"E tão incrível lhe parecia, em relação ao presente, o estado de inconsciência e felicidade em que sempre vivera até há umas horas, como, em relação a essa inconsciente e feliz vida passada, lhe parecia incrível, inaceitável, o momento presente. Dir-se-ia que tudo sofrera uma espantosa reviravolta, - da qual, porém, só ele voltara a si desconhecendo-se e desconhecendo tudo. Porque para todos os outros seres a vida prosseguia, decerto, na mesma: para todos os outros ia o sol nascer e brilhar; os pássaros cantar; as fontes correr; o azul do céu oferecer-se no esplendor da sua nitidez e da sua calma. Para todos os outros ia começar um novo dia de festa, pois estavam decorrendo as festas há muito anunciadas e tão auspiciosamente iniciadas. E só ele, o herói desse regojizo nacional, penava agora, ali, enrodilhado sobre si próprio como um farrapo, mísero farrapo humano, farrapo que nem humano poderia dizer-se, porque a sua monstruosidade o expulsava do mundo dos homens..."
José Régio, O Príncipe com Orelhas de Burro, 2.ª ed., Lisboa: Editorial Inquérito, 1946, p. 140.
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