Saturday, March 31, 2018
NA FORÇA DO SOL
"Diante do Senhor está lançada
A Madalena triste e vergonhosa,
Qual na força do Sol vermelha rosa
Dos seus ardentes raios transpassada.
A nova e grave dor lhe tem roubada
(Sinal do que padece) a voz queixosa;
Lembra-lhe que passou tão perigosa
Vida, da vida sua descuidada.
Os pés que dos seus passos foram guia
Em lágrimas banhados alimpva
Com os seus cabelos de que se cobria.
Ali do Redentor, a quem buscava,
Encaminhada foi; porque queria
Que amasse muito mais, que tanto amava!"
Frei Agostinho da Cruz, Poesias Selectas, 2ª ed., Porto: Editorial Domingos Barreira, s.d., pp. 49-50.
ÀS CHAGAS
"Divinas mãos e pés, peito rasgado,
Chagas em brandas carnes imprimidas,
Meu Deus, que, por salvar almas perdidas,
Por elas quereis ser crucificado.
Outra fé, outro amor, outro cuidado,
Outras dores às Vossas são devidas,
Outros corações limpos, outras vidas,
Outro querer no Vosso transformado.
Em vós se encerrou toda a piedade,
Ficou no mundo só toda a crueza,
Por isso cada um deu do que tinha:
Claros sinais de amor, ah saudade!
Minha consolação, minha firmeza,
Chagas de meu Senhor, redenção minha."
Frei Agostinho da Cruz, Poesias Selectas, 2ª ed., Porto: Editorial Domingos Barreira, s.d., p. 43.
Thursday, March 29, 2018
A CHEGADA
"Mas, agora, o céu estava todo fechado e só uma vaga claridade, muito vaga, contrastava com a obscuridade geral. Ao distingui-la, porém, Serafim sentou-se ao pé dos rochedos e começou a chorar. Era um choro grotesco mesclando-se com aquela sua respiração que dir-se-ia um resfolegar de vapor."
Ferreira de Castro, A Lã e a Neve, 2.ª ed., Lisboa:Guimarães Editora, 1947, p. 229.
Wednesday, March 28, 2018
A ESPERA
"Senhor, se minhas culpas me endurecem
Para me não valer do sentimento,
Que vossas cinco Chagas me merecem,
Donde porei, meu Deus, meu pensamento,
Senão em meditar que esta dureza
Se abrandará com seu merecimento?"
Frei Agostinho da Cruz, Poesias Selectas, 2ª ed., Porto: Editorial Domingos Barreira, s.d., p. 108.
Tuesday, March 27, 2018
SENHOR
"Mostrai-me, meu Senhor, em que deserto,
Em que ribeira, vale, monte ou serra,
Enquanto me deixais andar na terra,
Do Céu me deixareis andar mais perto.
Que, pois, ora encoberto, ou descoberto,
Me faz cruel imigo cruel guerra,
De quando dentro em mim mesmo se encerra
Lugar de defensão tenha mais certo.
Mas como e donde posso defender-me,
Enquanto for de mim acompanhado,
Com tanta experiência de perder-me,
Senão sendo metido em Vosso lado
Pera todo de mim mesmo esquecer-me,
E só de Vós, meu Deus, ser alembrado?"
Frei Agostinho da Cruz, Poesias Selectas, 2ª ed., Porto: Editorial Domingos Barreira, s.d., p. 41.
Monday, March 26, 2018
CALVÁRIO
"77.
1 Jesus disse:
2 Eu sou a luz que os envolve a todos.
3 Eu sou o Todo.
4 O Todo saiu de mim,
5 e o Todo regressou a mim.
6 Rachai madeira, aí estou eu;
7 levantai uma pedra,
8 aí me encontrareis."
O Evangelho Segundo Tomé, trad. Cristina Proença, rev. José Augusto Martins Ramos, 2ª ed., Lisboa: Estampa, 2001, p. 75.
Sunday, March 25, 2018
RAMOS
"Os que entregam ramos verdes, mas com as extremidades secas e fendidas, são os que foram sempre bons, fiéis e honrados junto do Senhor, mas pecaram levemente por pequenos desejos e por terem pequenos choques entre si, mas quando ouviram as minhas palavras, a maioria depressa se converteu e a sua morada estabeleceu-se na torre. Alguns deles vacilaram; outros, tendo vacilado, armaram uma grande discórdia. Nestes há realmente esperança de conversão, porque foram sempre bons: dificilmente algum deles morrerá."
Hermas, O Pastor, trad. M. Luís Marques, Lisboa: Alcalá-Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, 2003, 76(1-2), p. 285.
Saturday, March 24, 2018
TRANSFORMA
"Reduzido a uma boca, o homem solta
um grito que se transforma na bola de silêncio
que corre por entre estas torres. O sol apanha-a,
como se fosse uma bola de viro, e enche-a com
o fogo dos seus raios, para que o grito se
incendeie de encontro aos vidros das janelas;
mas a boca do homem não se fecha, prolongando
o grito que investe, com o seu silêncio. Contra
as linhas exactas destas torres desertas,
e se derrama pelos vértices que rasgam o céu,
desenhando uma linha de fuga que o grito
procura para soletrar o seu som de dentro
do silêncio da esfera."
Nuno Júdice (e Duarte Belo), Geografia do Caos, Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, p. 41.
Thursday, March 22, 2018
A CRISTO NA CRUZ
"Assim como Vos vejo nessa cruz
Nu, despido de todo, assi me veja,
E como vós estais, meu Deus, esteja,
Sem haver em mim mais que o meu Jesus.
Que, pois eu fui aquele que Vos pus
Despido nessa cruz, despido seja
De quanto me desvia, turba e peja,
Pera não contemplar a Vossa luz.
Quisestes Vós morrer na cruz despido
Sendo Vós Senhor meu, eu servo vosso,
Não pago Vossa morte com morrer.
Que, pois por mim já tendes padecido,
Nem com morrer por Vós pagar-vos posso,
Pois o morrer por Vós é mais viver."
Frei Agostinho da Cruz, Poesias Selectas, 2ª ed., Porto: Editorial Domingos Barreira, s.d., p. 42.
Wednesday, March 21, 2018
PRIMAVERA
"Nenhuma mudança
se faz sem esperança.
Se enganosa é,
Só depois se vê."
Armindo Rodrigues, "Voz Arremessada ao Caminho", in Obra Poética, Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural, 1970, p. 57.
Tuesday, March 20, 2018
ESCULPIDA
"Se queres, ó cristão, gozar da glória,
E fugir aos abismos do inferno,
A afligida paixão de Deus eterno
Traze sempre esculpida na memória.
Nela tens de tormentos longa história,
Um mar alto, sem fim, de amor interno,
Despreza o livro antigo e o moderno;
Que este lhes leva a palma e a vitória.
Verás o bom Jesus escarnecido,
Derramando, do Horto ao Calvário,
Rios de sangue, dores de contino.
Ó finezas de amor extraordinário:
Que um Rei da Terra e Céu por povo indino
Não descanse senão na cruz subido!"
Frei Agostinho da Cruz, Poesias Selectas, 2ª ed., Porto: Editorial Domingos Barreira, s.d., pp. 43-44.
Monday, March 19, 2018
DO PAI
" - Pai - murmurou -, Pai, sinto-me bem aqui, terra contra terra, deixa-me. A taça que me dás a beber é amarga, muito amarga, não posso mais... Se é possível, Pai, afasta-a dos meus lábios.
Calou-se. Pôs-se à escuta, procurando ouvir, no silêncio da noite, a voz do Pai. Fechara os olhos e, quem sabe, Deus é bom, talvez visse dentro de si o Pai a sorrir-lhe piedosamente e a fazer-lhe um sinal."
Nikos Kazantzakis, A Última Tentação de Cristo, trad. Jorge Feio, Lisboa: Círculo de Leitores, 1988, p. 435.
Sunday, March 18, 2018
PASSOS
"Senhor, furação, ânsia.
Antigamente havia violências,
alvitres que não terminavam,
desejos que justificavam.
Desanuviemos a óbvia mendicidade que os restos retraem
por força d' hábito,
a ver, de olhos finitos, o haver tempo para conseguir mais
e espaço que nos proíba os passos em falso.
Senhor, furacão, vida.
Direito de amar
na tempestade."
Ruy Cinatti, "Proposição", in Verbo - Deus Como Interrogação na Poesia Portuguesa, Lisboa: Assírio & Alvim, 2014, p. 54.
CORREDOR
"Cavalo. Cavalinho. Cavalicoque.
Deixá-lo.
Coitadinho.
Carvão de coque.
Matá-lo
Devagarinho.
Lá vai ele a reboque.
Cavalo. Cavalinho. Cavalicoque."
Mário Cesariny, nobilíssima visão, Lisboa: Assírio & Alvim, 1991, p. 58.
Saturday, March 17, 2018
EXCALIBUR
"Como chove, Cacilda!
Como vem aí o inverno, Cacilda!
Como tu estás, Cacilda!
Da janela da choça o verde é um prato
Que deve ser lavado, Cacilda!
E o boi, Cacilda!
E o ancinho, Cacilda!
E o arroz, a batata, o agrião, Cacilda!
Já o cozeste?
Eu logo passo outra vez,
Em prosa provavelmente.
Arrozinho, Cacilda!
Os melhores anos da nossa vida, Ilda!
- Ausente."
Mário Cesariny, nobilíssima visão, Lisboa: Assírio & Alvim, 1991, p. 54.
Friday, March 16, 2018
FLUI
"Ah
não me venham dizer
oh
não quero saber
ah
quem me dera esquecer
Só e incerto é que o poema é aberto
e a Palavra flui inesgotável!"
Mário Cesariny, nobilíssima visão, Lisboa: Assírio & Alvim, 1991, p. 47.
Thursday, March 15, 2018
O CÉU
"Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e o único céu."
José Saramago, Memorial do Convento, 21.ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1992, p. 115.
Tuesday, March 13, 2018
OBSERVAR
"Estava ali o mundo exaltado do Oriente, uno e total, exprimindo o cúmulo do êxtase em nome de todos, de todos sobre a Terra."
Henri Michaux, Antologia, trad. Margarida V. de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, p. 280.
Sunday, March 11, 2018
HAIKAI
"Liselotte não era, porém, nem bela nem romântica. Era terra-a-terra, para não dizer grosseira, e por vezes flagrantemente vulgar. Nas cartas que escrevia para casa, dourava essas vulgaridades com as desafectadas palavras: «Com sua permissão, com sua permissão», invocadas quando exprimia comentários do tipo: «Com a constipação que tenho devo parecer uma cenoura cagada.» O modo como empregava os provérbios populares era mais divertido; por exemplo: «A neve tanto cai sobre uma bosta de vaca [Kuhfladen] como sobre uma pétala de rosa.» Ou: «Quando a cabra fica muito excitada, vai dançar para o gelo e parte uma perna.»"
Antonia Fraser, Luís XIV e o Amor, trad. Maria José Figueiredo, Lisboa: Oceanos, 2007, p. 156.
Saturday, March 10, 2018
AS SETENTA ESTAÇÕES
"Nem sempre o homem é um lugar triste.
Há noites em que o sorriso
dos anjos
o torna habitável e leve:
com a cabeça no teu regaço
é um cão ao lume a correr às lebres."
Eugénio de Andrade, "O outro nome da terra", in Poesia, 2ª ed. revista. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 442.
Friday, March 9, 2018
LIMITES
"A grande demanda que começa a meio da viagem da nossa vida e termina com a visão de uma verdade que não pode ser traduzida em palavras está repleta de distrações infindáveis, caminhos secundários, lembranças, obstáculos intelectuais e materiais, e erros perigosos, assim como erros que, por muito que nos pareçam falsos, são verdadeiros."
Alberto Manguel, Uma História da Curiosidade, trad. Rita Almeida Simões, Lisboa: Tinta da China, 2015, p. 40.
Thursday, March 8, 2018
LAMENTO
"As paixões reaproximam os homens que a necessidade de encontrar meios para a sua subsistência tinha dividido. Não foram nem a fome nem a sede mas sim o amor, o ódio, a piedade ou a cólera que pela primeira vez soltaram a fala dos homens... os frutos não nos fogem das mãos, podemo-los comer calados; é também em silêncio que se persegue a presa que se pretende abater - mas para conseguir comover um coração ainda inocente ou afastar um agressor injusto é a natureza que nos dita os seus acentos, exclamações ou lamentos. Estas é que foram as primeiras e as mais antigas palavras a ser inventadas: é por essa mesma razão que as primeiras línguas, antes de se tornarem simples e melódicas, foram cantantes e apaixonadas."
Jean-Jacques Rousseau, Ensaio sobre a Origem das Línguas, 2.ª ed., trad. Fernando Guerreiro, Lisboa: Editorial Estampa, 2001, p. 48.
Wednesday, March 7, 2018
OCULTAR
" (...) e continuou:
- Isto que vos digo, quantos vo-lo disseram? vo-lo dizem? vo-lo dirão? Palavras! discursos! palavras e discursos! O mundo está cheio de palavras e discursos porque é preciso tapar as covas... esconder os abismos."
José Régio, O Príncipe com Orelhas de Burro, 2.ª ed., Lisboa: Editorial Inquérito, 1946, pp. 334-335.
Tuesday, March 6, 2018
O BEM PROFUNDO
"Ao menos junto dos mortos pode a gente
crer e esperar n'alguma suavidade:
crer no doce consolo da saudade
e esperar do descanso eternamente.
Junto aos mortos, por certo, a fé ardente
não perde a sua viva claridade;
cantam as aves do céu na intimidade
do coração o mais indiferente.
Os mortos dão-nos paz imensa à vida,
dão a lembrança vaga, indefinida
dos seus feitos gentis, nobres, altivos.
Nas lutas vãs do tenebroso mundo
os mortos são ainda o bem profundo
que nos faz esquecer o horror dos vivos."
Cruz e Sousa, "O Livro Derradeiro", in Obra Completa (edição do centenário), Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1961, pp. 262-263.
Sunday, March 4, 2018
CINISMO
"Acrescentou ainda:
- Coitados! são como as crianças.
- Quem?
- Os que aí vêm. Pobres cegos!
- Cegos ?!... - exclamou Leonel - mas que cegos? Cegos, sim, mas que não conhecem a sua cegueira! Podem ser felizes na inconsciência em que vivem. Cego desgraçado és tu, que sabes que há a luz do dia e não a podes ver. Cego sou eu, que já não posso ver nada senão através da minha desgraça...
- Tu, sim, que ainda desesperas e te revoltas. Mas eu já não sou cego nem desgraçado desse modo.
- Não disseste que todos somos desgraçados? Pensei que também te referias à tua desdita.
- E referia. Mas era para te dizer que não deves ter vergonha de mim. De mim, ninguém se acanha nem oculta! Conheço a miséria de todos. Sou para toda a gente como o cão... E ao mesmo tempo, nem que pensem que não, têm-me respeito. Não é para admirar, isso?
- O que é que é para admirar?
- Ser, ao mesmo tempo, como um cão e como um mestre!"
José Régio, O Príncipe com Orelhas de Burro, 2.ª ed., Lisboa: Editorial Inquérito, 1946, pp. 228-229.
Saturday, March 3, 2018
RESSURGE
"Brancas aparições, Visões renanas,
imagens dos Ascetas peregrinos,
hinos nevoentos, neblinosos honos
das brumosas igrejas luteranas.
Vago mistério das regiões indianas,
sonhos do Azul dos astros cristalinos,
coros de Arcanjos, claros sons divinos
dos Arcanjos, nas tiorbas soberanas.
Tudo ressurge na minh'alma e vaga
num fluido ideal que me arrebata e alaga,
no abandono mais lânguido mais lasso...
Quando lá nos sacrários do Cruzeiro
a lua rasga o trêmulo nevoeiro,
magoada de vigílias e cansaço..."
Cruz e Sousa, "O Livro Derradeiro", in Obra Completa (edição do centenário), Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1961, p. 271.
Thursday, March 1, 2018
ESTADO
"E tão incrível lhe parecia, em relação ao presente, o estado de inconsciência e felicidade em que sempre vivera até há umas horas, como, em relação a essa inconsciente e feliz vida passada, lhe parecia incrível, inaceitável, o momento presente. Dir-se-ia que tudo sofrera uma espantosa reviravolta, - da qual, porém, só ele voltara a si desconhecendo-se e desconhecendo tudo. Porque para todos os outros seres a vida prosseguia, decerto, na mesma: para todos os outros ia o sol nascer e brilhar; os pássaros cantar; as fontes correr; o azul do céu oferecer-se no esplendor da sua nitidez e da sua calma. Para todos os outros ia começar um novo dia de festa, pois estavam decorrendo as festas há muito anunciadas e tão auspiciosamente iniciadas. E só ele, o herói desse regojizo nacional, penava agora, ali, enrodilhado sobre si próprio como um farrapo, mísero farrapo humano, farrapo que nem humano poderia dizer-se, porque a sua monstruosidade o expulsava do mundo dos homens..."
José Régio, O Príncipe com Orelhas de Burro, 2.ª ed., Lisboa: Editorial Inquérito, 1946, p. 140.
Subscribe to:
Posts (Atom)