Friday, August 31, 2012

AS LIMITAÇÕES


"Acontecia com a jovem Maria Pascoal, submersa numa espécie de oceano profundo, deslocar-se nessa dimensão que pertence aos peixes antes do aparecimento do homem na terra. Um entendimento por meio de ondas sonoras, nada que a palavra possa substituir. "E criou Deus os grandes monstros das águas." Aqueles e outros sobre os quais foi destinado o homem dominar. Mas ele não teve poder absoluto sobre os abismos, porque lá não vigorava lei alguma. Eram as trevas, sem noite e dia a separá-las; as trevas unicamente. Os monstros das águas que não vieram à superficie vivem lá, eternamente. É com eles que o homem não tem pacto algum, e só a espécie rara dos criadores, monstros como eles, conseguem ir ao fundo das águas e reconhecer o contorno desses enormes corpos que fazem ferver as águas. Não é pelo efeito das fases da Lua que as águas fervem, mas pelo respirar dos monstros das águas, que Deus criou no quinto dia."
 
Agustina Bessa-Luís, Um Cão que Sonha, 3ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1998, pp. 117-118.  

Thursday, August 30, 2012

OLHAR PARA CIMA


"Se cada qual trouxesse sobre a frente
Dos ocultos pesares um traslado,
Talvez que o que parece afortunado
Se convertesse então em descontente.

Não: ninguém quer mostrar à demais gente
Que traz dentro do peito algum cuidado;
Por isso finge um rosto serenado,
Ao mesmo tempo que os seus males sente.

Eu só sinto um tão bárbaro tormento,
Que tanto me angustia, e oprime tanto,
Que já para o calar não tenho alento;

E dou a conhecer com novo espanto
O meu mais escondido sentimento
Nas públicas correntes do meu pranto."
in Poesias do Abade de Jazente, org. Miguel Tamen, Lisboa: Editorial Comunicação, 1983, p.  54.

Wednesday, August 29, 2012

PRÉSTIMO


" - Padre - disse-lhe Zadig -, que vem a ser tudo isto? Vós não vos pareceis com os outros homens: roubais uma bacia de oiro guarnecida de pedras preciosas a um senhor que nos recebe magnificamente e dai-la a um avaro que nos trata com indignidade.
- Meu filho - respondeu o velho -, aquele homem magnífico que só recebe os estranhos por vaidade, e para que admirem as suas riquezas, tornar-se-á assim mais prudente; o avaro aprenderá a exercer a hospitalidade: não vos admireis de coisa alguma e segui-me."
Voltaire, Zadig ou o destino - História Oriental, trad. João Gaspar Simões, Lisboa: Editorial Verbo, 1972, p. 89.

Tuesday, August 28, 2012

O CARNAVAL DOS ANIMAIS


"Zadig quis consolar-se com a filosofia e a amizade dos que o fado lhe causara. Tinha ele, nos arrabaldes da Babilónia, uma casa decorada com gosto, onde reunia todas as artes e prazeres dignos de um homem de bem. Pela manhã a sua biblioteca estava aberta a todos os sábios; à tarde tinha mesa posta para todos os bons convivas, mas não tardou que verificasse quão perigosos são os sábios: travou-se grande disputa acerca de uma lei de Zoroastro que proibia que se comesse carne de grifo.
- Para que proibir que se coma carne de grifo - diziam uns - se esse animal não existe?
- Mas tem de existir - diziam outros -, visto Zoroastro não querer que o comam.
Zadig quis harmonizá-los, dizendo-lhes:
- Se existem grifos, não comamos da sua carne; se não existem, ainda com mais forte razão não o devemos fazer, e assim obedeceremos todos a Zoroastro.
Um sábio que escrevera treze volumes sobre as propriedades do grifo, e que ainda por cima era grande teurgista, tratou logo de acusar Zadig perante um arquimago chamado yebor, o mais asno dos caldeus, e por isso mesmo o mais fanático. Este homem era muito capaz de mandar empalar Zadig para maior glória do Sol, depois do que, com mais satisfação ainda, teria recitado o breviário de Zoroastro. O amigo Cador (vale mais um amigo do que cem padres) foi ter com o velho Yebor e disse-lhe:
- Vivam o sol e os grifos! Não caia em castigar Zadig: é um santo; tem grifos na capoeira e nunca come deles; aquele que o acusa é herético: ousa sustentar que os coelhos têm a pata rachada e não são imundos.
- Pois bem!  - redarguiu Yebor, abanando a cabeça calva. - É preciso empalar Zadig, por mal pensar dos grifos e o herético por mal ter falado dos coelhos.
Cador apaziguou a situação graças a uma dama de honor a quem fizera um filho e que gozava de grande crédito no colégio dos magos. Ninguém foi empalado, o que fez com que não poucos doutores falassem e pressagiassem a decadência na Babilónia. Zadig exclamou:
 - Onde estará a felicidade? Tudo me persegue neste Mundo, inclusivamente os seres que não existem.
Amaldiçoou os sábios e daí para o futuro só quis viver no meio de alegres convivas."
 
Voltaire, Zadig ou o destino - História Oriental, trad. João Gaspar Simões, Lisboa: Editorial Verbo, 1972, pp. 21-22.

Monday, August 27, 2012

A NECESSIDADE


"Pascoala - Tens muita, muita razão;
Que esses fidalgos baratos
Costumam ser mais ingratos
Do que o próprio gorrião.
No Inverno, quando o frio
Mantém os campos gelados,
Eles descem dos telhados
E dizem-nos: « Tio...Tio...»
Até chegam a comer
As migalhinhas da mesa.
Mas logo que o frio cessa
E o campo vai florescer,
Já não dizem «tio, tio»,
Do benefício olvidados;
Dizem «Fastio... Fastio...»,
Saltando pelos telhados.
Tais e quais os homens são;
Quando a mulher lhes convém,
É: «Minha vida, meu bem,
Minh'alma, meu coração!»
Mas, depois daqueles dias
Em que nos falam a sós,
Quando se fartam de nós
Nem sequer nos chamam tias.

Lourença - Não te fies em nenhum.

Pascoala - Eu digo o mesmo, Lourença."
  Lope de Vega, Fuenteovejuna, trad. António Lopes Ribeiro, Lisboa: Editorial Verbo, 1972, Act. I, C. III, p. 21.

Sunday, August 26, 2012

OS AVISOS


"Dizia Martins Sarmento que estamos mais perto das orcas, castros e citânias do que se imagina. Pelo menos, não fica longe o bicho que habitava essas construções. A nossa sumptuária, os nossos quadros, o nosso aparelho de rádio, os nossos automóveis, a nossa própria poesia e ciência são uma espuma irisada e fátua ao lado do fundamental da nossa natureza e da essência das coisas. O fundamental é o instinto, a garra da vida que nos subjuga e nos obriga aos mesmos actos de confiança ou carantonhas de ódio, como então e como hoje. O coração do homem, se espraiarmos olhos ao que se passa pelos povos, não se destemperou em sua fereza e agressividade. No dia em que deixar de ser assim, tornando-se os homens anjos, iguais em direitos e deveres, verdadeiramente fraternos, fartinhos e contentes, e que por cima deles não caiam bombas dos Liberattor, nesse dia acabou-se o mundo."
  Aquilino Ribeiro, Geografia Sentimental, Lisboa: Bertrand Editora, 2008, p. 226.

Saturday, August 25, 2012

VANITAS VANITATUM


"Olhes para onde olhares, no mundo tudo é vão!
O que hoje este constrói, um outro arrasará;
Onde hoje se erguem cidades, um prado nascerá
E nele um pastorinho e o gado saltarão.

O que hoje cresce vigoroso, breve será pisado,
O que hoje tem vida e força será cinza letal;
Aqui nada é eterno, nem mármore nem metal,
Hoje a sorte sorri-te, amanhã cais prostrado.

Desfaz-se como um sonho a glória de altos feitos.
Vence o jogo do tempo, e os homens imperfeitos.
Ah, como é nada tudo o que quer valer mais,

Medíocre e mesquinho, sombra, vento e poeira,
Como uma flor do campo a que se perde a esteira!
Não se mostra o eterno aos olhos dos mortais!"
  Andreas Gryphius, in O Cardo e a Rosa - Poesia do Barroco Alemão, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 63.

Friday, August 24, 2012

TUDO O TEMPO DESTRÓI



"Na muda solidão deste aposento
Não tenho mais que a triste companhia,
Que de noite me faz, me faz de dia
O constante teor do meu tormento.

Sempre me assiste, e nunca um só momento
Deste mísero leito se desvia:
E parece que a sua rebeldia
Toma na duração um novo aumento.

Tudo o tempo destrói: unicamente
Da minha mágoa a bárbara impiedade
É sempre a mesma; e nunca se desmente,

Eu bem sei que no Céu não há crueldade;
Mas comigo parece que inclemente
Me faz penar por uma eternidade."
  in Poesias do Abade de Jazente, org. Miguel Tamen, Lisboa: Editorial Comunicação, 1983, p. 88.

Monday, August 20, 2012

O FUTURO O PRESENTE




"Junto à outra plataforma os deuses ainda estão vivos. Conversam. Olham para o mundo impávidos ao tempo, usufruindo a medida sábia de suas inquietações. Avanço mais um passo. Sou empurrado, atravesso séculos na companhia de um símbolo de verdade que se trespassa de mim para mim. Alegro-me com a vida, entristeço-me com a rotineirice bélica, capacidade de destruição e tragédia - ao mesmo tempo que é essa mesma destruição do homem que lhe dá incentivos de grandeza. Os despojos pertencem aos artistas - a Homero, a Picasso. E no perfurar longo da Odisseia ergue-se em cortina de fundo toda a Guernica; melhor ainda, a destruição de Tróia feita a palmo ao longo da Ilíada. Destroços, relíquias, pedras atentas ao futuro, por toda a banda uma gama invisível de sentimentos que se exala da imaginação, existência donde o homem foi completo. Herança suculenta de quem nunca baqueou à mensagem, não hesitou no caminho de ser ele um ser definido à medida do seu próprio defeito. A luta é para afirmar aos deuses que eles tratavam com homens, com seres que na sua geometria de entendimento se aproximavam da divindade, alheios a qualquer favor. A imploração era o Mito, o Oráculo de quem os encaminhava. O futuro a Deus, o presente aos homens. Aqui a verdade sem medo que nos legaram. O testamento de Sócrates, o final do seu depoimento frente aos juízes, antes da condenação, é a resposta mais genial aos que o acusavam de perverter a juventude de Atenas «agora partimos - eu para morrer, e vós para viver. O que é melhor, só Deus sabe»."


 Ruben A., Um Adeus aos Deuses, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 171.

BAILADO DIURNO


"O dia azul tenta os fantasmas. A humanidade está atrasada. Insisto no amor. Vejoo a iluminar de presságio as figuras impunemente sacrificadas. Hoje a humanidade não chega a tempo. Os Gregos só queriam conversas em que o homem fosse Homem, despido do sensível lírico que os levava aos deuses. As contas a ajustar, eram todas, cá na terra. Compreendiam-se na tragédia, misteriavam o amor."


Ruben A., Um Adeus aos Deuses, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 170.

Thursday, August 16, 2012

NO PRIMEIRO ANIVERSÁRIO


"MORTE - Pelo meu poder prometo que o teu pai se lembrará de ti e te amará como dantes; e, quando te vir liberto das garras da morte, doce será o seu sono à noite.

NACHIKETAS - No céu não há temor: velhice e morte não há lá. Os bons, tendo ultrapassado ambas, regozijam-se no céu, para além da fome e da sede e da dor.
E todos os que estão no céu alcançam a imortalidade. Tu conheces, ó Morte, o fogo sagrado que conduz ao céu. Explica-mo, pois tenho a fé. Que seja esta a minha segunda dádiva."

«Katha», 1ª parte, in Os Upanishades, trad. ing. Inês Busse, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 24.

Monday, August 13, 2012

A ARTE DE VIVER HOJE



"Ser outro, parecer diferente,
Não falar com outra gente,
Louvar tudo, tudo aceitar,
Mentir sempre e bem ficar,
A todo o vento dar pano,
Servir bons, maus, mano a mano,
Fazer tudo, tudo inventar
Com vista a sempre ganhar:
Quem domina esta arte,
Na política hoje tem sorte."


Friedrich von Logau, in O Cardo e a Rosa - Poesia do Barroco Alemão, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 29.

A ILHA DESCONHECIDA 5




"Só uma coisa enche o mundo e fala cada vez mais alto: o ruído das águas, a voz das fontes desabando em jorro, a voz das fontes pequenas caindo em fio, todas as vozes juntas, mas que eu distingo uma a uma, desde a voz do regato que se quebra nos seixos, desde a queda no açude, até ao referver da água em cachão, e que forma uma toada que refresca e encanta a noite solitária nas Furnas."


Raul Brandão, As Ilhas Desconhecidas, Lisboa: Quetzal, 2011, p. 161.

Thursday, August 9, 2012

A ILHA DESCONHECIDA 4



"Calor, não sei que atmosfera magnética, um Inverno em que chove sempre, arrastando o húmus das montanhas e misturando-o aos elementos químicos que fertilizam o solo, fazem que dentro deste circo majestoso a vida dos vegetais seja prodigiosa."


Raul Brandão, As Ilhas Desconhecidas, Lisboa: Quetzal, 2011, p. 155.

A ILHA DESCONHECIDA 3



"Há aqui, sobre tudo, um tom que eu quero notar, porque nunca o vi assim em parte alguma: o cinzento graduado até ao infinito, o cinzento destes dias de sol e névoa misturados, que só pertence aos Açores, onde a terra toma todas as nuances do cinzento, desde o cinzento-roxo ao cinzento cor de chumbo, com cinzentos-claros mais afastados. Cinzento composto de névoa e de sol, que paira sobre a larga paisagem humedecida. Cinzento mais próximo que se pega às árvores e que varia constantemente de cor, desde a cor pérola ao laivo quase doirado, conforme as distâncias, a aragem, as nuvens que correm e se afastam, transformando a todas as horas o quadro e fazendo da planície uma larga cena movimentada onde estão sempre a aparecer novos motivos de decoração."


Raul Brandão, As Ilhas Desconhecidas, Lisboa: Quetzal, 2011, p. 152.

Monday, August 6, 2012

A ILHA DESCONHECIDA 2


"O carácter da paisagem é delicado e oculto. Embora a gente veja o campanário e as casas minúsculas no fundo da enorme cratera, duvida, e chega a supor que a vara dum mágico fez parar o tempo, e aquilo se conserva encantado entre montes desmedidos e brutos que o guardam prisioneiro. O tempo passa, os homens passam; só ali tudo está suspenso, na atitude fixa no momento do prodígio. Na solidão mágica não se ouve cantar um pássaro, a água não bole, as flores não bolem. Tudo se mostra na amplidão da cratera aberta para o céu e num grande silêncio estarrecido. Tão pouca tinta! Um quadro feito de emoção; um quadro em que o verde não chega a ser verde, em que o azul é névoa, e um sopro o pó roxo suspenso no ar, puro hálito da paisagem arfando. Três riscos muito leves para fixar o encanto, como se fosse possível, só com sentimento e quase nada de cor, fazer uma obra-prima. Reparo que há efectivamente uns carreiros perdidos por entre os montes para descer lá a baixo. Mas eu não me atrevo! tenho medo de que ao aproximar-me a visão se desvaneça no ar!..."
Raul Brandão, As Ilhas Desconhecidas, Lisboa: Quetzal, 2011, p. 146.

Sunday, August 5, 2012

A ILHA DESCONHECIDA 1


"Conservo dos jardins da cidade a impressão dum calor abafado, mornaço, duma sombra fechada, dum silêncio religioso e de um passarinho a cantar... Esta solidão com árvores abandonadas (eu ando sempre na ponta dos pés dentro dos grandes jardins, porque comunica logo comigo uma alma estranha ali encantada e presente) fixou-se-me para o resto da vida. As casas são sempre as mesmas casas, os homens os mesmos homens de toda a parte. Os jardins não. Nem os jardins nem o convento da Esperança, de que também não esqueço mais a torre enorme e maciça, construída para a eternidade, e as janelas tão gradeadas que metem medo. Mais forte, mais pesado que uma prisão, oprime o peito e tira o ar. Esta impressão talvez a sentisse Antero, porque foi aqui, num banco encostado à muralha, que, depois de olhar para todos os lados sem poder fugir, se libertou da vida."
Raul Brandão, As Ilhas Desconhecidas, Lisboa: Quetzal, 2011, p. 144.

Wednesday, August 1, 2012

A ILHA DESCONHECIDA - PRÓLOGO


"Uma hora depois distingo perfeitamente o cone de bronze truncado, com escorrências de verdete no alto. Não se vê uma árvore naquele enorme pedregulho batido pelas vagas. É com apreensão que desembarco no sítio mais pobre e mais isolado do mundo."
  Raul Brandão, As Ilhas Desconhecidas, Lisboa: Quetzal, 2011, p. 27.

PARA A MEMÓRIA DE GORE VIDAL


"Com estas palavras ferveu-me o sangue: - Não, não sou Alexandre. Alexandre morreu. Sou Juliano. E estou quase a morrer neste maldito lugar...
- Não. Não! Os deuses...
- ... enganaram-nos! Os deuses riem-se de nós! Elevam-nos por desporto e derrubam-nos logo a seguir. Não há mais gratidão no céu do que na terra."
Gore Vidal, Juliano, trad. Carlos Leite, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990, p. 405.