Sunday, February 6, 2011

QUEM CANTA CLAMA POR ÁGUA



"o poeta sabe
que todo o deus é um paradoxo formal.
o poeta sabe que o que o poema diz são
os lentos braços de mulher desse deus
repartindo as águas diante da pétrea fonte
coberta de pó.
água!, quem canta clama por água,
alguém sempre ama o seu metafórico som,
quando embate na oblíqua pedra escarlate do peito.
diz-se água dentro da noite, e as ânforas do verso transbordam
no crescente das luas das imagens incitadas às enseadas
dos dedos segurando o cinzel.
mas água!, o sangue pesa, e toda a água é levíssima,
como se cantasse perpetuamente;
toda a água é a coincidência do som e do gesto
na oblíqua brancura musical de um ofício
de esculpir o negrume que medeia pupila e pulso,
coração e tímpano; toda a água estremece
neste ofício de se saber uma ferramenta musical"


Luís Felício, o som a casa, Lisboa: Artefacto, 2010, p. 13.

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