"Muito se tem ventilado também se no estábulo assistiam a burra e a vaca, como ideou S. Francisco no primeiro presépio e, após ele, quantos poetas souberam pegar em pincéis e quantos rapsodos vazaram a rude palavra de romance nas ledas estâncias dos autos e mistérios. Se veio a cavalo de Nazaré, não admira que apareça uma burra a bafejar o inocentinho intanguido nas palhas nuas. Mas donde saiu a vaca? A admirável vidente de Agreda resolve o problema sem dificuldade de maior: Vino luego por voluntad divina de aquellos campos un buey, y entrando en la cueba, se junto al jumentillo que la misma reyna avia llevado. Tal assento tem o entusiástico aplauso das almas crentes. Que custava ao poder de Deus tocar para ali um bezerro dos campos limítrofes ou das lezírias do Nilo? O doutíssimo Ayala defende este ponto de vista com irada e altiva facúndia. E quase não se compreende que espíritos pautados de teólogos como Calmet, Tilemont, Serry expulsem do presépio a boa bicharada e a remetam com desdém antropocêntrico às fábuldas de Esopo. Sendo assim, ficaria inane vã a profecia de que nessa noite prodigiosa o boi conheceria o seu dono, o asno a cara do azemel, só o homem se envergonharia de servir e conhecer aquele que servem e conhecem os brutos."
Aquilino Ribeiro, O Livro do Menino-Deus, 2ª ed., Lisboa; Livraria Bertrand, 1983, pp. 27-28.
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