Saturday, June 30, 2012

SUSPENSO


"Vê o que se suspende. O lugar em que brincavas.
Já então ao abandono. Também tu o abandonaste.

Cerca-o com a tua infelicidade."

Luís Quintais, Verso Antigo, Lisboa: Cotovia, 2001, p. 28.

Friday, June 29, 2012

QUE FIZESTE DO DIA?


"Que fizeste do dia que ao nascer
era névoa? Uma palavra
igual à da noite Nada e
tudo ficara
desse corpo volátil Onde estavam

as formas do amor o futuro
passado?
Interpretaste
a ausência uma face destinada
ao desastre"
Gastão Cruz, As Pedras Negras, Lisboa: Relógio D'Água, 1995, p. 53.

Thursday, June 28, 2012

POLÍTICA, PAÍS, RAIO


"Mas que pode fazer um homem, quando o seu país adormece em sono letárgico, quando só se ouve o zumbir das pequenas intrigas, e das mesquinhas paixões, quando a glória foge aos esforços da mais poderosa e enérgica vontade? Mercadejar com a inteligência no traficar da vida política, servir a mediocridade, para a dominar depois, ou esperar tudo da fatalidade dos acontecimentos?
Mas o tempo nada respeita; nesta carreira aonde as dores se multiplicam, deixa-se cada dia um nobre sentimento, e quando se pode atingir o alvo, já a alma está gasta e cansada, já nos sentimos frios e inertes perante as magnificências que outrora nos seduziam a imaginação."
A. F. Lopes de Mendonça, Memórias d' um Doido, 3ª ed., Lisboa: Empresa Lusitana Editora, s.d., p. 37 [ort. atualz.]

Wednesday, June 27, 2012

ÉTICA / ESTÉTICA


"- És um imoral, acabou-se.
- Imoral é ele, porque é incongruente. E eu estou a caminho de ser moral. Verás, quando eu me entusiasmar por qualquer coisa; qualquer coisa a obter, a amar e a explorar. Hei-de aprender uma arte perniciosa, como a dos fenícios, que foi a navegação. Nós, os portugueses, gostamos dos maus costumes. Fazer deles uma moral é a nossa sensibilidade.
- Não sei o que se pode fazer de ti.
- Não um apreciador da beleza; portanto, um homem moral."
Agustina Bessa-Luís, As Fúrias, in As Chamas e as Almas, 2ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 2007, pp. 347-348.

Tuesday, June 26, 2012

SOFRER


"Quem vem escolher o sofrimento? É mais perto que a poeira se levanta
com a brisa que se tinha esperado. Apenas sabemos como no estio
se pode sentir o odor ao longo destes sulcos. Tudo o que nos disseram
escutámo-lo com atenção, mas ignoramos o sentido que tinha. Quem chega
de longe há-de continuar o seu caminho. Se principiamos a sentir
as mesmas dores é porque também vamos ao seu lado. Assim reconhecemos
uma prece qualquer. Vemos depois como se estendem os campos
por cultivar. Só eles acompanham o tamanho dos nossos braços."
Fernando Guimarães, "Na Voz de Um Nome", in  Algumas Palavras - Poesia Reunida (1956-2008), Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2008, p. 326.

Monday, June 25, 2012

PODER MÁGICO


"Considerava que só se obtinha a liberdade na medida em que o poder mágico da mulher, poder mágico fictício, se furtasse à independência das ideias. Como natureza administradora, a mulher dá às palavras um carácter meramente comunicativo e torna-as armas poderosas dum governo. Os governos são mais matriarcais do que se pensa. A sua consciência politica é restrita à razão da produtividade que pretende inspirar. Todo o comportamento matriarcal está contido na recomendação da submissão. A submissão é um ritual, não uma humilhação. O homem converteu a submissão em depressão e vergonha, ao descrevê-la pelo pensamento e pelo pensamento pessoal. A direcção pessoal do pensamento é extremamente dúbia."

Agustina Bessa-Luís, As Fúrias, in As Chamas e as Almas, 2ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 2007, p. 182.

Sunday, June 24, 2012

O REAL / S. JOÃO


"o real será
a tradução da sombra,
da intranquilidade
de existirmos?

será como numa
auto-estrada o carro
que pede ultrapassagem
abusando dos códigos?

o real será
a epígrafe
de sermos?

uma espécie de canto
que a música transcende?
uma realidade?"

Vasco Graça Moura, Antologia dos Sessenta Anos, Porto: Edições Asa, 2002, p. 24.

Saturday, June 23, 2012

APRISIONAR 2


"A verdade é que as férias na aldeia não lhe faziam bem. Dessa vez, pelo menos. Chegara na antevéspera, e vivia, desde que chegara, num humor acabrunhado, ocioso e cheio de pressentimentos. Cada manhã, debruçado na varanda onde uma parreira entrelaçava tortuosamente os braços, Pedro aspirava com o cheiro do moscatel o cheiro da sua própria pele, da roupa, que exalavam um odor doentio de corpo acamado e morno de suor. Sentia-se extraordinariamente cansado, vencido, ansioso por deixar aquela terra, a casa, as tias, e ir para algures, longe, talvez para uma praia triste onde pudesse olhar o mar duma janela aberta, e escrever um diário, com os pés nus enterrados na areia. A ideia de que seria bom aquele sentir da areia húmida na sua carne importunava-o às vezes como um apelo de longe, como um desejo um pouco mórbido de amplidão, de esquecimento e de fuga."
Agustina Bessa-Luís, Mundo Fechado, 2ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 2005, pp. 14-15.

Friday, June 22, 2012

APRISIONAR 1


"Aia - E onde descansaremos? Não encontrámos ninguém, até agora. Não vejo nenhum convento, nem pastores, nem eremitas.

Lena - Sim. Sonhámos tudo isto de outra maneira quando líamos os nossos livros, à sombra dos muros do jardim, entre mirtos e loureiros.

Aia - Oh, o mundo é abominável! Temos de desistir dessa esperança de encontrar algum príncipe errante.

Lena - Não, o mundo é formoso e amplo, infinitamente amplo. Gostaria de continuar a andar assim, dia e noite. Nada se agita. Um roxo resplendor das flores banha os prados,  e as serras longínquas estendem-se sobre a terra como nuvens imóveis."
Georg Büchner, Leôncio e Lena, trad. Orlando Neves, Lisboa: Início, 1967, p. 44.

Thursday, June 21, 2012

A PRIMEIRA NOITE NO PARAÍSO


"Leôncio (entrando:) - Ó noite de bálsamo, semelhante à primeira noite do Paraíso!

(Vê a princesa, interrompe a fala e aproxima-se dela, sem ruído.)

Lena (sonhadora:) - A toutinegra chilreou sonhando. O sono da noite fez-se mais profundo, o seu rosto empalidece, a sua respiração apaga-se. A lua é como uma criança dormindo, os seus caracóis louros espalham-se sobre o rosto encantador. Oh! O seu sono é a morte. O anjo morto repousa sobre o seu travesseiro e as estrelas brilham, em seu redor, como círios. Pobre criança! Como é triste! Morta e só!"

Georg Büchner, Leôncio e Lena, trad. Orlando Neves, Lisboa: Início, 1967, p. 50.

Tuesday, June 19, 2012

FLUIR


"Uma cidade procura o seu destino. Os homens adormeceram
e as mulheres caminham sozinhas sobre as folhas dos seus corpos.
Apenas uma casa de areia oscila no interior do vento e as árvores
são a margem onde permanecem as manhãs ocultas da primavera.

Ao longe, um cemitério: a serena policromia dos mortos."
Fernando Guimarães, "Como Lavrar a Terra", in Algumas Palavras - Poesia Reunida (1956-2008), Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2008, p. 49.

Monday, June 18, 2012

EXTENSÃO


"Valério (esbaforido) - Palavra de honra, Príncipe, o mundo, ao fim e ao cabo, é um edifício monstruosamente extenso."
Georg Büchner, Leôncio e Lena, trad. Orlando Neves, Lisboa: Início, 1967, p. 41.

Sunday, June 17, 2012

TÉDIO/MITO DE DÁNAE



"Intendente - Muito triste, Alteza...

Leôncio - ... que as nuvens, há três semanas viajando de oeste para leste, me ponham tão melancólico.

Intendente - Uma melancolia perfeitamente justificada.

Leôncio - Oh, infeliz! Porque nunca me contrariais? Tendes assuntos para tratar, não é verdade? Sinto ter-vos retido por tanto tempo! (O Intendente afasta-se fazendo uma profunda reverência.) Senhor, felicito-vos pelo formoso parêntesis que as vossas pernas desenham quando vos inclinais. (Leôncio fica só e deita-se ao comprido sobre o banco.) Com que negligência as abelhas pousam sobre as flores e os raios de sol se estiram no chão! Ressuma um horrível ócio por toda a parte. O ócio é a mãe de todos os vícios! O que os homens fazem por causa do tédio! Estudam por causa do tédio, rezam por causa do tédio, enamoram-se, casam-se e multiplicam-se por causa do tédio e finalmente morrem por puro tédio. E, aí está o mais engraçado, fazem tudo isso com as caras mais sérias deste mundo, sem saberem porquê e dando aos seus actos sabe Deus que significado! Todos estes heróis, estes génios, estes imbecis, estes santos, estes pecadores, estes pais de família, no fundo, não são mais do que uns refinados ociosos. Por que razão fui eu destinado a sabê-lo? Porque não posso pôr também uma cara séria? Porque sou incapaz de vestir este boneco com um fraque e dar-lhe um guarda-chuva, pôr-lhe um ar legal, útil e moral? Invejo o homem que saiu agora daqui. Ai, se por inveja, eu pudesse supliciá-lo! Oh, ser ao menos uma vez outra pessoa! Durante um minuto só... (Entra Valério, ligeiramente ébrio.) Como este tipo corre! Quem dera que houvesse alguma coisa sob o sol que me fizesse correr assim!"
Georg Büchner, Leôncio e Lena, trad. Orlando Neves, Lisboa: Início, 1967, p. 20.

Saturday, June 16, 2012

RIR A FONTE



"Eu vi rir esta fonte; e deste rio
A verdura regada, ser enveja
Da que mais verde entre esmeraldas seja;
Hórrido o bosque, o prado vi sombrio.

Vejo o chorar da fonte, e que de frio
O rio pára, o prado se despeja:
Seca a verdura; a neve é só sobeja,
O triste inverno assombra o claro estio.

Ora se servirá de ser vingado
Ver quão mal da mudança se assegura
A fonte, o rio, o bosque, o estio, o prado.

Ai de mi, que me chega a sorte dura
A querer que alivie o meu cuidado
Por exemplos de extrema desventura!"

D. Francisco Manuel de Melo, Poesias Escolhidas, Lisboa: Editorial Verbo, 1969, p. 28.

Friday, June 15, 2012

VULTOS


"Gil - Ai mãe! Que é aquilo que eu vejo?!
Eis já que [a] alma se me arranca!
Ora o medo não tem regra...
Lá vem ua cousa negra
junto dua cousa branca!
Foi do demo esta prefia,
e, à fé, que outra me não tome!
Jesus! não pudera home
ter amores como de dia?
Pois eu juro, se não pasmas,
Gil, que outra vez não te afoite!
Eu digo que toda a noite
devem de correr fantasmas...
Ai Deus, como ua é comprida!
E aquela, que traz na mão?
Aquilo é lança ou tição?
Escura da minha vida!
Não é este - oxalá fora! -
o vilão da mula de antes...
São maiores que gigantes!
Destes não escapo eu ora...
Todavia bom será
fazer gesto...

Vulto Negro - Andar, andar!

Vulto Branco - Se não quiser esperar,
vá-se embora!"

D. Francisco Manuel de Melo, O Fidalgo Aprendiz, 5ª ed., Lisboa: Clássica Editora, 1974, pp. 88-89.

Thursday, June 14, 2012

A VELHA CASA 2


"Ora que mal!, que mal fiz eu à vida, aos céus,
Aos homens meus irmãos, à natureza, a Deus,
Para que lute assim a vida inteira, só
No meu palácio em ruina alcatifado a pó?"

José Régio, "Soluço na noite", in Não Vou Por Aí - Antologia Poética, selecç. Isabel Cadete Novais, 3ª ed. Vila Nova Famalicão: Quasi Edições, 2001, p. 119.

Wednesday, June 13, 2012

A VELHA CASA



"O amor, a amizade e quantos
Sonhos de cristal sonhara,
Bens deste mundo, que o mundo
Me levara,
De tal maneira me tinham,
Ao fugir-me,
Deixado só, nulo, atónito,
A mim, que tanto esperara
Ser fiel,
E forte,
E firme,
Que não era mais que a morte
A vida que então vivia,
Auto-cadáver..."


José Régio, "Toada de Portalegre", 
in Não Vou Por Aí! - Antologia Poética, selec. e org. de Isabel Cadete Novais, 3ª edição. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2001, p. 82. 

Monday, June 11, 2012

LABIRINTO


"- És severa para com Platão, minha pequena!
- Os grandes homens, precisamente como os deuses, não são grandes em todas as circunstâncias. Palas não percebe nada de comércio. Sófocles não sabia pintar. Platão não sabia amar. Filósofos, poetas ou retóricos, todos aqueles que reclamam deles, nem por isso valem mais; e, por muito admiráveis que sejam na sua arte, são menos ignorantes em amor. Acredita-me Naucrates, eu sei que tenho razão."

Pierre Louÿs, Afrodite: costumes antigos, trad. Chagas Franco, Lisboa: Guimarães Editora, 2006, p. 99.

Sunday, June 10, 2012

OLHO PARA LUÍS VAZ


"Mas, de uma maneira ou de outra, os fedores assaltam-nos de todos os quadrantes. Do rio sopra um cheiro agoniativo a conserva de peixe, a esgoto, a curtume de couro. Ah, que bom, mudou o vento! Agora vem uma brisa perfumada de cravinho e de canela. Noz moscada... pão a cozer. Olho para Luís Vaz, a ver se ele nota alguma coisa. A expressão mantém-se inalterada. É a mesma desde que começámos o retrato. A mesma desde que o rio se encheu de galeões. É uma expressão que me está a dificultar - não, a impossibilitar - a feitura deste retrato, encomendado pelo conde, admirador e generoso mecenas do poeta d' Os Lusíadas. Poeta esse que, como todos sabemos, só tem um olho, mas como - ó meu Santo António! - é que um olho só consegue dardejar tanta amargura, tanta ferocidade?"
Frederico Lourenço, "O Retrato de Camões", in A Formosa Pintura do Mundo, Lisboa: Cotovia, 2005, p. 219.

Saturday, June 9, 2012

O ALTO


"No fim dos teus dedos
Começam os olhos das aves

Não me pergunte a poesia
Nada mais

Apenas sei o fim de teus dedos

Não me pergunte a poesia
Se choram os olhos das aves"

Daniel Faria, "Oxálida", in Poesia, Ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 373.

Friday, June 8, 2012

PÁTEO


"... porque a quem fiz tanto bem,
sobretudo esses me fizeram mal."

Safo, Poemas e Fragmentos, trad. Eugénio de Andrade, 5ª ed., Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 1995, p. 65.

Thursday, June 7, 2012

ENTRAREI PURO



"- Purifica-te, estrangeiro!
- Entrarei puro - disse Demétrio.
Com as pontas dos cabelos humedecidos na água, a jovem que guardava a porta molhou-lhe as pálpebras, os lábios e os dedos, a fim de que o seu olhar fosse santificado como o beijo da sua boca e a carícia das suas mãos.
Depois ele avançou para os bosques de Afrodite.
Através dos ramos, àquela hora já escuros, Demétrio avistou no poente um sol de púrpura que já não afrontava os olhos. Era o entardecer do mesmo dia em que o encontro com Crísis o tinha desvairado.
A alma feminina é de uma simplicidade em que os homens mal podem acreditar. Aonde há apenas uma linha recta eles procuram obstinadamente a complexidade de uma trama: mas encontram o vácuo e perdem-se."
Pierre Louÿs, Afrodite: costumes antigos, trad. Chagas Franco, Lisboa: Guimarães Editora, 2006, p. 73.

Monday, June 4, 2012

ESPERA


" - Tudo é extraordinário ou nada o é. Os dias parecem-se todos uns aos outros.
- Não, não. Outrora não era assim. Em todos os países do mundo, os deuses desceram à terra e amaram mulheres mortais. Ah! Em que leitos será preciso esperá-los, em que florestas será preciso procurá-los, a eles que são um pouco mais que os homens? Que preces será preciso dirigir-lhes para que eles venham, para que me ensinem alguma coisa ou me façam esquecer tudo? E se os deuses não quiserem já descer até mim, se eles estiverem já mortos, se estiverem já velhos, também eu morrerei, Djala, sem ter visto um homem que ponha na minha vida acontecimentos trágicos? "
Pierre Louÿs, Afrodite: costumes antigos, trad. Chagas Franco, Lisboa: Guimarães Editora, 2006, p. 21.

Sunday, June 3, 2012

QUIMERA


"D. Fernando () - O pai! Indiscrição fatal!
Pode um anjo nascer do coito de um chacal!"
Marcelino Mesquita, Leonor Teles, Porto: Livraria Civilização Editora, 1983, p. 149.

Saturday, June 2, 2012

CONSAGRAR


 
"Recordar-se não é o mesmo que lembrar-se; não são de maneira alguma idênticos. A gente pode muito bem lembrar-se de um evento, rememorá-lo com todos os pormenores, sem por isso dele ter a recordação. A memória não é mais do que uma condição transitória da recordação: ela permite ao vivido que se apresente para consagrar a recordação."
Sören Kierkegaard, O Banquete (in vino veritas), trad. Álvaro Ribeiro, 5ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1989, p. 32.