Tuesday, August 31, 2010

BALANÇO MENSAL 08



"Estratos assentam uns sobre outros.
São o vestígio submerso da tua vida.
Em certos momentos
um deslocamento, uma torção, uma força
que reconhecerás pelos efeitos, denuncia
a iminente ruína.

Consagra o que te resta do porvir
Ao reforço desta casa.
Consagra-lhe a tua vigília e a tua aflição.
Consagra-lhe a inteligência do teu medo."


Luís Quintais, Duelo, Lisboa: Edições Cotovia, 2004, p. 79.

Monday, August 30, 2010

BARQUEIRO SEM REMOS



"«Porque o amor é forte como a morte» (ibid.), violento, como é a separação do espírito do corpo; pois soubemos que quando um homem está prestes a deixar este mundo e vê coisas espantosas, o seu espírito, como um barqueiro sem remos, sacudido pelo mar daqui e dali e incapaz de avançar, é também sacudido daqui e dali entre os membros do corpo, despedindo-se de cada um deles. E só com grande dor se dá a separação."


O Zohar - O Livro do Esplendor, introd. e selecç. Gershom Scholem,, trad. Ana Moura, 2ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, 2007, p. 72.

DOS MITOS E DAS MÁSCARAS



"Os mitos
são ininteligíveis máscaras.
Só no poema eles fazem sentido
e não nas regiões dos dispersos sentimentos
que a vida colhe
e na confusa leitura dos dedos
resgatando as sombras
e nas paixões que a distância
se encarrega de por nós
delir.
Por isso é importante
incluir o sofrimento
no rigor que mede a alma
para as coisas serem argila moldada,
figurações de sentido.
Que da razão
se subtraia a ilusória luz
e se fique com a noite que nela se deposita.
Uma flor nocturna
é tudo o que sobra
do esplendor dos versos."


Luís Quintais, A Imprecisa Melancolia, Lisboa: Teorema, 1995, p. 50.

Sunday, August 29, 2010

FRENTE AO SENTIDO VULNERÁVEL DOS DIAS



"perguntou por onde vai
a narração do secretário da corte
no

caderno
de bolso das ideias chuvosas
de Lisboa

eu tinha vindo de onde
era o outro lado, do Verão
polifónico das palavras
metade de mim debulhava
a fruta doce dos capítulos
a outra metade

ramificava num jogo de memórias
num aturado tratado sobre a respiração
de quem espera no silêncio do mundo

continuou fora de mim o texto
caminho provisório círculo síntese imperfeita
de lugar

qual o quadro concreto desta tristeza?

a minha noção de melancolia é
uma notícia naufragada um verso detido
na alfândega

nevoeiro muro branco vento que reúne
a areia na véspera das palavras
marinheiro ao largo da derrota ou
outra coisa definitiva o rigor

metafísico de um cigarro
frente ao sentido vulnerável
dos dias

escrevo antes que escureça alguém
veio passear-se no silêncio europeu da praça
chapéu inclinado sobre a orelha esquerda

astrónomos olhavam o extracto do céu de Setembro"

Miguel-Manso, Contra A Manhã Burra [cortado], 2ª ediç., Lisboa: Mariposa Azual, 2009, pp. 70-71.

Saturday, August 28, 2010

DA GULA



"- Venerável e sagrado patriarca - disse-lhe -, gostaria de saber o que entendeis por essa serpente que foi consumida.
Respondeu assim, com rosto sorridente:
- Esquecia-me, meu filho, de vos revelar um segredo que não vos podem ter contado. Sabeis que, depois de Eva e o seu marido terem comido do fruto proibido, Deus, para punir a serpente que os havia tentado, relegou-a para o corpo do homem. Não nasceu criatura humana que, para castigo do crime do seu primeiro pai, não alimente uma serpente no seu ventre, nascida da primeira. Vós chamais-lhes os intestinos e pensais que são necessários às funções vitais, mas ficai sabendo que não passam de serpentes enroladas sobre si próprias. Quando ouvis as vossas entranhas a gemer, é a serpente que assobia e que, graças à sua natureza comilona com a qual incitou o primeiro homem a comer de mais, pede também para comer; pois Deus que, para vos castigar, queria tornar-vos mortais como os outros animais, fez que esta insaciável vos obcecasse, a fim de que, se lhe désseis demasiada comida, sufocásseis ou se, quando com os dentes invisíveis com que esse esfomeado vos morde o estômago, lhe recusásseis o seu quinhão, ele gritasse, trovejasse, lançasse esse veneno a que os vossos doutores chamam a bílis e vos aquecesse de tal maneira que, pelo veneno que instala nas vossas artérias, em breve fôsseis consumidos. Enfim, para vos mostrar que os vossos intestinos são uma serpente que tendes no corpo, recordai que foram encontradas serpentes nas sepulturas de Esculápio, Cipião, Alexandre, Carlos Martel e Eduardo de Inglaterra, as quais se alimentavam ainda do cadáver dos seus hospedeiros."


Cyrano de Bergerac, Viagem à Lua - O Outro Mundo ou Os Estados e Impérios da Lua, trad. Maria Bragança, Lisboa: Guimarães Editores, 1999, pp. 34-35.

DA EVOLUÇÃO HERMENÊUTICA



"O dr. Winter não se deixou comover pela presença dos pastéis recém-saídos da frigideira e que ali estavam à sua frente, nédios, cheirosos, trigueiros, polvilhados de açúcar e canela. Lançou-lhes um olhar frio e tornou a encarar o interlocutor:
- Mas se acha que eles têm razão, como é que continua a exercer o sacerdócio duma religião baseada num mito pueril?
A manopla do padre avançou e os seus dedos pinçaram um pastel.
- A razão não tem nada a ver com a fé! - sentenciou ele, metendo o pastel na boca e empurrando-o com os dedos.
- Vosmecê leu Darwin e Lamarck, não leu?
- Li. E talvez melhor que o doutor.
- Aceita as leis da evolução e da seleção?
- Aceito.
- Então?
- Então quê?
- Como pode reconhecer ao mesmo tempo a autoridade da Bíblia?
- Mas a Bíblia fala uma linguagem simbólica, belo!
- Isso é um sofisma.
- A hipótese evolucionista não exclui necessariamente Deus. Ela é antes uma prova da suprema, da incomparável, da sutil e imaginosa inteligência do Todo-Poderoso. - Limpou com a ponta da toalha os beiços engraxados. - A Bíblia não passa duma versão poética do gênesis ao alcance da inteligência popular.
- Isso é uma heresia, padre!
- E ninguém mais autorizado que um padre para proferir uma heresia, belo! - exclamou o vigário, soltando uma gargalhada."

Érico Veríssimo, O Tempo e o Vento - O Continente, 6ª ed., Porto Alegre: Editora Globo, 1955, p. 604.

Thursday, August 26, 2010

DAS MAIS BELAS COISAS DO MUNDO 4



"Comprou-a e pendurou-a no lugar do conde de Artois - de modo que, num só relance, via-os juntos. Associaram-se no seu pensamento, ficando o papagaio santificado por esta relação como o Espírito-Santo, que a seus olhos se tornava mais vivo e mais compreensível. Para se fazer anunciar, Deus-Pai não pôde escolher uma pomba, porque esses animais não têm voz, mas sim um dos antepassados do Loulou. E Félicité rezava contemplando a imagem, mas, de vez em quando, voltava-se um pouco para a ave."


Gustave Flaubert, "Um Coração Simples", in Três Contos, trad. Telma Costa, Lisboa: Editorial Teorema, s.d., p. 46.

DAS MAIS BELAS COISAS DO MUNDO 3



"Então "um vapor elevou-se da água" (Génesis II, 6) para remediar a falta de água "humedecendo toda a face da terra" (ibid.). O vapor que se eleva é o desejo da fêmea pelo macho. Uma outra interpretação diz que tomemos o "não" do versículo precedente para o aplicar neste, em "vapor" - o que significa que Deus não mandou a chuva porque não se elevou o vapor; pois é de baixo que deve provir o impulso inicial para mover o poder de cima. Assim, para formar a nuvem eleva-se primeiro o vapor da terra. E do mesmo modo se eleva o fumo do sacrifício criando a harmonia de cima e a união de tudo; foi assim que a esfera celeste se tornou completa, perfeita. É de baixo que parte o movimento e tudo se torna perfeito depois. Se a comunidade de Israel não desse o impulso inicial, O de cima não se mexeria para se dirigir a ela. É pois o desejo de baixo que dá lugar à perfeição de cima."


O Zohar - O Livro do Esplendor, introd. e selecç. Gershom Scholem, trad. Ana Moura, 2ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, 2007, pp. 35-36.

Wednesday, August 25, 2010

DAS MAIS BELAS COISAS DO MUNDO 2


"Eu pensei que o meu avô me tinha mostrado como entender o coração e como sonhar com o coração para nele guardar cada momento, porque só os momentos nos pertencem verdadeiramente, tudo o resto pertence à natureza, seja feito de madeira ou ferro, pedra ou outra coisa qualquer."


valter hugo mãe, As mais belas coisas do mundo, Carnaxide: Alfaguara / Objectiva Editora, 2010, p. 30.

Tuesday, August 24, 2010

DAS MAIS BELAS COISAS DO MUNDO 1


"Eu pensei que as nuvens eram as coisas mais belas do mundo, porque se portam como algodões gigantes que sabem voar e às vezes também choram. As nuvens aprenderam a ser grandes sem transportarem mais do que o seu próprio espírito. Por isso podem ser tão transparentes, tão grandes e transparentes, limpas de tudo. O meu avô dizia que aprenderam a livrar-se do que é desnecessário e que não dão valor às coisas materiais. Navegam pelos ares feitas só de beleza."


valter hugo mãe, As mais belas coisas do mundo, Carnaxide: Alfaguara / Objectiva Editora, 2010, p. 24.

Tuesday, August 17, 2010

ENTRE O DESEJO E A VONTADE DUM HOMEM HÁ MUITAS VEZES UM ABISMO



"Entre o desejo e a vontade dum homem há muitas vezes um abismo. Se Sebastião José fizesse corresponder o desejo íntimo com a vontade incansável de lutador, decerto ficava no seu solar de Oeiras, e ninguém se opunha a isso. Mas o elo que o ligava à Corte desaparecera, o seu amigo, o seu soberano, morrera. Há na natureza do homem um espaço reservado à fidelidade, o espaço do samurai. Uma vez quebrado pela morte, esse pacto do guerreiro, que protege com o dever as mil disposições do homem livre, estabelece-se a funda divergência com a repetição da honra e do brio de servir. De facto, as pessoas servem para não se estranharem como criaturas sem prisões; buscam-nas para poder considerar a vida como lógica da sua vontade. Mas o desejo, que cintila na obscuridade da alma, é alguma coisa de sedicioso e que não pertence a qualquer sucesso ou glória."


Agustina Bessa-Luís, Sebastião José, 3ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 2003, p. 228.

Monday, August 16, 2010

AO SÉCULO DAS LUZES



"O Século das Luzes era, no fim de contas, resultado duma cultura burguesa, vulgar até à intimação, em que o sublime caía a golpes duma razão que tinha tudo para se impor: a mediocridade salutar e a superficialidade sonora. Montesquieu era um pavão, com muito de fictício e outro tanto de preconceituoso. Um homem que diz «aos trinta e cinco anos eu amava ainda», ou é um celerado ou um tolo. Voltaire, Rousseau, Diderot são plebeus, e é plebeu o carácter das Luzes. E mesmo quando a nobreza espia o momento de se introduzir no campo das Letras, é para procurar aí uma identidade nova que lhe permita sobreviver, mais do que restaurar as suas prerrogativas. Já não lhe interessam as prerrogativas, está reduzida a uma nuance. A própria Corte portuguesa era burguesa, com os seus vícios acentuados ao ponto de significarem uma impotência da imaginação. D. João V, o tipo de soberano que, como Eduardo VII de Inglaterra, teria de se chamar um canalha se não fosse rei, dava o tom à Casa de Bragança: nela, a vaidade presumia todos os desregramentos, da líbido e do erário."


Agustina Bessa-Luís, Sebastião José, 3ª ediç., Lisboa: Guimarães Editores, 2003, pp. 21-22.

Wednesday, August 11, 2010

DO DESESPERO

"Assim como talvez não haja, dizem os médicos, ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem os homens, que nem um só existe que seja isento de desespero, que não tenha, lá no fundo, uma inquietação, uma perturbação, uma desarmonia, um receio de que não se sabe o quê desconhecido ou que ele nem ousa conhecer, receio duma eventualidade exterior ou receio de si mesmo; tal como os médicos dizem duma doença, o homem transporta no espírito, em estado latente, uma enfermidade, cuja presença interna, raros relâmpagos de um medo inexplicável se revelam. E de qualquer maneira, jamais alguém viveu ou vive fora da cristandade sem desespero, como ninguém na cristandade sem ele viverá, se não for um verdadeiro cristão; pois que, a menos que o seja integralmente, nele subsiste sempre um grão de desespero."


Sören Kierkegaard, Desespero - A Doença Mortal, trad. Ana Keil, Porto: Rés- Editora, 2003, p. 31.

Tuesday, August 10, 2010

FAISAIENT UN TAPIS DE DÉGÔUT GLACÉ



"Os melancólicos eram tudo menos loucos
Eram conquistados deglutidos rejeitados
Pela massa opaca
Dos monstros práticos

Os melancólicos tinham a sua idade da razão
A idade da vida
Não estavam lá nos começos
No instante da criação
Coisa em que não acreditavam
E não souberam à primeira tentativa
Conjugar a vida e o tempo
O tempo parecia-lhes longo
A vida parecia-lhes curta
E dos cobertores manchados pelo inverno
Sobre coração sem corpo sobre corações anónimos
Faziam um tapete de nojo gelado
Mesmo em pleno verão."


Paul Éluard, Últimos Poemas de Amor, trad. Maria Gabriela Llansol, Lisboa: Relógio D'Água, 2002, p. 125.

Friday, August 6, 2010

A AUSÊNCIA



"Falo-te através das cidades
Falo-te através das planícies
A minha boca repousa na tua almofada
Os dois lados da parede opõem-se
À minha voz que te reconhece
Falo-te de eternidade

Ó cidades lembranças de cidades
Cidades envoltas nos nossos desejos
Cidades precoces e tardias
Cidades fortificadas cidades íntimas
Despojadas de todos os seus pedreiros
Dos seus pensadores dos seus fantasmas

Campo modelo de esmeralda
Viva vivaz sobrevivente
O trigo do céu sobre a nossa terra
Alimenta a minha voz eu sonho eu choro
Rio e sonho entre as chamas
No meio dos cachos de sol

E sobre o meu corpo o teu corpo estende
A toalha do seu espelho transparente."


Paul Éluard, Últimos Poemas de Amor, trad. Maria Gabriela Llansol, Lisboa: Relógio D'Água, 2002, p. 55.

Wednesday, August 4, 2010

ESCOLHER A ANGÚSTIA



"O problema, hoje, é que tudo o que dizemos tem um duplo sentido. A inocência acabou. Somos o que dizemos; mas o que dizemos está para além de nós, nesse magma de significados que nos arrasta, como as enxurradas, e onde temos de procurar uma outra palavra a que nos agarrarmos, como tábua de salvação. «Escolheste a angústia?», perguntou-me ela. Não, disse-lhe. preferi a luta de classes, o dogma, a revolução. Mas o que estava colado a tudo isso era a angústia. Via-me ser arrastado por entre destroços do que sobrara da utopia; e apesar de tudo, algo sobrevivia desse mundo que o tempo submergira no seu curso irreversível."


Nuno Júdice, O Anjo da Tempestade, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2004, p. 170.

Tuesday, August 3, 2010

AGOSTO, ÁGUA NO ROSTO



"Assoam-se-me à alma, quem
como eu traz desfraldado o coração sabe o que querem
dizer estas palavras.
A pele serve de céu ao coração."


Luís Miguel Nava, "Onde à Nudez", in Poesia Completa, org. Gastão Cruz, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p. 93.