Tuesday, September 30, 2014
RESTOS DE UM SACRIFÍCIO
"Para quem assim se deslocou para o exterior
partir deixou de ser necessário já que as aves,
nas asas, transportam consigo os rudimentos
da paisagem em que depois ardem, lavadas
pelas sombras do crepúsculo. Cabe aos corvos
o sacrifício da noite, o degelo das palavras,
de que depois compõem o manto de folhas
que arrastam pelo sepulcro. São eles que,
com as garras, nos resguardam das passagens
que nos poderiam conduzir de novo ao vazio.
Pode-se contudo afirmar que nas suas cinzas
são ainda perceptíveis os perfis com que
os poemas nos desenham no rosto o apelo
do futuro? As palavras substituem-se
umas às outras mas, na sua queda,
o tempo que se desprende é o do absoluto."
Fernando Guerreiro, Outono, Lisboa: Black Sun, 1998, p. 39.
Monday, September 29, 2014
ANJO TONTO
"Ese ángel,
ese que niega el limbo de su fotografía
y hace pájaro muerto
su mano.
Ese ángel que teme que le pidan las alas,
que le besen el pico,
seriamente,
sin contrato.
Si es del cielo y tan tonto,
por qué en la tierra? Dime.
Decidme.
No en las calles, en todo,
indiferente, necio,
me lo encuentro.
El ángel tonto!
Si será de la tierra!
- Sí, de la tierra sólo."
Rafael Alberti, Sobre los ángeles, 9ª ed., Madrid: Cátedra, 2006, p. 112.
Sunday, September 28, 2014
SÃO MIGUEL
"De sua formosura
deixai-me que diga
É tão belo como um sim numa sala negativa.
É tão belo como a soca
Que os canaviais multiplica.
Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saída.
Belo como a última onda
que o fim do mar sempre adia.
É tão belo como as ondas
em sua adição infinita.
Belo porque tem do novo
o frescor e a alegria.
Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.
Como qualquer coisa nova
Inaugurando o seu dia."
João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina, São Paulo: TUCA, s.d., pp. 30-31.
Saturday, September 27, 2014
PERSISTIR
"Alguém perguntou a um ancião: «Por que é que tenho medo quando caminho no deserto?» E o ancião respondeu: «Por que ainda estás vivo»."
Ditos e Feitos dos Padres do Deserto, trad. Armando Silva Carvalho, Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, p. 160.
Friday, September 26, 2014
VERDEJANTE
"Pastagem onde o pastor descansa
Onde a flor da erva muda o curso dos rebanhos
Ombro do pastor onde derramo as lágrimas
Onde desconjunto a minha carne sobre a carne.
Quero ser água no curso do meu sangue - caudal que corre
No meu corpo como um eixo
Por mim todo em torrente e deslaça
A pulsação verdejante"
Daniel Faria, "Dos Líquidos", in Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 262.
Thursday, September 25, 2014
TERRITÓRIOS
"O que mais gostava de fazer era de desmontar coisas, até livros, até a Bíblia. Dizia que a Bíblia era como um manual de instruções, um manual de reparações para uma invenção inacabada. Uma das teorias do pai era a de que existiam partes da Bíblia que nunca ninguém lera, tal como existiam zonas do Mundo onde nunca ninguém pusera os pés."
Paul Theroux, A Costa de Mosquito, trad. Manuel Cordeiro, Lisboa: Círculo de Leitores, 1987, p. 14.
Wednesday, September 24, 2014
KAFKIANA
"«Ah!», disse o rato, «o mundo cada dia fica mais apertado. A princípio era tão grande que até me metia medo, depois continuei a andar e ao longe já se viam os muros à esquerda e à direita, e agora - e não passou assim tanto tempo desde que eu comecei a andar - estou no quarto que me foi destinado e naquele canto já está a armadilha em que vou cair.» «Tens de inverter o sentido de marcha», disse o gato, e comeu-o."
Franz Kafka, Parábolas e Fragmentos, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 105.
Tuesday, September 23, 2014
ASSIM A VIDA
"O sol do Outono, as folhas a cair,
A minha voz baixinho soluçando,
Os meus olhos, em lágrimas, beijando
A mística paisagem a sorrir...
Assim a minha vida transitando
Vai, à tona da terra... E fico a ouvir
Silêncios do outro mundo e o ressurgir
De mortos que me foram sepultando.
E fico mudo, extático, parado,
E quase sem sentidos, mergulhado
Na minha viva e funda intimidade.
A mais longínqua estrela em mim actua...
Inunda-me de mágoa a luz da lua,
E sou eu mesmo o corpo da saudade."
Teixeira de Pascoaes, Elegias, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 232.
Monday, September 22, 2014
COMPREENDER
"- Que estranho é o tempo! - disse o padre. - A criança é que não distinguiu que isso fora escrito, não agora, mas no passado. - Santo Agostinho perguntava-se de onde provinha o tempo. E disse que ele surgia do futuro, que ainda não existe, passava no presente, que não tem duração, e se sumia no passado, que deixou de existir. Não vejo por que não havemos de compreender o tempo melhor que uma criança. "
Graham Greene, O Fim da Aventura, trad. Jorge de Sena, 5ª ed., Porto: Asa II, 2002, pp. 249-250.
Sunday, September 21, 2014
NÃO SER TUDO
"- Sem dúvida que não. Eu é que não durmo, se bebo; e tenho de me levantar às seis.
- Para quê?
- Para dizer as minhas orações. Uma pessoa habitua-se.
- Nunca fui capaz de rezar grande coisa - disse Henry - desde rapaz. Costumava rezar para passar a jogar nas segundas categorias.
- E conseguiu?
- Joguei nas terceiras.
- Qualquer oração é melhor que nenhuma. Constitui, de certo modo, um reconhecimento do poder de Deus, uma espécie de louvor, suponho eu. - Não o ouvira, desde o princípio do jantar, dizer tanta coisa de uma vez.
- Por mim, seria capaz de supor - disse eu - que isso era assim como tocar na madeira ou evitar certos traços na rua. Pelo menos, nessa idade.
- Ora - respondeu-me -, não sou contrário a um pouco de superstição. Sempre dá às pessoas a ideia de que este mundo não é tudo. - E mostrou-me o nariz carrancudo. - Pode ser um princípio de sabedoria."
Graham Greene, O Fim da Aventura, trad. Jorge de Sena, 5ª ed., Porto: Asa II, 2002, p. 244.
Saturday, September 20, 2014
ALCANCE
"É bem verdade, pensava eu, mas não haverá algo por cima de tudo isso? Tudo isso fui descobrindo em mim, em Maurice também, e, todavia, por muito que avançasse, não cheguei ao fim.- E o amor de Deus?- É a mesma coisa. O homem cria Deus à sua própria imagem; nada mais natural, portanto, que o ame. Lembra-se, nas feiras, daqueles espelhos deformadores? O homem também criou um espelho que embeleza, no qual se vê amável, poderoso, justo e sábio. É essa a ideia que faz de si próprio. Reconhece mais facilmente aí que no espelho que deforma, em frente do qual se limita a rir; e como estima a imagem que o outro lhe devolve!"
Graham Greene, O Fim da Aventura, trad. Jorge de Sena, 5ª ed., Porto: Asa II, 2002, pp. 151-152.
Thursday, September 18, 2014
DIZER IDEIA
"É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem
É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora"
Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, p. 128.
Wednesday, September 17, 2014
TURBAR
"Não turbam a água dos meus olhos
As pedras que me atiram sobre o corpo
As tuas mãos vazias este muro
Branco me doem muito mais"
Daniel Faria, "Homens Que São Como Lugares Mal Situados", in Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 164,
Monday, September 15, 2014
NATUREZAS MORTAS
"Eras demasiado bela, Rosa, estás a expiar a tua brancura deslumbrante!
Ancestralmente, tudo é maléfico e perigoso nesses campos perdidos, a tempestade que faz transbordar os ribeiros, o raio que incendeia os telhados, a seca que mata as terras, queima a erva, destrói e mirra os frutos, a chuva que apodrece as colheitas e devasta as culturas."
Jacques Chessex, O vampiro de Ropraz, trad. Manuela Torres, Lisboa: Sextante Editora, 2007, p. 26.
Sunday, September 14, 2014
TRAZER
"Eu sentia-me a bandeira esfarrapada dum país que já não existisse, a bandeira inútil que ficou esquecida num mastro abandonado. As vagas rebentavam de encontro à praia com uma violência monótona: sempre, sempre...
Rebentavam como uma ideia fixa, obsessiva, torturante...
As ondas traziam para a praia o meu corpo dilacerado mas vivo, arrastavam-no para longe... arremessavam-no, de novo, impiedosamente contra as areias duras."
Graça Pina de Morais, Jerónimo e Eulália, Lisboa: Antígona, 2000, p. 89.
Saturday, September 13, 2014
VERDE (para L.)
"Verde que te quiero verde,
verde viento, verdes ramas.
Los dos compadres subieron.
El largo viento, dejaba
el la boca un raro gusto
de hiel, de menta y de albahaca.
Compadre! Dónde está, dime?
Donde está tu niña amarga?
Cuántas veces te esperó!
Cuantas veces te esperara,
cara fresca, negro pelo,
en esta verde baranda!"
Federico García Lorca, Romancero Gitano, Biblioteca General Salvat, s.l.: 1971, p. 18.
Friday, September 12, 2014
TEMPLUM
"«Sinto-me ainda um tanto desnorteado. Falou de baralhar e de dar cartas. Portanto jogam; com que fim? Por outro lado, se não está, como parece, muito disposto a morrer, por que motivo, no fim de contas, vem aqui?»«Bem se vê que está desnorteado», replicou Malthus, animando-se pouco a pouco. «Meu caro senhor, este clube é o templo da intoxicação. Se o meu fraco organismo pudesse tolerar mais frequentemente a excitação que isto causa, decerto viria a esta assembleia muito mais vezes. O sentido do dever, adquirido numa vida de valetudinário, em constantes dietas, preserva-me dos excessos, dos quais este é um, - que eu classificarei, se me permite, de última orgia. Todavia a todos experimentei», continuou Malthus, pondo a mão no braço de Geraldine, «todos sem excepção, e declaro-lhe, sob minha palavra de honra, que não achei nenhum que não fosse estúpido e falsamente encarecido. Desperdiçamos o tempo com o amor. Nego que o amor seja uma grande paixão; o medo é que sim, é com ele que nos devemos entreter se desejamos experimentar os mais intensos gozos da vida. Inveje-me, senhor, inveje-me: sou um grande cobarde!»"
Robert Louis Stevenson, O Clube dos Suicidas, trad. Cabral do Nascimento, Lisboa: Vega, s.d., p. 27.
Thursday, September 11, 2014
ESTRANGEIRO
"Entre a cidade e cidade
Depois do muro o abismo
Vento nos ombros a mão
Estrangeira na carne solitária
O anjo ainda o ouço
Mas já não tem rosto a não ser
O teu que não conheço"
Heiner Müller, O Anjo do Desespero, trad. João Barrento, Lisboa: Relógio D'Água, 1997, p. 67.
Wednesday, September 10, 2014
IDENTIDADE
"O sentido da infelicidade é muito mais fácil de comunicar do que o da felicidade. Parece que na miséria, tomamos consciência da nossa própria existência, que mais não seja sob a forma de um monstruoso egotismo: esta minha dor é individual, este nervo que se crispa pertence-me e não a outro. Mas a felicidade aniquila-nos: perdemos a identidade."
Tuesday, September 9, 2014
RESPIRAÇÃO
"Como são complicados os seres humanos, embora digam que um Deus nos fez, porque acho difícil conceber um Deus que não seja tão simples como uma equação resolúvel e tão transparente como o ar que respiramos."
Graham Greene, O Fim da Aventura, trad. Jorge de Sena, 5ª ed,, Porto: Asa II, 2002, p. 24.
Monday, September 8, 2014
HABILIDADE
"O Inferno não é aquém nem além-mar
O Inferno não é em nenhum lugar
O Inferno é duro de suportar.
É tão duro sonhar a posteridade
Ou assombrar um século devastado
E tão mais fácil é ter identidade.
Somente o desafio à nossa vontade,
O nosso gáudio em ter habilidade,
Sustém o nosso esforço de maldade."
W. H. Auden, Outro Tempo, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 2003, p. 59.
Sunday, September 7, 2014
FAMILIAR
"A lei das coisas é tombar
Interrogando-se:
Só o pássaro vive para o voo.
Quando pousa é igual ao homem que se senta
Para pensar.
O homem pensa que nada é mais profundo
Que depois de Deus os filhos e os sismos."
Daniel Faria, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 100.
Saturday, September 6, 2014
CABANA
"Quando a tua casa se vai tornando a cesta de vime
Pedes um rio, uma irmã junto da água
Uma margem que venha pousar-te fora da corrente
Quanto a tua casa está de frente para a derrocada
Como um ninho a fazer-se por um pássaro que não chega
Quando a luz agasalhada da mulher que toma banho
Toma o teu corpo nos braços
Quanto a tua casa é voltares a casa
Ao regaço aquático da tua mãe
Nadas nela quando dormes em palácios
Quando adormeces junto às sarças no meio dos rebanhos
Mergulhas nela como num baptismo
Quanto a tua casa se torna uma cabana
E dentro dela só há a claridade
Do teu corpo continuamente a ruir"
Daniel Faria, "Dos Líquidos", in Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 237.
Wednesday, September 3, 2014
O SENSO COMUM
"- Se julgas que me ofendes com essas afirmações enganas-te! O mais que podem imaginar-te, se porventura mencionares o sucedido a alguém de senso, é um caso patológico.
- As pessoas de senso não me interessam. Há no bom senso ou no senso comum um não sei quê de triste e de miserável que mata. As grandes tristezas, as grandes alegrias e os impulsos desregrados não destroem. O senso comum com a sua vil mediocridade aniquila. Sou um prodígio do senso comum e pergunto a mim mesmo se não estou morto. Há quantos anos morri? Julgo que há muitos anos. - A expressão de Natália metamorfoseara-se numa máscara complacente como quem escuta as pueris afirmações duma criança irresponsável ou de um louco. Jerónimo voltou a ouvir o ruído estrondoso da rebentação das ondas de encontro à orla da praia.
- As ondas rebentam de encontro à praia com uma violência monótona: sempre, sempre... Rebentam como uma ideia fixa, obsessiva, torturante... Gostaria de me sentir a bandeira esfarrapada dum país que já não existisse, a bandeira inútil que ficou esquecida num mastro abandonado! Gostaria de me sentir vivo!
- O que é isso, Jerónimo? Alguma peça de teatro?
Jerónimo virou sorrindo com uma expressão conciliadora.
- Não. Estou a falar.
- Mas ninguém fala assim!"
Graça Pina de Morais, Jerónimo e Eulália, Lisboa: Antígona, 2000, p. 360.
Tuesday, September 2, 2014
SEXTO ANO
"Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar."
José de Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro, Lisboa: Guimarães/Babel, 2010, p. 47.
Monday, September 1, 2014
ENTRAR
"O velho convidou-me a entrar com um gesto obsequioso da sua mão direita, dizendo ao mesmo tempo, num excelente inglês, mas de entoação bastante estranha:
- Bem-vindo a minha casa! Entre livremente e de sua própria vontade!"
Bram Stoker, Drácula, trad. Ana Maria Mendes Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 22.
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