Sunday, October 30, 2016

REFLEXO



"A verdadeira poesia, a que é recomeço, a que reanima, nasce muitíssimo perto da morte. Aquilo a que chamamos «vocação poética» é tão-só um reflexo de luta, quantas vezes tornado inoperante pelo mau sono da existência banal, esse sono que avança para a morte."

Yves Bonnefoy, Rimbaud, trad. Filipe Jarro, Lisboa: Cotovia, 2004, p. 24.

Thursday, October 27, 2016

FABRICANTE



"E como é escura a noite, só rasgada
pelo grito tenaz dos predadores;
ou, quando iluminada, é pelo fogo
que devasta os casulos e envenena
o jovem mel guardado nas colmeias. 
À falta de melhor, antes prefiro
que ande lá fora, a pouca e perecível 
alma que tenho; e se misture
tão bem a cada instante, que apeteça
vivê-lo eternamente; porque o tempo
é, como eu, um mero fabricante
de véus e teias que os humanos rasgam
sem sentir como nelas estão presos."


António Franco Alexandre, Aracne, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 36-37. 

Wednesday, October 26, 2016

TRÊS ESTRELAS


"Nunca a administração, o acrescentamento dos seus bens, que é a arte suprema da política, foi o forte de Maria Stuart. Ela só sabe defender e não guardar. Só quando provocam o seu orgulho, quando os seus direitos estão ameaçados, quando tocam nas suas prerrogativas, é que a sua vontade se revela, feroz e brutal. É apenas nos grandes momentos que esta mulher se mostra grande e enérgica - em tempo normal é tão indolente como qualquer outra."

Stefan Zweig, Maria Stuart, trad. Alice Ogano, 9ª ed., Porto: Livraria Civilização, 1961, p. 77. 

Monday, October 24, 2016

CORRUPTA




"Por isso, embora os homens pensem que o céu e a terra
permanecerão incorruptíveis, confiados a uma vida eterna, 
no entanto por vezes a própria força do perigo presente
aplica este aguilhão do medo de uma ou outra parte, 
que a terra lhes possa ser subitamente subtraída debaixo dos pés, 
desabe no báratro, e que a siga a totalidade das coisas, 
sem socorro, e ocorra a confusa ruína do mundo."


Lucrécio, Da Natureza das Coisas, VI, 600-607,  trad. Luís Manuel Gaspar Cerqueira, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2015, p. 373. 

Sunday, October 23, 2016

ÁGUA BAIXA



"A imagem não é hostilidade nem o amarelo
verdadeiro fogo inclinado caule erguendo
da água baixa as folhas a flor."


João Miguel Fernandes Jorge, "Turvos dizeres", in Obra Poética, vol. 2, 2ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1987, p. 60. 

Saturday, October 22, 2016

OS SINAIS




"83. Só com tocar mata o elefante; só com cheirar mata a cobra. O rei mata-te rindo, e o malvado adulando-te."

Anónimo, Panchatantra, trad. L. Pereira Gil, Lisboa: edição Amigos do Livro, s.d., Livro III, p. 232. 

Friday, October 21, 2016

ILUMINADO


"Anto - E, quando me traziam o chá à cama, afastava os lençóis, calçava os chinelos, vinha bebê-lo achegado à janela, para que de fora me detectassem, vulto claro afuselado, iluminado por dois círios. Era a hora do meu triunfo, momento de beleza máxima, por cuja posse de alguns minutos nenhum poeta hesitaria em ceder o talento e a glória. Caminhavam, para além da vidraça, os que iam para o trabalho e, vendo-me assim, comentava que era o santo, ou o diabo, ou simplesmente, a criatura nova."

Mário Cláudio, Noites de Anto, Lisboa: edições rolim, 1988, p. 67. 

Thursday, October 20, 2016

COLMENA



"O que vem a ser a originalidade? Ver alguma coisa que ainda tem nome, que ainda não pode ser nomeada, ainda que toda a gente a tenha debaixo dos olhos. Tais como os homens são de ordinário, é somente o nome da coisa que começa a tornar-lha visível. Os originais, geralmente, foram também os «nomeadores»"

Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, trad. Alfredo Margarido, 6ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 2000, (afor. 261), pp. 169. 

Wednesday, October 19, 2016

SERÁS



"Cidades paisagens ocupadas pela tristeza:
Já não as posso ver com os teus olhos
...
You were breasts thighs buttocks no name
Serás ossos pó nenhuma lembrança"


Heiner Müller, O Anjo do Desespero, trad. João Barrento, Lisboa: Relógio D'Água, 1997, p. 57. 

Tuesday, October 18, 2016

EX ORDINE CERTO




"E tendo assim começado os primeiros inícios das causas, 
e tendo assim sucedido as coisas desde o princípio do mundo, 
assim também se repetem segundo uma ordem invariável."


Lucrécio, Da Natureza das Coisas, V, 677-679,  trad. Luís Manuel Gaspar Cerqueira, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2015, p. 299. 

Monday, October 17, 2016

DELGADA



"Lembra-se, querido aedo, que embora o animal para o sacrifício deva ser
o mais gordo possível, a Musa, cara amigo, deve ser delgada. 
Mais ainda te ordeno isto: os caminhos que os carros não repisaram, 
esses deverás trilhar; nem conduzas no encalço de outros
o teu carro por uma estrada larga; mas por sentidos nunca antes pisados, 
mesmo que seja pelo caminho mais estreito, deverás conduzir a tua poesia,"

Calímaco, "Origens", in Frederico Lourenço, Grécia Revisitada, 2ª ed., Lisboa: Cotovia, 2004, p. 125. 

Sunday, October 16, 2016

HIDROS



"O mistério adensa-se. Costuma escrever-se com ironia esta frase que em tempos deve ter sido pensada seriamente porque é apropriada: um mistério, qualquer que ele seja, é como o nevoeiro, a água, o fumo, ou seja, é um fenómeno da ordem do líquido ou do gasoso, não do sólido. Um mistério não tem forma fixa, tem somente mais ou menos densidade, quer dizer, mais ou menos existência. É evidente que um mistério pouco denso não é nada misterioso."

Paulo Varela Gomes, Hotel, Lisboa: Tinta-da-China, 2016, p. 192. 

Saturday, October 15, 2016

E QUANDO



"Ah e quando. Quando o verde nos interessa 
e nós nos recusamos mas por dentro. 
e ficamos assim a pensar se devíamos voltar, acontecer, 
escrever um livro todo branco. filosofar o tédio
com estilo, percebes, 
introduzi-lo na vida de alguém.
ser um talvez na sala, digo quando, 
mobilá-la de circunstâncias longuíssimas como
mãos a conhecer as estrelas tontas do champagne e restos de mais
quando. e quando sair e deixar o mundo fingir que tudo está
na mesma apesar de nós, e para quando é o regresso, os papéis, 
a sabedoria profunda das essências e
dos poemas carnívoros e nossos. 
as cadeiras constroem-se com as mãos, disse, e foi
a frase mais profunda que jamais se disse, e tu sentada en-
tão quando"


Rui Costa, A Nuvem Prateada das Pessoas Graves, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005, p. 33. 

Friday, October 14, 2016

FALTA



"Ao sol começa a faltar lenha, a rua
por onde agora eu sigo
vai só até onde a memória a seguir abrir."


Luís Miguel Nava, Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p. 140. 

Wednesday, October 12, 2016

MEMO


"Lembremo-nos, além disso, que o futuro não é completamente nosso, nem completamente não nosso, de modo a não o esperarmos como devendo absolutamente existir e a não desesperar como se devesse absolutamente não existir."

Epicuro, Carta Sobre a Felicidade [Carta a Meneceu], trad. João Forte, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 29. 

Tuesday, October 11, 2016

LITOS



"Por fim, todos somos oriundos da semente do Céu, 
todos temos um mesmo pai, de quem a alma mãe, a Terra, 
recebeu as gotas de líquido humor e, ficando fecundada, 
dá à luz luzidias searas, árvores frondosas e o género humano, 
dá à luz todas as espécies de feras, quando proporciona pastos, 
com os quais alimentam os seus corpos, prolongam a doce vida
e propagam a descendência, pelo que merecidamente granjeou o nome de mãe. 
Do mesmo modo, volta para trás, para as terras, aquilo que anteriormente
saiu da terra e aquilo que foi enviado das regiões do éter 
de novo é acolhido, quando retorna, pelos espaços do céu. 
E a morte não destrói as coisas a ponto de aniquilar os átomos da matéria, 
mas apenas lhes desfaz as uniões. Depois volta a ligá-los uns aos outros
e faz que todos os corpos alterem as suas formas, mudem as suas cores
e tomem a sensibilidade ou a percam num momento (...)"


Lucrécio, Da Natureza das Coisas, II, 991-1005,  trad. Luís Manuel Gaspar Cerqueira, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2015, p. 127. 

Monday, October 10, 2016

IMPASSES



"Um arrepio de volúpia percorreu-lhe o pescoço e as costas quando o cozinheiro se retirou. Chegou até a espreguiçar-se como um cão velho. Era dele, dele!, aquela enorme casa, um mundo de recantos e desníveis, de portas e postigos, de passagens e escadas, de corredores e impasses, por onde se podia, se quisesse, andar livremente, cosido às paredes como um espião ou todo-poderoso como um fantasma, onde se podia abrir todas as portas, deitar-se em todas as camas, repousar em todos os sofás, refrescar-se em todas as casas de banho, olhar para o seu feio corpo em todos os espelhos."


Paulo Varela Gomes, Hotel, Lisboa: Tinta-da-China, 2016, p. 47. 

Sunday, October 9, 2016

MASTREAÇÃO



"Não me prendam ao mastro maior
que o canto bruxo das sereias
me leve ao hímen das águas

Que teu corpo, amor, me leve
ao reino de suas ondas
à púrpura de seus bosques
ao coral de suas grutas

Lá onde o amor e a morte
bebem pelo mesmo nácar."


Luís Veiga Leitão, Longo Caminho Breve, Lisboa: IN-CM, 1985, p. 140. 

Saturday, October 8, 2016

NAVEGAÇÃO



"O prisioneiro é como navio
preso ao cais. Amarras de desterro
com ferrugem de noites a fio
e redes de ferro. 
Do casco que um vento negro impele
caiu-lhe a pintura, o próprio nome. 
Mas o mar está dentro dele
e não há força que o dome."


Luís Veiga Leitão, Longo Caminho Breve, Lisboa: IN-CM, 1985, p. 78. 

Friday, October 7, 2016

REVOLTO



"O passado
é barro
como o futuro

O presente 
é água
como a morte"


Adília Lopes, "Le vitral la nuit. A árvore cortada", in Dobra, Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 597

Thursday, October 6, 2016

GORGON



"17. A origem, o porquê, o como e o quando, o tanto e o quanto que concorrem para a realização de um acto feliz ou infeliz, são circunstâncias que dependem todas da influência do destino."


Anónimo, Panchatantra, trad. L. Pereira Gil, Lisboa: edição Amigos do Livro, s.d., Livro II, p. 160. 

Wednesday, October 5, 2016

POSSE



"Deliberou o furto do mar, com suas costas, cabos, ilhas, barcos, faróis, boias, algas, gaivotas, peixes, cetáceos, cascos afundados, carcaças, material miúdo e telégrafo submarino. E se assim o pensou, assim o fez com a presteza de que a ideia exigia (ideias são fluidos, e Miguel poderia perder a sua em proveito de qualquer cidadão receptivo)."


Carlos Drummond de Andrade, "Miguel e seu furto", in Contos de aprendiz, Lisboa: Companhia das Letras Portugal, 2015, p. 145. 

Tuesday, October 4, 2016

INATU




"257. A natureza de cada um não pode ser alterada pelo ensino. Por muito que aqueças a água, ela logo se esfria. 
258. É mais provável que o fogo esfrie e os raios da lua queimem do que poder mudar-se no mundo a natureza dos mortais."


Anónimo, Panchatantra, trad. L. Pereira Gil, Lisboa: edição Amigos do Livro, s.d., Livro I, conto X, p. 94.

Monday, October 3, 2016

BARROCA



"Penso que não nos devemos enganar sobre a beleza. Se a nossa obra artística, ou outra, não implica a renúncia às coisas inúteis e a partilha, então é bastante inútil. E as coisas inúteis, para a poetisa, são o desejo de escrever obras perfeitas e o de ser reconhecida pelos seus pares. Roubei à Irmã Emmanuelle a expressão «renúncia às coisas inúteis e partilha» («renonce aux choses inutiles et partage», in Famille chrétienne, Numéro hors série, été 2004, p. 6). Se não há partilha, o artista é quase tão aberrante como um padre que celebrasse a missa só para si."


Adília Lopes, "Le vitral la nuit. A árvore cortada", in Dobra, Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 601. 

Sunday, October 2, 2016

PERDER



"Não, não há uma beleza que nos salve. Só a bondade nos salva. E a bondade manifesta-se, por vezes, no meio da maior fealdade. Explico-me. Uma pessoa capaz de actos de bondade, uma pessoa com bom coração, pode ter uma cara que é considerada feia, pode vestir-se de uma maneira que é considerada pirosa, pode ter tido notas medíocres, pode ser um artista medíocre. Quando visitamos um museu com obras belíssimas, como o Louvre ou o Prado, podemo-nos esquecer de que as pessoas, os visitantes e os funcionários estão lá connosco, são obras mais belas do que as mais belas obras expostas que andamos a ver. Um artista torturado pela beleza que consegue, ou que não consegue, dar ao que pinta e que se auto-destrói está equivocado. Seria preferível deixar de pintar ou pintar obras medíocres. Como dizia o meu avô materno, que era médico, «mais vale burro vivo do que sábio morto». Se a busca da beleza nos impede de viver, então há é uma beleza que nos perde. E há."


Adília Lopes, "Le vitral la nuit. A árvore cortada", in Dobra, Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 601. 

Saturday, October 1, 2016

UNIVERSALIDADE


"Lembrou-se, olhar para sempre. Caçar as imagens e viver de pensar. Habitar também o radical puro da natureza. Pertencer ao mais extenso do Japão. Ser como um elemento da universalidade. Saber apenas das ideias, a essência de cada coisa. Ficar livre. Itaro pensou, ficar livre."

Valter Hugo Mãe, Homens imprudentemente poéticos, Porto: Porto Editora, 2016, p. 204.