Monday, July 12, 2010

CRIME E CASTIGO


"A troca dum valor qualquer, moeda, objecto, bem móvel ou imóvel, perdeu a função de simples meio e alargou-se aos domínios além do económico. O prazer da troca substituiu o prazer de possuir um bem. O amor é também objecto de troca, e a vida humana é, na sua dramatização que é a morte, e a morte dada por outrem, uma forma de consumo. Uma vez que até o suicídio entra no processo de troca, propensão obrigatória da natureza humana, o crime não fica longe dessa intenção de ganho que explica o suicídio e, sobretudo, o seu crescimento a partir do fim do século. Ele não significa tanto um resultado da melancolia, do estado de anomia provocado pelo desaparecimento dos laços sociais e parentais conforme a tradição. É um motivo de troca, pois o suicida espera obter na memória das pessoas um lugar que não teve mercê das suas limitações ou, em suma, da sua susceptibilidade de indesejável. A morte que é dada a alguém não se explica senão por um factor que não é adicional, mas, possivelmente, é o factor principal. Comete-se um crime para cultivar a imagem que nos está a ser subtraída. O que se exige da vítima é que ela devolva algo que representa um ganho excessivo, a personalidade de que ela se apoderou."


Agustina Bessa-Luís, Eugénia e Silvina, 2ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1990, p. 290.

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