Sunday, May 6, 2018

O SANTO ÍCONE



"A despeito do meu desejo
de contrição e alegria, 
amanheci rancorosa, 
reagindo a cabeça
à cata de um facão.
O cachorro percebeu, 
a criança também, 
se escondendo de mim
no colo de sua mãe. 
Havia dito
por que não me atendes, Deus?
Ou alguém rezava para mim?
Me olhando da parede
a Virgem Nossa Senhora
me oferecia o seu menino
à lâmina. 
Eu que delirava à noite
em tempo mais-que-perfeito
porque Portugal fizera
O Tratado de Tordesilhas, 
me rindo muito de abóboras, 
da palavra e da coisa, 
parei desafadigada
de que todas elas
não se chamassem caçambas. 
Como o louco que de repente
dispensa enfermeiro e pílulas, 
cortei canas com o facão
e fiquei chupando na sombra."


Adélia Prado, "Oráculos de Maio", in Com Licença Poética - Antologia, org. Abel Barros Baptista, Lisboa: Cotovia, 2003, pp. 121-122. 

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