Friday, July 1, 2016

FATO ESCURO



"Somos o fato escuro que vestimos. 
Somos a casa imóvel que habitamos. 
Os montes que vimos níveos cimos
E o jardim onde vemos verdes ramos. 
Somos o nome que nos dão, herdado
Ou falso, igual à tela que vendemos, 
Somos o barco, a proa, o mastro, os remos, 
As luzes da ribalta e do mercado. 
Escravos de hoje, pálidos, vencidos!
A sorte grande, ai Deus! como a ganhar?
Temos a cor mutável dos vestidos, 
O olhar do vento e o hálito do mar...
Ó beira rio estreita das arcadas
Que nos promete o que depois recusa!
Somos a rua proibida, escusa
E o contacto das mãos, quando ignoradas...
Ao ler no espelho o manto que era seu
Mas cujo arminho lhe assentava mal
(Retrato mudo, diz-me: - Quem sou eu?)
A sua antiga, condição real...
Somos baptismo, enterro, casamento
E o que pudermos amanhã roubar!
E antes de força, amor ou pensamento
Somos o vento
E o hálito do mar..."


Pedro Homem de Mello, Bodas Vermelhas, 3ª ed., Porto: Porto Editora, 1979, pp. 102-103. 

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