"Riso etéreo
Que cintila
Na universal escuridão tranquila
Do mistério."
Teixeira de Pascoaes, Versos Pobres, in Obras Completas de Teixeira de Pascoaes, vol. VI, Amadora: Livraria Bertrand, s.d. p. 99.
"E assim, esse surdo total, como a perda de um dos sentidos acrescenta ao mundo tanta beleza como o faria a sua aquisição, é deliciado que se passeia agora numa Terra quase edénica onde o som ainda não foi criado. As cascatas mais altas limitam-se a desenrolar para os seus olhos a sua toalha de cristal, mais calmas que o mar imóvel, puras como cataratas do Paraíso. Como o ruído era para ele, antes da surdez, a forma perceptível que a causa de um movimento revestia, os objectos movidos sem ruído parecem sê-lo sem causa; despojados de toda a qualidade sonora, mostram uma actividade espontânea, parecem viver; movem-se, imobilizam-se, pegam fogo sozinhos. Sozinhos levantam voo como os monstros alados da Pré-História."
"Mas os deuses não mandam sinais e não advertem os que votaram antecipadamente a uma sorte fatal. Deixam-nos seguir o seu caminho, sem receios nem pressentimentos, e o destino, do fundo deles próprios, corre ao seu encontro!"
"De modo que, ao passo que até então, antes dessas visitas a casa de Elstir, antes de ter visto uma marinha dele onde uma jovem mulher vestida de bege ou de linho, num iate que arvorava a bandeira americana, introduziu o «duplo» espiritual de um vestido de linho branco e de uma bandeira na minha imaginação, que logo alimentou um desejo insaciável de ver imediatamente vestidos de linho branco e bandeiras junto ao mar, como se tal nunca me tivesse acontecido, ao passo que até então sempre diante do mar me havia esforçado por expulsar do meu campo de visão tanto os banhistas do primeiro plano como os iates de velas excessivamente brancas como um trajo de praia, tudo o que me impedisse de me persuadir de que contemplava a onda imemorial, essa que desenrolava já a sua mesma vida misteriosa antes do aparecimento da espécie humana, e até dos dias radiosos que me pareciam revestir do aspecto banal do universal Verão aquela costa de brumas e tempestades, assinalar nela um simples tempo de paragem, o equivalente daquilo que em música se chama um compasso para nada - pois era agora o mau tempo que me parecia tornar-se um acidente funesto, que não podia já ter lugar no mundo da beleza: desejava vivamente ir encontrar na realidade o que tanto me exaltava, e esperava que o tempo fosse bastante favorável para ver do alto da falésia as mesmas sombras azuis do quadro de Elstir."
"Se é verdade que o mar foi outrora o nosso meio vital onde tenhamos que remergulhar o nosso sangue para recuperar as nossas forças, o mesmo se passa com o esquecimento, com o nada mental; parecemos então ausentes do tempo durante algumas horas; mas as forças que entretanto se armazenaram sem ser gastas medem-no pela sua quantidade com tanta exactidão como os pesos do relógio ou os desmoronados montículos da ampulheta."
"Mas em qualquer domínio o nosso tempo tem a mania de apenas querer mostrar as coisas com o que as rodeia na realidade, assim suprimindo o essencial, o ato de espírito, que da realidade os isolou."
"No céu é que floresce a rosa, que tem na terra os espinhos. O que é o sonho senão a visão dum mundo desconhecido? E este sonho da vida eterna, que tem sempre acalentado a humanidade, o que é, o que pode ser, senão a visão do Paraíso?"
"Queixava-se de que retorciam e o incomodavam os jornais humorísticos e os anúncios de coca-cola pregados na parede. Estalava-lhe a cabeça um ruído semelhante ao das chicotadas. Certo raminho de malmequeres, que Joey lhe trouxera, inopinadamente se transformara num bando de canários, que cantavam ao desafio voando por todo o quarto."
"«Dos homens pode esperar-se tudo, são uns malandros», e, impressionada pela profundidade desta máxima pessimista, apropriara-se dela e repetia-a a cada passo com um ar desanimado que parecia dizer: «No fim de contas, nada é impossível, é essa a minha sina.» E por consequência desaparecera toda a virtude da máxima optimista que até então guiara Odette na vida: «Podemos fazer tudo aos homens que nos amam, eles são tão idiotas!», e que se exprimia no rosto pela mesma piscadela de olhos que poderia acompanhar palavras como estas: «Não tenham medo, ele não vai acabar nada.»"
"O ordenamento duma cidade está na coragem dos seus cidadãos, o dum corpo na sua beleza, o duma alma na sua sabedoria, o duma ação na sua excelência e o dum discurso na sua verdade."
"Aprazia-lhe observar o mundo do alto: cada coisa, vista lá de cima, perpendicularmente, adquire as suas verdadeiras proporções: rios navegáveis, pontilhões, estradas, homens que vão, homens que voltam, quadrúpedes impelidos, carros afastados em silêncio e depois, à medida que o avião ganha altura ganham razão os metafísicos: aparências, aparências; até essas jazidas de carbonato de cálcio que são os cemitérios, vistos lá de cima, se apresentam como pequenos rectângulos que já não metem medo. Uma companheira de voo sentada a seu lado tocou-lhe no ombro e, apontando com o indicador a terra, lá em baixo, com os dedos formou um dois, um cinco e dois zeros."