Thursday, December 31, 2009

SO LONG AGO, SO CLEAR



"Once, we did run
How we chased a million stars
And touched as only one can..."


http://www.youtube.com/watch?v=-utN5fDdXZM

PORQUE HOJE TERMINA MAIS UM ANO


"porque hoje termina mais um ano
com seus surdos rumores, pouca luz
e porque o tempo treme e é no inverno
e é no inverno que a arte nos ilude

e porque a arte é por de mais injusta
e o tempo transgrediu os seus limites
e ambos vivem só de se imitarem
digo que nunca errou a juventude

porque a arte é o princípio da morte e nem
(e nem sempre) teremos a coragem
a consciência ou o rigor bastantes
para tocá-los na sua ressonância"


Vasco Graça Moura, Antologia dos Sessentas Anos, Porto: Edições Asa, 2002, p. 19.

Wednesday, December 30, 2009

AS VOZES DOS VELHOS BARDOS


"Jovem de deleite vem:
E vê romper madrugada,
Imagem da verdade nada.
Dúvida foi-se & as nuvens da razão.
Negras disputas & astuta tensão.
Loucura é infinito labirinto,
Enleadas raízes em rumo indistinto,
Já quanto foi lá ceder!
Nos ossos dos mortos p'la noite empeçados,
Afãs tão-só sentem saber;
Desejam guiar mas devem ser guiados."


William Blake, Canções de Inocência e de Experiência, mostrando os Dois Estados Contrários da Alma Humana, trad. Jorge Vaz de Carvalho, Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 112.

Saturday, December 26, 2009

NO PRÓXIMO LADO DO ESPELHO



"Semelhante à sombra do homem,
assim chego à luz das chamas. Ardo
em dúvida, múltiplo e dividido,
e também ouço o barulho dos que medem
a dupla distância: da razão à loucura,
da cabeça aos pés.
Na verdade, os áridos olhos evitam o azul,
a cor uníssona,
e rendem ao túmulo solar o culto
da sua própria abertura.
Pródigos em sagrado
para que eu, receosamente, nomeie
os grandes braços da tempestade."


Nuno Júdice, "O Mecanismo Romântico da Fragmentação", in Obra Poética (1972-1985). Lisboa: Quetzal Editores, 1991, p. 159.

Thursday, December 24, 2009

MAY IT BE WHEN THE DARKNESS FALLS 2

MAY IT BE WHEN THE DARKNESS FALLS



"Não há senão dois extremos suficientemente perfurantes para entrarem assim na nossa alma, são eles a infelicidade e a beleza.
Seríamos frequentemente tentados a chorar lágrimas de sangue ao pensarmos quanto a infelicidade esmaga infelizes incapazes de fazerem uso dela. Mas considerando as coisas friamente, não se encontra aí desperdício mais lastimável do que a beleza do mundo. Quantas vezes a claridade das estrelas, o som das ondas do mar, o silêncio da hora que precede a alvorada se vêm propor debalde à atenção dos homens? Não conceder atenção à beleza do mundo é talvez um crime de ingratidão de tal modo grande que merece o castigo da infelicidade."


Simone Weil, Espera de Deus, trad. Manuel Maria Barreiros, Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, p. 143.

Wednesday, December 23, 2009

VIVE TU DAQUILO QUE É O DESGOSTO DO MUNDO



"No porto a corrente acrescenta
algas vermelhas que se elevam das vagas.
Eu não tinha de que viver,
tu não tinhas com que morrer de mim.

Recebi a tua ferida,
recebi de ti a terra. Vive
tu
daquilo que é o desgosto do mundo
e não conhece repouso, meu coração.

No porto não cessa de cantar a invisível
corrente,
as algas partilham o vento do olhar.
Em terra

a árvore está cheia de folhas
e não tem lugar para os frutos."


João Miguel Fernandes Jorge, a jornada de cristóvão de távora primeira parte, Lisboa: Editorial Presença, 1986, p. 18.

Tuesday, December 22, 2009

ONDE E QUANDO?


"Os profetas pleitearam este tempo,
os sinaleiros, os oradores no escuro,
rubricaram cada um dos nossos passos,
assinalaram da cidade amada e conhecida,
o reclamado, o que se deixa ao inimigo,
a porção de terra delida em vão pelo mar.

Onde e quando? A estas perguntas respondem
com a imagem de um império derrogado
pelas hordas de vândalos, hunos e visigodos
no assalto a Roma: rendida, abandonada,
pasto para as ervas e as correntes de ar,
quando uma existência de vinte e oito séculos
se perde entre os imperativos vagos da memória."


Paulo Teixeira, O Rapto de Europa, Lisboa: Caminho, 1993, p. 27.

Monday, December 21, 2009

EU ERA FELIZ E NINGUÉM ESTAVA MORTO


"Foi-se o sono e olho a água
Dos meus olhos estancados;
Lá fora, um rumor de aves
Evoca aromas molhados.

A luz alta fere as casas
Brancas de neve, fluídas;
Meu corpo é um prado seco
Onde caem estrelas húmidas.

Reflexos de sonhos idos
Limitam-me o pensamento;
Os ramos das árvores escondem
Silêncios desaparecidos."


Ruy Cinatty, Antologia Poética, ed. Joaquim Manuel Magalhães, Lisboa: Editorial Presença, 1986, p. 41.

Thursday, December 17, 2009

SE O AZUL VACILA


"Se o azul vacila
e a trama da vida parece desfazer-se
será que a palavra poderá ser
um nascimento fragrante
ou um sopro no sopro?

Com o seu hálito de segredo tranquilo
a casa espera as sílabas da água
e que se acenda o veludo de uma lâmpada
que oriente a primeira matéria
arrebatada pela dança.

Como a serpente de um olhar vazio
de um deus que a si se lesse
surge um sinal, um acorde que devasta,
uma inauguração sem começo.

Como captar essa inapreensível simplicidade,
esta nudez redonda e fulgurante?"


António Ramos Rosa, A Imagem e o Desejo, Lisboa: Universitária Editora, 1998, p. 10.

Wednesday, December 16, 2009

ONDE MORA A HABITANTE DE VIDRO?


"Onde mora
A habitante de vidro
De uma casa que a morte sabia
E que ao vê-la passar estremecia
Olivais, grandes campos de frio?
Pois no rosto da aranha descida
Com milénios de olhares facetados
Estavam escritos
Os múltiplos gritos
Do enorme silêncio da vida.

Onde mora
Essa estranha aliança?
Antiquíssimas fontes de esperança,
Com o destino vivido jamais.

(...)"


Natércia Freire, Liberdade Solar, Lisboa: Ed. Gráfica Portuguesa, s.dt., p. 34.

Tuesday, December 15, 2009

SOMBRAS SUMÉRIAS - DO LIVRO DE ENKIDU


"Tudo isto ilustrarei com exemplos. Por ouvir dizer sei somente o dia do meu aniversário e que tive tais progenitores e outras coisas semelhantes das quais nunca duvidei. Por experiência vaga sei que morrerei: afirmo isto porque vi morrerem outros semelhantes a mim ainda que nem todos tenham vivido o mesmo espaço de tempo nem morrido da mesma doença. Depois sei por experiência vaga que o azeite é um alimento próprio para nutrir a chama ao passo que a água é boa para a extinguir. Sei também que o cão é um animal que ladra e o homem um animal racional. E assim conheci quase tudo o que se liga ao uso da vida."


Bento de Espinosa, Tratado sobre a Reforma do Entendimento, trad. António Borges Coelho, Lisboa: Livros Horizonte, 1971, 20, p. 33.

Monday, December 14, 2009

HER RISE FROM OUT THE CHAMBER OF THE DEEP


"E quem já viu a lua, e quem não a viu
Erguer-se da sua profunda câmara,
Vermelha e imponente e nua, como se viesse do quarto
Do noivado consumado, viu-a erguer-se e lançar
Uma confissão de encantamento sobre as ondas.
Confundindo-as com a sua própria inscrição
De felicidade, até que a sua beleza suave vibre em nós,
Derramada e finalmente conhecida, e tenhamos a certeza
Que a beleza é o que existe para além do túmulo,
Essa experiência viva e perfeita que nunca se perde
No nada, e que o tempo virá obscurecer a lua
Mais cedo que a nossa total consumação
Nesta estranha vida que se extingue e que há-de desaparecer."


D. H. Lawrence, Os animais evangélicos e outros poemas, trad. Maria de Lourdes Guimarães. Lisboa: Relógio d'Água, 1994, p. 45.

Sunday, December 13, 2009

CENTO E UM


"Parecia que Alfreda tinha ouvido para além da boca fechada dele, porque se pôs de pé num salto. Mas era porque estava a ter uma das suas alucinações e viu uma pessoa a entrar na sala com o maior à-vontade. Era o professor Heschel, que lhe falou:
- Esqueci-me de dizer que a História é feita por extremistas como Beaumarchais, que fez da calúnia uma arma de combate. Ah! perdão, está com visitas. Nero não era o monstro que dizem, nem matou Popeia a pontapé. Ela era judia, percebe? Uma judia na cama de César só podia acabar mal. O que ela sabia sobre o incêndio de Roma nem se acredita e foi isso que a perdeu. Mas não foi Nero que a matou. Era um artista e os artistas não são capazes de fazer atrocidades dessas."


Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza - A Alma dos Ricos, 6ª edição. Lisboa: Guimarães Editores, 2005, p. 267.

Wednesday, December 9, 2009

O DIA, PARTINDO-SE


"o dia fez-se morte ao lusco-fusco,
já se ouve mais distante o realejo
que cruzava agonias e desejo
em pobres melodias, já mais brusco

chega o inverno entre ulmeiros pálidos
e sobressalta o corpo às raparigas
que vão morrer. ó meu amor, não digas
outros silêncios, outros sinais inválidos

para salvá-las, só a canção podia
reanimar seu pobre coração,
dar-lhe em breves momentos algum rumo,

alguma esperança nessa melancolia,
enquanto o som pairasse, mas em vão:
partiu o dia, em cinza, frio e fumo."


Vasco Graça Moura, Antologia dos Sessentas Anos, Porto: Edições Asa, 2002, p. 74.

Tuesday, December 8, 2009

O QUE SE REMIRA E NÃO SE ENTENDE

(museu arqueológico, Istambul)


"É controvérsia de cegos pôr em dúvida os poderes da formosura - eloquência contemplada, cadeias de ouro puríssimo, tirania lícita que tudo arrasta após de si, e não sem viva espiritualidade, que então seria apenas a sombra do formoso. No material não há mais que vestígios do belo. O que se não sabe medir é formosura; o que se remira e não entende, que mata fazendo amar, é um composto da alma e do corpo tal que só vós o tendes; aquela flor de graças que imprime a cada acção um espírito; privilégio mudo, fonte de auroras, um mentir para as estrelas e uma verdade para o Sol; admiração dos pincéis, íman das liberdades."


D. Francisco de Portugal, Arte de Galantaria, introd. Joaquim Ferreira, Porto: Editorial Domingos Barreira, 1984, p. 18

Sunday, December 6, 2009

DA IDIOTIA - PEQUENA FÁBULA MORAL

"Chamam-me muitas vezes às casas aristocráticas para curar crianças idiotas. Em geral é impossível uma pessoa fazer-se entender pela criança idiota, e quando não encontro esse resquício que às vezes há nos idiotas, considero a cura desesperada e vou-me embora; faço-o por pena, porque os seus gritos chamam-me, como se na sua idiotia houvesse percebido ter passado ao seu lado a única pessoa que poderia curá-los...
Pude curar alguns desenredando aos poucos, com os meus dedos compridos, a grande teia que se lhes embrulhara na cabeça...
O último caso que curei foi o de um idiota que estava sempre à beira do grande tanque do palácio atirando constantemente pedras à água, saciando-o um pouco o ruído dos bochechos que a água fazia ao engolir as pedras...
Vi que o repreendiam e de imediato o afastavam do tanque, embora, com a malícia e a sagacidade dos idiotas, ele soubesse aproveitar a distracção de todos para voltar a atirar as pedras para lá.
- Manolín, esteja quieto... Manolín, não seja mau...
Há em toda a parte uma grande incompreensão do idiota, revelando-se com isso mais idiotas do que ele os que não conseguem compreendê-lo.
- Só pensa em atirar pedras para o tanque... Mal nos descuidados, recomeça logo.
- Pois muito bem, os senhores verão em breve - disse-lhes eu - que o único meio de o curarem
é deixarem-no encher com pedras esse tanque, para assim ver concluída a sua obra... Verão como a sua idiotia há-de rebentar no grande suspiro que cura os idiotas...
Fui-me dali e só depois de vários meses o conde, pai do idiota, me visitou, dizendo-me então:
- Não podes imaginar como lhe foi difícil encher o tanque de pedras... Deixou o jardim sem uma única pedra, e às vezes até apanhava terra para o encher melhor... Trabalhou como um desesperado, como um pedreiro que andasse de empreitada... Mas há uns dias sobressaiu no tanque, todo entulhado, uma espécie de pirâmide de pedras, e então o miúdo, sentando-se sobre o remate da sua obra, deu o suspiro que o senhor tinha anunciado, e recuperou o juízo... Nem imagina como é sensato desde então...
Após ter realizado a missão da sua idiotia, é como se já não precisasse de o ser..."



Ramón Gómez de la Serna, O Médico Inverosímil, trad. Júlio Henriques, Lisboa: Antígona, 1998, pp. 57-58.

Friday, December 4, 2009

PARA A INEXACTIDÃO


"Uma nobre dúvida se insinua eternamente - se este fim não será a Causa Última do Universo; e se a Natureza existe exteriormente. É uma justificação suficiente dessa Aparência a que chamamos o Mundo, que Deus ensine a mente humana, transformando-a, assim, no receptáculo de um certo número de sensações congruentes a que chamamos Sol e Lua, homem e mulher, casa e trabalho. Na minha extrema impotência em testar a autenticidade do relato dos meus sentidos, em saber se as impressões que me causam correspondem a objectos existentes, que diferença faz se Órion está lá no céu, ou se algum deus pinta a sua imagem no firmamento da alma? Se permanecem idênticos quer as relações entre as partes quer o fim do todo, que importa se a terra e o mar interagem e se há mundos que rodam e se misturam sem número ou fim - profundeza abrindo-se sob profundeza e galáxia equilibrando galáxia, através do espaço absoluto - ou se, sem relações de tempo e espaço, as mesmas aparências se inscrevem na fé inabalável do Homem? Quer a Natureza goze de uma existência substancial sem a mente, quer esteja apenas no seu apocalipse, ela é-me do mesmo modo útil e venerável. Seja o que for, para mim é ideal desde que não possa experimentar a exactidão dos meus sentidos."


Ralph Waldo Emerson, A Natureza, trad. Berta Bustorff Silva, Lisboa: Sinais de Fogo, 2001, pp. 67-68.

Wednesday, December 2, 2009

MAS ONDE TRANSCENDENTALISMO?


"Mas esta origem de todas as palavras que veiculam um conteúdo espiritual - facto bem assinalável na história da linguagem - é a nossa menor dívida à Natureza. Não são apenas as palavras que são emblemáticas. Todos os fenómenos naturais são símbolo de fenómenos espirituais. Cada aparência da Natureza corresponde a um estado de espírito, e esse estado de espírito só pode ser escrito se pressentirmos essa aparência natural como o seu retrato. Um homem enraivecido é um leão, um homem astuto é uma raposa, um homem firme é uma rocha, um homem culto é um archote. O cordeiro é inocente, a cobra um ódio subtil, as flores exprimem-nos doces afectos. A luz e as trevas são a nossa expressão familiar para a sabedoria e a ignorância. A distância visível atrás de nós e à nossa frente são, respectivamente, a imagem da memória e da esperança."



Ralph Waldo Emerson, A Natureza, trad. Berta Bustorff Silva, Lisboa: Sinais de Fogo, 2001, pp. 40-41.