"- Meu senhor - disse eu ao celerado, apavorada com semelhantes discursos -, como é possível que possais conceber tais volúpias e que venhais propor-me servi-las? Os horrores que vós proferistes... Se vós, homem cruel, passásseis sequer dois dias pela desgraça, veríeis como tais sistemas de humanidade se desvanesceriam no vosso coração; é a prosperidade que vos cega e vos endurece; estais embotado pelo espectáculo de males que julgais longe de vos atingirem e, como esperais nunca os sentir, julgais-vos no direito de os inflingir aos outros; o meu desejo é que, se a felicidade tiver de me corromper assim, melhor será nunca a conhecer... Meu Deus! Já não basta abusar do infortúnio! Ter de levar a ousadia e a crueldade ao ponto de o acrescentar e de o prolongar, com vista à mera satisfação dos próprios desejos! Que crueza, senhor! Nem os animais ferozes nos dão exemplos de tanta barbárie!
- Teresa, estás enganada! Não há astúcia de que o lobo não se sirva para atrair o cordeiro; tais manhas encontram-se na natureza, na qual a bondade prima pela ausência; esta é característica da fraqueza preconizada pelo escravo, para comover o amo e o convencer a ser brando; a bondade só surge no homem em dois casos: quando ele é o mais fraco ou quando receia vir a sê-lo; a prova de que essa pretensa virtude não existe na natureza está no facto de ela ser desconhecida no homem que mais próximo está da mesma natureza. O selvagem, desprezando-a, mata o semelhante sem piedade, quer para se vingar, quer por avidez... Se essa virtude estivesse inscrita no seu coração, será que ele a respeitaria? A verdade é que ela não surgiu lá como nunca surgirá onde quer que os homens sejam iguais: a civilização, depurando os indivíduos, dividindo-os em classes, colocando o pobre na frente do rico, inspirando a este o receio duma mudança de estado que poderia precipitá-lo no nada do pobre, inscreve no seu espírito o desejo de consolar o infeliz, para ser por sua vez consolado, no caso de vir a perder as riquezas. Daí nasce a beneficência, fruto da civilização e do temor: é, portanto, uma virtude de circunstância, não é um sentimento da natureza: esta nunca pôs em nós desejo algum que não fosse o de nos satisfazermos, seja por que preço for. É confundindo assim todos os sentimentos, nunca analisando coisa alguma, que se cai na cegueira total e se renuncia a todo o prazer."
Marquês de Sade, Justine ou os Infortúnios da Virtude, trad. Manuel João Gomes, Lisboa: Antígona, 2001, pp. 242-243.
No comments:
Post a Comment