"O dr. Winter não se deixou comover pela presença dos pastéis recém-saídos da frigideira e que ali estavam à sua frente, nédios, cheirosos, trigueiros, polvilhados de açúcar e canela. Lançou-lhes um olhar frio e tornou a encarar o interlocutor:
- Mas se acha que eles têm razão, como é que continua a exercer o sacerdócio duma religião baseada num mito pueril?
A manopla do padre avançou e os seus dedos pinçaram um pastel.
- A razão não tem nada a ver com a fé! - sentenciou ele, metendo o pastel na boca e empurrando-o com os dedos.
- Vosmecê leu Darwin e Lamarck, não leu?
- Li. E talvez melhor que o doutor.
- Aceita as leis da evolução e da seleção?
- Aceito.
- Então?
- Então quê?
- Como pode reconhecer ao mesmo tempo a autoridade da Bíblia?
- Mas a Bíblia fala uma linguagem simbólica, belo!
- Isso é um sofisma.
- A hipótese evolucionista não exclui necessariamente Deus. Ela é antes uma prova da suprema, da incomparável, da sutil e imaginosa inteligência do Todo-Poderoso. - Limpou com a ponta da toalha os beiços engraxados. - A Bíblia não passa duma versão poética do gênesis ao alcance da inteligência popular.
- Isso é uma heresia, padre!
- E ninguém mais autorizado que um padre para proferir uma heresia, belo! - exclamou o vigário, soltando uma gargalhada."
Érico Veríssimo, O Tempo e o Vento - O Continente, 6ª ed., Porto Alegre: Editora Globo, 1955, p. 604.
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