÁVEL


"Eu às vezes digo que os profetas são gente dura de coração. Cristo não os amou; sabia que o quadro de terror que eles pregavam correspondia a uma impotência para se conhecerem em paz. Eram canas agitadas pelo vento; a terra parecia-lhes abominável, mas há só uma coisa abominável - é aquela que sujeita o espírito da terra pelo terror, e exige frutos ao escravo, bondade ao tímido e generosidade ao débil. Quando se repercute do pânico sem haver mais do que histeria de opção e um bom pretexto para seguir a imaginação e abandonar a norma, é porque a sociedade, de qualquer maneira, está debilitada. O pânico é uma antecipação da consciência. Acredita-se em videntes quando o conflito já se verificou e já participámos no seu processo. Uma Mademoiselle Lenormand não teria êxito se não correspondesse a uma exibição da fraude colectiva que depunha a ideia para emancipar a credulidade. E o cometa Halley não faria estremecer a França medieva, se nos espíritos não estivesse evidente o fim do império de Carlos Magno. Nada é um presságio se não é uma vontade. Nós, que devemos a vida à ruína duma estrela, à queda dum fragmento fixado a um sistema solar, porque receamos perdê-la na modesta perseverança dessa memória? Afinal, só restam 36 sociedades a serem inventadas. "A desgraça é variada" - diz Poe - e vem quase sempre só."
Agustina Bessa-Luís, Alegria do Mundo - I, Lisboa: Guimarães Editores, 1996, p. 243.

Thursday, February 2, 2012

A VIOLÊNCIA


"Havia, pois, Felício empenhado alguns passos nesta
diligência, quando topou com um Jardim murado, que servia
de retiro a hua casa de prazer, de muitas que havia naquele
sítio, e imaginando que de dentro saía aquela voz que tanto
o afeiçoava, empenhado naquela curiosidade Política,
ajudado dos ramos que hua árvore do Jardim reclinava
sobre o muro, denodadamente subiu acima, e ao tempo que
por entre as ramas bruxuleava o sítio, por ver se acaso
lhe saía verdadeiro seu cuidado, em lugar do que buscava
topou com os olhos em hua sepultura, que estava aberta em
hua parte do Jardim, e na outra viu um Cavaleiro ancião,
que, venerável na presença e severo no vulto, tinha hua
adaga na mão direita e na esquerda os cabelos de hua
mulher, que ajoelhada a seus pés e debulhada em lágrimas,
parece que queria atalhar com lástimas aquele sacrifício."

António Barbosa Bacelar, Desafio Venturoso, ed. Ana Hatherly, Lisboa: Assírio & Alvim, 1991, vrs. 821-835, p. 50.

Wednesday, February 1, 2012

O RITUAL DO SOL


"As praias lentamente se envolvem na desordem dos tempos. Agora, ainda as procura a multidão ociosa, as tribos garridas, submissas ao ritual da água e do sol. Amanhã, as praias serão talvez reservas do exército ou concessões dos mercados abastecedores. Há-de ser crime pescar caranguejo com uma pequena rede de borboletas; as algas serão produto vital, e nunca mais nadaremos num campo de alface do mar, rompendo novelos de fitas, de franjas, de espuma e de sal. E aquelas senhoras banhistas, recheadas de celulite, também não andarão mais reflectidas no espelho de areia e água. Os excêntricos não terão lugar na solidão, nem os anacoretas hão-de ter desertos para habitar. E talvez não; talvez a terra se despovoe de repente de tanta gente dinâmica e transformadora, e fique outra vez o jardim das delícias, com a fonte da juventude jorrando sob o coice de Pégaso. Os deuses talvez voltem. Ceres dormindo nos trigais, Minerva dos olhos verdes, Apolo com a quadriga de oiro percorrendo os espaços. De certa maneira, quase o contrário da maneira pagã, eles talvez voltem. Reconhecemo-los quando a ceara, o mar e o sol tiverem outra vez direito à sua criação própria, sem espectadores, apenas com devotos."
Agustina Bessa-Luís, Alegria do Mundo - I, Lisboa: Guimarães Editores, 1996, p. 134.