Monday, September 30, 2013

A CRIANÇA



"Objecto que se usava para provocar a solidão. Os últi-
mos a conhecerem o seu emprego foram os druídas, 
que lhe chamavam «o prego da melancolia» e o cra-
vavam na testa das mulheres para que fossem puras
e isentas de precipitação. 
Há fósseis que permitem localizar o aparecimento des-
te utensílio durante todo o segundo glaciar."


Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação, Lisboa: Biblioteca Editores Independentes/Assírio & Alvim, 2008, p. 114. 

Sunday, September 29, 2013

MIGUEL



"A nota de ferocidade do bailado deve ser dada tanto pelo Rei como pelo Anjo; mas o Rei dá-la-á aliada ao grotesco e à impotência; o Anjo à ironia e à sublimidade. Para o fim do bailado, o Anjo dominou completamente o Rei: ajoelhou-o a seus pés, e tem-lhe a garganta apertada nas mãos ambas. Trá-lo assim, de rastos, até à boca de cena. A música pára, não acabada mas inoportunamente interrompida. O Anjo tem o Rei a seus pés, aperta-lhe o pescoço nas mãos, e estão ambos de perfil para o público. O Anjo levanta a cabeça muito devagar, até ficar com ela inteiramente voltada para cima."


José Régio, "Jacob e o Anjo" (Prólogo), in Teatro, vol. I, Lisboa: IN-CM, 2005, p. 101. 

Saturday, September 28, 2013

EDUCAÇÃO



" - É bem possível que seja verdade - disse Wilhelm -, pois cada indivíduo é suficientemente tacanho para querer educar o outro à sua imagem. Por isso, felizes são aqueles a quem o destino adopta, educando cada um à sua maneira. 
- O destino - replicou o outro, sorrindo - é um preceptor distinto, mas caro. Eu preferia sempre fiar-me na razão dum mestre humano. O destino, por cuja sapiência tenho todo o respeito, é capaz de ter no acaso, através do qual ele actua, um órgão muito desajeitado. Pois raramente este parece executar com exactidão e nitidez o que ele tinha decidido."


Johann W. Goethe, Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, vol. I, trad. João Barrento, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 1998, p. 163. 

Thursday, September 26, 2013

FOCUM



"E, com estas palavras, atirou para o lume o segundo maço. Werner quis detê-lo, mas não chegou a tempo. 
- Não entendo porque chegas a este extremo - disse este. - Por que razão é que estes trabalhos, ainda que não sejam excelentes, hão-de ser mesmo destruídos?
- Porque um poema ou deve ser excelente ou não deve sequer existir. Porque todo aquele que não tenha aptidão para realizar o melhor se deveria abster da arte e pôr-se seriamente em guarda contra todas as tentações nesse sentido."


Johann W. Goethe, Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, vol. I, trad. João Barrento, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 1998, pp.114-115. 

Wednesday, September 25, 2013

IGNORO



"[181] Esta dignidade é uma partícula da primeira: pois a mente humana, devido à sua natureza indefinida, quando cai na ignorância, faz de si regra do universo no que respeita a tudo aquilo que ignora."

Giambattista Vico, Ciência Nova, trad. Jorge Vaz de Carvalho, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 125.

Tuesday, September 24, 2013

O TECIDO DO MUNDO



" - Então não acredita no destino? Num poder que reina acima de nós e que tudo orienta para nosso bem?
- Não se trata, aqui, das minhas convicções, nem é sítio para eu lhe expor como procuro tornar de algum modo concebíveis coisas que são incompreensíveis para todos nós. A questão está apenas em saber quais são as concepções que contribuem para o nosso bem. O tecido deste mundo é feito de necessidade e de acaso. A razão humana coloca-se entre ambos e sabe dominá-los: trata o necessário como fundamento da sua existência e é capaz de orientar, conduzir e utilizar o acidental. Só na medida em que ela permanece firme e inabalável é que o homem merece ser chamado um deus da Terra. Ai daquele que se habitua, desde a juventude, a querer encontrar no necessário algo de arbitrário, que gostaria de atribuir ao acidental uma espécie de razão, obedecer à qual seria até uma religião! Significa isso outra coisa que não seja renunciar ao seu próprio entendimento e dar todo o lugar às suas tendências? Imaginamos que somos crentes, porque nos vamos arrastando sem reflectir, nos deixamos determinar por agradáveis acasos e, por fim, damos ao resultado duma vida assim oscilante o nome de orientação divina."




Johann W. Goethe, Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, vol. I, trad. João Barrento, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 1998, pp. 98-99. 

Monday, September 23, 2013

PARA A MEMÓRIA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA




"Quem sou já não interessa
se o disse na certeza
que começa outro ser"


António Ramos Rosa, "Voz Inicial", in Obra Poética, vol. I, Coimbra: Fora do Texto, 1989, p. 113. 

Sunday, September 22, 2013

MORAL



" - Talvez certos espíritos limitados considerem que o comportamento destas borboletas carece de moral, mas para que serve a moral? A única moral que prevalece é a vida. Só os mortos nunca têm razão."


Phillipe Claudel, O Relatório de Brodeck, trad. Isabel Saint-Aubyn, Alfragide: Asa II, 2009, p. 186. 

Saturday, September 21, 2013

TEMPO E EQUINÓCIO



"Assim parece quando se quer ler a repetição segundo os formulários distorcidos do nosso tempo linear; o que ameaça voltar é o que maior pavor nos inspira, a história cujo retorno converteria os nossos esforços mais ou menos estéreis pelo "progresso" na trabalhosa encosta que Sísifo sobe uma e outra vez sem proveito nem repouso. Mas a repetição que a narrativa busca inscreve-se no tempo cíclico dos mitos: o que volta não é a história, mas a poesia, a criação. O que volta na narrativa são os pilares da nossa condição humana: o encontro com o mar e a floresta, a nossa definição frente ao animal, a iniciação do adolescente no amor e na guerra, o triunfo da astúcia sobre a força, a reinvenção da solidariedade, os méritos do destemor e da piedade. E também as marcas da garra do tempo, a separação dos seres queridos, a exploração e a usura, a senilidade desfalecida, a morte."


Fernando Savater, A Infância Recuperada, trad. Miguel Serras Pereira, Porto: Ambar, 2006, pp. 39-40.

Thursday, September 19, 2013

ALTIVO



"Nunca soube a idade de Diodème. Em certos dias, parecia-me muito velho. Outras vezes, achava que contaria pouco mais anos do que eu. Tinha um rosto altivo. Um perfil de medalha romana ou grega. E o cabelo, muito negro e anelado, que lhe caía levemente sobre os ombros, lembrava-me os heróis dos tempos perdidos, os que dormitavam nas tragédias, nas epopeias, e que, por vezes, por efeito de um sortilégio, despertam ou perecem definitivamente. Podia igualmente recordar-me um desses pastores da Antiguidade que, como é sabido, são em geral deuses disfarçados que vêm visitar os homens para os seduzir, os guiar ou os perder."


Philippe Claudel, O Relatório de Brodeck, trad. Isabel St. Aubyn, Alfragide: Asa II, 2009, p. 30. 

Wednesday, September 18, 2013

CULPA



"Que culpa tenho eu
deste tempo cruel?
Que culpa tenho eu, 
se luto contra ele?
Que culpa tenho eu?
De que sou, então, réu?
Eu da glória desdenho.
Eu do mando desdenho. 
Que culpa tenho eu?
Alguma culpa tenho."


Armindo Rodrigues, Voz Arremessada ao Caminho, Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural, 1970, p. 51.

Tuesday, September 17, 2013

ALEXANDROS



"O humano destino fê-lo o homem. 
Aparte esse, não há nenhum destino."


Armindo Rodrigues, As Raízes e as Grades, Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural, 1970, p. 132. 

Monday, September 16, 2013

ASSISTIMOS DEVAGAR


"Atravessamos devagar como quem
não atravessa o sono o país obscuro
da morte - atravessamos devagar (como quem
não foi nascido) o país primitivo
da morte noite física memória
soterrada
no vaso dos dias na música possuída
por um país estrangeiro: discurso
gravado esculpido
na pedra do sono na pedra
nenhuma que somos
quando vagarosamente atravessamos
a medula o país corrosivo
da nossa peregrinação - "


Casimiro de Brito, Ode & Ceia - Poesia 1955-1984, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1985, p. 232. 

Saturday, September 14, 2013

LACHRIMAE ANTIQUAE



"Procura purificar-te à maneira de S. Paulo
Queimando uma cobra
inquirindo sobre o que traz no bico
a águia do Evangelista. 

Resiste ao destino do teu país.
Surpreende o poder do vento, a tempestade
que pode criar a doença e a morte
e envolve numa folha o corpo

do teu gato, a cortada erva do cigarro. 
Procura os que pagam pela guerra e fazem, 
ao brilho do sol, pesado despotismo."



João Miguel Fernandes Jorge, a jornada de cristóvão távora primeira parte, Lisboa: Editorial Presença, 1986, p. 29. 

Friday, September 13, 2013

PARA L. PELO SEU ANIVERSÁRIO



"O mundo foi, como é o Sol, uma esfera de oiro incandescente. Esse oiro persiste ainda em certas criaturas; corre-lhe nas veias com o sangue e é um sorriso que elas têm... Um sorriso... vede as asas da alegria!"


Teixeira de Pascoaes, O Bailado, Lisboa: Assírio & Alvim, 1987, p. 50. 

Thursday, September 12, 2013

RESSURGIR



"«Meu canto diz aos mortos: Ressurgi!
E eis que eles ressuscitam. Diz às pedras
Brutas: Amai, chorai! E eis que elas choram.»"


Teixeira de Pascoaes, O Doido e a Morte, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 281. 

Wednesday, September 11, 2013

PASSAR



"Feliz de quem passou, por entre a mágoa
E as paixões da existência tumultuosa, 
Inconsciente, como passa a rosa. 
E leve como a sombra sobre a água. 

Era-te a vida um sonho, indefinido
E ténue, mas suave e transparente...
Acordaste... sorriste... e vagamente
Continuaste o sonho interrompido."


Antero de Quental, "Zara", in Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p. 641. 

Tuesday, September 10, 2013

OBSERVAÇÃO



"O verdadeiro conhecimento, diz-nos Schlegel, 
é desinteressado - livre do objecto e apenas dele
recebendo, pela palavra, o que o compromete
com a aura do seu futuro. E de facto, o objecto
dilecto da observação é sempre a paisagem;
imagine-se que faltam algumas estacas
na subida ou que a corrente derruba os diques, 
obrigando as imagens a derreter-se de forma
a acompanhar o curso precipitado da leitura.
"Comment consentir à s' attendre", 
interroga-se a leitora, "renvoyant 
à l'avenir l'expression d'une passion 
qui nous appelle à sa démesure?"
Dir-se-ia que o homem, preso à indiferença, 
aguarda que o mundo se decida
quanto às suas formas futuras. 
Porque todo o saber vem
das cicatrizes - da ponte
que oscila para que,
na queda, o Ser se
regenere pelas águas 
que o invadem e
lhe brotam do fundo."


Fernando Guerreiro, Gótico, Lisboa: Black Sun Editores, s.d., p. 48. 

Monday, September 9, 2013

VIDA



"Como é frágil tudo quanto existe!
Como se extingue a mais formosa cor, 
Ai como tudo é transitório e triste, 
Como hoje é ódio o que ontem foi amor!...

Nem um momento à luz do sol resiste
Gota d'água nos lábios duma flor...
Se a luz que tu, minh'alma, descobriste
É luz eterna, é porque é a luz da Dor. 

Eu sou da Vida um doloroso grito;
Sou a injúria do pó que o vento leva,
Contra tudo o que Deus fez infinito...

De luto a noite veste a imensidade...
É outra maldição que vem da treva, 
Contra ti, sempiterna claridade!..."


Teixeira de Pascoaes, Sempre, in Belo, À Minha Alma, Sempre, Terra Proibida, Lisboa: Assírio & Alvim, 1997, p. 130. 

Sunday, September 8, 2013

TRONCO


"Qual tronco despido  
De folha e de flores.  
Dos ventos batido
No inverno gelado, 
de ardentes queimores
No estio abrasado, 
De nada sentido,  
Que nada ele sente...
Assim ao prazer, 
À dor indifr'ente.  
Vão-me horas da vida 
      Comprida    
      Correndo,       
      Vivendo.     
       Se é vida 
Tão triste viver."

Almeida Garrett, Flores sem Fruto, aprs. Paula Morão, 5ª ed.,  Lisboa: Editorial Comunicação, 1988, p. 57. 

Thursday, September 5, 2013

VIRTUDE



"Calaram-se todos por um momento. A marquesa, porém, interrompendo o silêncio, perguntou-lhe bruscamente:
- Acredita na virtude?
- Sim, acredito, sob a condição única de ela existir dentro de nós mesmos, do contrário, não, pois ficaria representando apenas um preconceito ou uma imposição, e nunca uma qualidade. Refiro-me, é claro, à virtude em geral. 
- E na da mulher?
- Essa é mais frágil, mais problemática - retorquiu Álvaro por entre um sorriso de dúvida - reside toda nos nervos...
- Como assim?
- É que são raríssimas as mulheres absolutamente virtuosas. 
- Não admite pois a honestidade na mulher?
- Conforme a acepção da palavra for tomada; se fala na honestidade convencional, dir-lhe-ei que existem efectivamente virtuosas, para os outros; doutra forma limito-me a duvidar.
- E porquê?
- Pela simples razão de que no mundo existem três ordens de mulheres e todas elas criminosas no amor. As conscientes da falta, aquelas a que o temperamento perde, e as grandes amorosas, nas quais reside um sentimento estranho - a consciência na inconsciência. Ora são estas para mim as únicas simpáticas, honestas e dignas de serem amadas."


António de Albuquerque, Marquês da Bacalhoa, Lisboa: IN-CM, 2002, pp. 188-189. 

Wednesday, September 4, 2013

GARDEN PARTY



"A um canto, um grupo barulhento de semivirgens, faces afogueadas, olhos vivos, agitando nervosamente os pequenos leques, coqueteavam com o Ribatejo e com o pequeno Luís Bacalhoa. Tanto o tio como o sobrinho pareciam interessar demasiado as raparigas, visto as gargalhadas francas estalando no ar como cristais chocando-se. 
E sobre todo esse quadro colorido e buliçoso pousava levemente, como que suspensa, uma poeira de oiro, luminosa e trémula, coada através das espessas ramarias dos plátanos e das copadas tílias do parque. 
Todas as pequenas mordiam delicadamente sanduíches, empadinhas ou frituras, com os seus dentes alvos de cadelinhas sensuais, humedecendo-os após com champanhe extra dry brilhando como oiro nos facetados copos de cristal de Veneza."


António de Albuquerque, Marquês da Bacalhoa, Lisboa: IN-CM, 2002, p. 61. 

Tuesday, September 3, 2013

MUNDO BARROCO


"Gracián ensina que quem quer agir vitoriosamente deve saber esperar pelas circunstâncias mais favoráveis à sua acção. A chave da acção enigmática é assim a detención, a dilação, a reserva, o protelar: o verdadeiro homem de acção raramente age, enquanto quem pretende forçar os eventos é muitas vezes arrastado pela pressa, pela facilidade, pela urgência, pela leviandade, pela desordem, pela angústia, pela imprudência... O enigma toma sempre a sua desforra, mesmo na hipótese mais favorável de a sorte ser propícia ao precipitado: o que rapidamente é cumprido, também rapidamente se desfaz. No mundo barroco, a detención tem uma dimensão ontológica que diz respeito ao próprio sentido da vida e do mundo: é a prega que não recusa a explicação mas a adia, por pensar que a virtualidade abrange maior plenitude do que a actualidade."


Mario Perniola, Enigmas - o Momento Egípcio na Sociedade e na Arte, trad. Catia Benedetti, Venda Nova: Bertrand Editora, 1994, pp. 39-40. 

Monday, September 2, 2013

QUINTO ANO






"Tombou da haste a flor da minha infância alada.
Murchou na jarra de oiro o pudico jasmim:
Voou aos altos Céus a pomba enamorada
Que dantes estendia as asas sobre mim.


Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada, 
E que era sempre dia, e nunca tinha fim
Essa visão de luar que vivia encantada, 
Num castelo com torres de marfim!

Mas, hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância,
Que me enchiam de Lua o coração,outrora, 
Partiram e no Céu evolam-se, a distância!

Debalde clamo e choro, erguendo aos Céus meus ais:
Voltam na asa do Vento os ais que a alma chora,
Elas, porém, Senhor! elas não voltam mais..."


António Nobre, , Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000, p. 163. 

Sunday, September 1, 2013

NOME



"Reinaldo, Diadorim, me dizendo que este era real o nome dele - foi como dissesse notícia do que em terras longes se passava. Era um nome, ver o quê. Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe. Da razão desse encoberto, nem resumi curiosidade."


João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, 37ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 134.