Saturday, February 2, 2019

A GRAÇA


"Tendo tido, no Brasil, a estranha aventura que o ligara de modo tão particularmente afectivo ao filho de Dona Sinhá e o fizera descobrir em menino todo dedicado a Deus e aos santos e tão amoroso da Mãe uma graça diferente da que, macho brasileiramente normal, já havia, então encontrado nas mulheres de várias cores com quem tivera relações de cama ou de esteira, de sofá e de rede, Paulo, na Europa, preocupava-se em procurar surpreender na arte de escritores e de pintores da Igreja outras expressões dessa mesma graça, vindas talvez dos Gregos mas tornadas místicas, pelo Catolicismo, através de representações de anjos em adolescentes e de santos em jovens, muito jovens. Lembrava-se, a propósito de misticismo, de ter lido em Pater - a leitura de Newman levara-o à de Pater, tendo visitado Oxford em homenagem aos dois grandes ingleses - que a palavra místico, derivada do grego, significava fechado: segundo uns, de boca fechada, de modo a não se abrir, o místico, pela boca, a contactos com o mundo por meio de palavras e manifestar-se acerca de assuntos sobre os quais deveria meditar, sem falar a respeito deles; segundo outros, os platonistas, menos de boca que de olhos fechados, desde que fechando os olhos, o místico veria mais claro os mistérios interiores. Mas sem que os santos e os anjos, representados pelos pintores italianos, deixassem de ter olhos de adolescentes abertos às coisas do mundo e bocas por vezes humaníssimas em seu modo de ser bocas de efebos ao serviço de Deus. Mesmo porque, sem bocas entreabertas e olhos abertos, a graça dessas figuras, sua beleza, não se afirmaria em arte. E a Igreja, nos seus grandes dias, não se fechara a nenhuma forma de beleza capaz de se harmonizar com suas doutrinas: inclusive a de serem os anjos extremamente belos e nem de um sexo nem do outro, mas de um como terceiro sexo, para a Igreja, apenas místico."

Gilberto Freyre, Dona Sinhá e o seu Filho Padre - seminovela, Lisboa: Círculo de Leitores, 1974, p. 171. 

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