Wednesday, April 30, 2014

PARA A. OU DA FELICIDADE



"Milady, é perigoso contemplá-la
Quando passa aromática e normal, 
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal. 

Sem que nisso a desgoste ou desenfade, 
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas, 
Eu vejo-a, com a tal solenidade, 
Ir impondo toilettes complicadas!... 

Em si tudo me atrai como um tesouro:
O seu ar pensativo e senhoril, 
A sua voz que tem um timbre de oiro, 
E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte, 
Como a Moda supérflua e feminina, 
E tão alta e serena como a Morte!...

Eu ontem encontrei-a, quando vinha, 
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha, 
E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente, 
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente, 
E afaga como o pêlo dum regalo. 

Pois bem. Conserve o gelo por esposo, 
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos, 
O modo diplomático e orgulhoso, 
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos. 

E enfim prossiga altiva como a Fama, 
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante. (...)"


Cesário Verde, Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, pp. 76-77. 

Tuesday, April 29, 2014

FANER



"Vous tomberez ainsi, courtes fleurs de la vie, 
Jeunesse, amour, plaisir, fugitive beauté;
Beauté, présent d'un jour que le ciel nous envie,
Ainsi vous tomberez, si la main du génie
Ne vous rend l'immortalité!"


Lamartine, Méditations Poétiques, Paris: Le Livre de Poche, 2006, p. 92. 

Monday, April 28, 2014

OPHELIA



"é no vaivém da lua que naufraga
uma rosa nocturna assim perdendo
o lume e o perfume em que se apaga
o despegar das pétalas na vaga
vagarosa em que voga estremecendo, 
com as grinaldas frouxas que inda traga, 
ofélia entre nenúfares descendo, 
vestida de palavras e morrendo."


Vasco Graça Moura, Antologia dos Sessenta Anos, Porto: Edições ASA, 2002, p. 131. 

Sunday, April 27, 2014

SONETO DO AMOR E DA MORTE (em memória de Vasco Graça Moura)



"quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti, quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar a minha solidão. 

quando eu morrer segura a minha mão, 
põe os olhos nos meus se puder ser, 
se inda neles a luz esmorecer, 
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer, 
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater.
quando eu morrer segura a minha mão."


Vasco Graça Moura, Antologia dos Sessenta Anos, Porto: Edições ASA, 2002, p. 157.

TOTUS



"O todo sem a parte não é todo, 
A parte sem o todo não é parte, 
Mas se a parte o faz todo, sendo parte, 
Não se diga que é parte, sendo todo!

Em todo o Sacramento está Deus todo, 
E todo assiste inteiro em qualquer parte, 
E feito em partes todo em toda a parte, 
Em qualquer parte sempre fica o todo. 

O braço de Jesus não seja parte, 
Pois que feito Jesus em partes todo, 
Assiste cada parte em sua parte. 

Não se sabendo parte deste todo, 
Um braço, que lhe acharam, sendo parte, 
Nos disse as partes todas deste todo."


Gregório de Mattos, Se Souberas Falar Também Falaras - Antologia Poética, Lisboa: IN-CM, 1989, p. 45. 

Saturday, April 26, 2014

OCASIÃO



"Glória ao cão de face humana que incandesce a abocadar os seus
                                      próprios ossos e veias"


José Emílio-Nelson, "Distichen" in Ameaçando Vivendo - Obra Poética II, Porto: Edições Afrontamento, p. 78. 

Friday, April 25, 2014

SALGUEIRO MAIA, 40 ANOS DEPOIS



"Aquele que na hora da vitória
Respeitou o vencido

Aquele que deu tudo e não pediu a paga

Aquele que na hora da ganância 
Perdeu o apetite

Aquele que amou os outros e por isso
Não colaborou com sua ignorância ou vício

Aquele que foi «Fiel à palavra dada à ideia tida»
Como antes dele mas também por ele
Pessoa disse"



Sophia de Mello Breyner Andresen, Musa, 4ª ed., Lisboa: Caminho, 2001, p. 15. 

Thursday, April 24, 2014

SAGRADO



"homem sagrado
como de braços abertos
todos os homens são uma
cruz e na remoção das
almas valesse a forma

uma imagem que iludisse 
a natureza

ou se deus se vendesse, 
quem o poderia comprar"


valter hugo mãe, o resto da minha alegria seguido de a remoção das almas, Porto: Cadernos do Campo Alegre, 2003, p. 56. 

Wednesday, April 23, 2014

DESEJAR



"Notre crime est d'être homme et de vouloir connaître:
Ignorer et servir, c'est la loi de notre être."


Lamartine, Méditations Poétiques, Paris: Le Livre de Poche, 2006, p. 78. 

Tuesday, April 22, 2014

DEBAIXO DO CÉU



"A noite descia. As estrelas começaram a acender-se no céu, e em baixo, na pequena aldeia, as luzes acenderam-se também, fazendo brilhar os olhos dos homens. Nessa noite todos conversavam - os homens sentiam que Deus, como um leão bondoso, tinha entrado na aldeia."

Nikos Kazantzakis, A Última Tentação de Cristo, trad. Jorge Feio, Lisboa: Círculo de Leitores, 1988, p. 328. 

Thursday, April 17, 2014

O FILHO DE MARIA


"- Agora, a noite vai chegar, com a sombra, filha de Deus, e as suas caravanas de estrelas... - disse para consigo o filho de Maria. E, fitando o céu, a sua cabeça ficou repleta de estrelas."

Nikos Kazantzakis, A Última Tentação de Cristo, trad. Jorge Feio, Lisboa: Círculo de Leitores, 1988, p. 131. 

Wednesday, April 16, 2014

CHAGAS



" - Sete demónios te possuem, impudica! - gritou, então, o jovem, rubro de vergonha, até à raiz dos cabelos. - O teu pobre pai tem razão. 
Madalena estremeceu, juntou os cabelos com um gesto de cólera, enrolou-os e prendeu-os com uma fita de seda vermelha. Ficou um momento em silêncio e, por fim, os seus lábios voltaram a mover-se.
- Não são sete demónios, filho de Maria, são sete chagas. A mulher é corça ferida, que não tem outra alegria, a infeliz, senão a de lamber as suas próprias feridas..."


Nikos Kazantzakis, A Última Tentação de Cristo, trad. Jorge Feio, Lisboa: Círculo de Leitores, 1988, p. 94. 

A VIDA



"- Aqui - disse -, encontrarás pão e água; o amor só mais longe, em Magdala. Pegou num pequeno pão, que guardava no tabuleiro do forno, junto com outros. - Toma, este é o pão que guardamos de cada fornada. Chamamos-lhe o pão da cigarra e é para os que passam. Não é meu, é teu. Corta-o e come."


Nikos Kazantzakis, A Última Tentação de Cristo, trad. Jorge Feio, Lisboa: Círculo de Leitores, 1988, p. 75. 

Saturday, April 12, 2014

PASSOS




"Apertou com força o lenço, aferrolhou a porta e também ela tomou o caminho da montanha, para ver a crucificação, para passar o tempo."

Nikos Kazantzakis, A Última Tentação de Cristo, trad. Jorge Feio, Lisboa: Círculo de Leitores, 1988, p. 37. 

Friday, April 11, 2014

TENTAÇÃO



"Estava em pé, tinha uma rosa vermelha na mão e olhava as raparigas da aldeia, que dançavam sob um grande choupo de folhagem nova. E enquanto olhava, enquanto pesava os pós e os contras, porque as queria todas, porque o seu coração não podia escolher, ouviu atrás de si um riso sonoro, como água fresca saindo das entranhas da terra. Voltou-se e viu a dirigir-se a ele, com todos os seus ornamentos, anéis de bronze nos tornozelos, braceletes, brincos nas orelhas, sandálias encarnadas e os cabelos soltos, como se fora uma fragata ao vento, a filha única do rabino, do irmão de seu pai, Madalena. O espírito do jovem perturbou-se. «É aquela que eu quero», gritou. «É aquela que eu quero», e estendeu a mão para lhe oferecer a rosa. Mas no momento em que estendeu a mão, duas garras pousaram sobre a sua cabeça, duas asas frenéticas bateram por cima dele e sentiu que lhe apertavam dolorosamente as fontes. Deu um grito estridente e tombou de rosto contra a terra, escumando. Então, a sua pobre mãe cobriu-lhe o rosto com o lenço, ergueu-o nos braços e, esmagada pela vergonha, partiu e levou-o com ela."


Nikos Kazantzakis, A Última Tentação de Cristo, trad. Jorge Feio, Lisboa: Círculo de Leitores, 1988, p. 31. 

Thursday, April 10, 2014

ANIVERSÁRIO




"E os cavalos passam
Sobre o chão de cinza

E no voo das aves
Ateiam suas crinas"




Daniel Faria, "A Casa dos Ceifeiros", in Poesia, edição de Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 426. 

Wednesday, April 9, 2014

DURAÇÃO



"Não há, pois, estofo mais resistente nem mais substancial. Pois a nossa duração não é um instante que substitui outro instante: nunca haveria então senão presente, não haveria prolongamento do passado no presente, nem evolução, nem duração concreta. A duração é o progresso contínuo do passado que desgasta o futuro e que incha ao avançar. Ao mesmo tempo que o passado cresce sem cessar, também se conserva indefinidamente."

Henri Bergson, A Evolução Criadora, trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa: Edições 70, 2008, p. 367. 

Tuesday, April 8, 2014

NUMEN



"Meu coração tem catedrais imensas. 
Templos de priscas e longínquas datas. 
Onde um nume de amor, em serenatas, 
Canta a aleluia virginal das crenças. 

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas. 

Com os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandindo as hastas, 
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!"


Augusto dos Anjos, in A Poesia no Brasil, org. Sônia Brayner, vol. I, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p. 360. 

Monday, April 7, 2014

LUNÁRICO



"A correr pela margem, fui-lhe gritando que não tivesse medo e se deixasse ir, que em frente da cidade, ao pé dos navios, chamasse para lhe acudirem. Flutuava como uma folha sobre a corrente. Dali à Casa Amarela era muito longe e não pude pedir socorro. Já estava a anoitecer. Talvez ao passar em frente da cidade a vissem e a salvassem. Ou talvez não quisesse voltar. Preferiu fugir de mim e ficar na dúvida do que vir a sofrer uma desilusão?Queria poder aceitar esta ideia romântica. Mas as mulheres nunca preferem a dúvida."


Branquinho da Fonseca, Rio Turvo, Lisboa: Editorial Verbo, s.d., p. 53. 

Sunday, April 6, 2014

PLENILÚNIO



"Ouvia lá fora as corujas à caça, que poisavam nas árvores e piavam. Era uma vida intensa na sua plenitude a expandir-se, desde as rãs aos ralos, às águas do rio que por vezes me parecia ouvir também, como se a torrente tivesse crescido e inundado as margens, uma vida latente e realizada em tudo. Só eu ali deitado a negar-me o caminho verdadeiro. Nunca fui para limites nem renúncias. E o rio turvo crescia, crescia sempre, passava sobre o mundo e levava tudo..."


Branquinho da Fonseca, Rio Turvo, Lisboa: Editorial Verbo, s.d., p. 49. 

Saturday, April 5, 2014

LOBO BRANCO




"Era o lagareiro quem dava as novidades.
- E o Inácio, não sei se já saberá?, matou a mulher. 
- O quê?! Mas porquê? 
- Diz que foi o Lobo Branco. 
Um dos pastores comentou em voz baixa:
- Lá isso, foi verdade. 
- Vocês sempre acreditam em cada uma! Essa é das tais patranhas que não cabem na cabeça de ninguém.
- Mas, ó patrão, como é que eu o vi e fiquei variado, que já toda a gente descorçoava de mim, e fiz uma espera ao Tocha, que foi uma sorte a escorva estar molhada?
- Variado és tu de nascença. Qual Lobo Branco?! Pode ser que ande por aí algum, mas é um lobo como os outros. 
- Ah!, patrão! será: mas oxalá que nunca lhe apareça. 
- Oxalá que apareça quando eu vá preparado para lhe tirar a pele, que dá uma boa gola ali para a Gertrudes. 
- Cruzes! Abrenúncio!
E a velha, benzendo-se, fugiu para um canto. O Lobo Branco era o fantasma de toda a serra. Diziam que quem o via ficava possesso do espírito mau. E quando o julgavam desaparecido, lá voltava como um grande cão manso de que os homens fugiam."


Branquinho da Fonseca, "O Lobo Branco", in Caminhos Magnéticos, Lisboa: Portugália Editora, 1967, pp. 83-84. 

Friday, April 4, 2014

VÁGUO



"Naquela noite eu vagueava sem destino. Ah! Vaguear de noite pelas ruas desertas, sem destino, é saborear uns restos do sonho e da inquietação de andar num mundo desconhecido e maravilhoso. É um prazer que pouca gente pode ter. Só as pessoas com imaginação e espírito bem individualizado."

Branquinho da Fonseca, "Um Pobre Homem", Lisboa: Editorial Verbo, s.d., p. 91. 

Thursday, April 3, 2014

PROPRIVIDA


"Percorrera vários quilómetros pelas ruas, e sentia a úlcera varicosa a latejar. Pela segunda vez em três semanas que não aparecia ao fim da tarde no Centro Comunitário: atitude arriscada, pois sem dúvida que o número de presenças no Centro estava cuidadosamente controlado. Em princípio, um membro do Partido não dispunha de tempo livre, e nunca estava sozinho a não ser na cama. Partia-se do princípio de que quando não estivesse a trabalhar, a comer ou a dormir estaria a participar nalgum tipo de divertimento colectivo: era sempre um tanto ou quanto perigoso fazer algo que sugerisse gosto pela solidão, até mesmo passear sozinho. Havia para isso uma palavra em novilíngua: proprivida, que significava individualismo e excentricidade."

George Orwell, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, trad. Ana Luísa Faria, 3ª ed., Lisboa: Edições Antígona, 1999, p. 88. 

Wednesday, April 2, 2014

OBSOLETO




"- A Décima Primeira Edição vai ser a edição definitiva - disse. - Estamos a dar ao idioma a sua forma final, a forma que há-de ter quando ninguém falar nenhuma outra língua. Quando chegarmos ao fim, pessoas como tu terão que aprendê-la de novo. Julgas com certeza que a nossa principal tarefa é inventar palavras novas. Mas não é nada disso! Estamos é a destruir palavras, dezenas, centenas de palavras por dia. Estamos a reduzir a língua ao seu esqueleto. A Décima Primeira Edição não há-de conter uma única palavra susceptível de se tornar obsoleta antes do ano 2050."

George Orwell, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, trad. Ana Luísa Faria, Lisboa: Antígona, 1999, pp. 56-57. 

Tuesday, April 1, 2014

SENSÓRIO



"A natureza intrínseca das coisas está intimamente ligada às manifestações sensórias, e na sensação que nos dá a coisa observada objectivamente. Um certo aspecto do rosto, uma certa expressão fisionómica revela-nos um certo estado de alma, que não poderíamos conhecer sem aquela impressão."

Júlio Lourenço Pinto, Estética Naturalista, Lisboa: IN-CM, 1996, p. 35.