"Assim parece quando se quer ler a repetição segundo os formulários distorcidos do nosso tempo linear; o que ameaça voltar é o que maior pavor nos inspira, a história cujo retorno converteria os nossos esforços mais ou menos estéreis pelo "progresso" na trabalhosa encosta que Sísifo sobe uma e outra vez sem proveito nem repouso. Mas a repetição que a narrativa busca inscreve-se no tempo cíclico dos mitos: o que volta não é a história, mas a poesia, a criação. O que volta na narrativa são os pilares da nossa condição humana: o encontro com o mar e a floresta, a nossa definição frente ao animal, a iniciação do adolescente no amor e na guerra, o triunfo da astúcia sobre a força, a reinvenção da solidariedade, os méritos do destemor e da piedade. E também as marcas da garra do tempo, a separação dos seres queridos, a exploração e a usura, a senilidade desfalecida, a morte."
Fernando Savater, A Infância Recuperada, trad. Miguel Serras Pereira, Porto: Ambar, 2006, pp. 39-40.
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