Wednesday, November 30, 2016

PUNHAIS



"Solta-se o vento e, cerrado o arvoredo, 
das nuvens a nação se dispersa. 

É frágil o real, e tão inconstante, 
infatigável, também, toda a lei sua de câmbio:

gira a roda das aparências 
no eixo da imobilidade do tempo.

A luz desenha tudo e tudo incendeia, 
crava no mar punhais que são teias, 

Faz do mundo pira de reflexos:
e nós dele só centelha. 

Não é luz de Plotino, é luz terrestre, 
luz daqui, mas luz de inteligência. 

E reconcilia-se com o exílio:
pátria é o seu vazio, errante asilo."


Octavio Paz, Árvore Adentro, trad. Luís Alves da Costa, Lisboa: Vega, 1994, p. 19. 

Tuesday, November 29, 2016

ARMIDA



"Entre aquele verde solene as flores eram poucas e finos os perfumes. Não o fabuloso jardim de Armida, mas um bosque enfeitiçado onde talvez os estudantes se transformem em árvores; primeiro perdem a voz, depois lentamente enraízam-se no solo, os braços desenvolvem-se em ramos, os dedos em folhas, a cabeça enfia-se no tronco como faz a tartaruga na carapaça. Cada um pode escolher a essência em que se transformar, cânfora, magnólia, cipreste chinês. O dia depois do bosque é apenas mais denso e a casca sangrará naquela árvore na qual o estudante solitário gravará um coração trespassado. Mas ninguém grava o coração nos troncos de árvore do jardim encantado."


Cesare Brandi, Teoria do Restauro, trad. Cristina Prats, José Delgado Rodrigues. José Aguiar, Nuno Proença, Amadora: Edições Orion, 2006, p. 190. 

Monday, November 28, 2016

MIRÍADES



"Nós vivemos miríades de segundos e, no entanto, não há nunca mais do que um, um só que põe em ebulição todo o nosso mundo interior; o segundo em que (Stendhal descreveu-o) a flor interna, já impregnada de todos os seus sucos, realiza, como que num relâmpago, a sua cristalização - segundo mágico, semelhante a esse da procriação e, como ele, oculto no âmago do próprio corpo: invisível, intangível, imperceptível - mistério que se vive uma só vez."


Stefan Zweig, Confusão de Sentimentos (Notas íntimas do Professor R. de D.), 10ª ed., trad. Alice Ogando, Porto: Civilização Editora, 1969, p. 9. 

Sunday, November 27, 2016

MÁSCARAS



"Nada toca tão profundamente o espírito de um rapaz do que uma dor grave e viril: o Pensador de Miguel Ângelo, olhando fixamente o seu próprio abismo, a boda de Beethoven, amargamente concentrada - essas máscaras trágicas do sofrimento do universo, comovem muito mais fortemente uma sensibilidade, que não está formada, do que a melodia argêntea de Mozart ou a luz rica que envolve as figuras de Leonardo. 
A beleza está nela própria, a juventude não precisa de idealizar; no excesso das suas forças vivas, ela aspira ao trágico e consente voluntariamente que a melancolia sugue docemente o seu sangue ainda moço. Daí vem que a mocidade está eternamente preparada para a desgraça e estendendo, em espírito, a mão fraternal a cada amargura."


Stefan Zweig, Confusão de Sentimentos (Notas íntimas do Professor R. de D.), 10ª ed., trad. Alice Ogando, Porto: Civilização Editora, 1969, pp. 78-79. 

Saturday, November 26, 2016

REFLEXÃO


"- Assim é, amigo - admitiu o monstro. - Mas que hei de eu fazer? São duas desgraças que me afligem: uma é a ruína da minha casa, a outra é ter de separar o coração de um amigo, como tu. Isto é próprio daqueles que já estão feridos pelo destino. E disse-se:

92. Qualquer que seja o meu saber, o teu é duas vezes maior; sem amante e sem marido, para que estás a olhar, mulher nua?"


Anónimo, Panchatantra, trad. L. Pereira Gil, Lisboa: edição Amigos do Livro, s.d., Livro IV, p. 301. 

Friday, November 25, 2016

A EXPULSÃO


"Fomos expulsos do Paraíso, mas o Paraíso não foi destruído por isso. Esta expulsão é de algum modo uma possibilidade, pois se não tivéssemos sido expulsos, o Paraíso deveria ter sido destruído."

Franz Kafka, Antologia de Páginas Íntimas, trad. Alfredo Margarido, 3ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 2002, p. 167. 

Thursday, November 24, 2016

ARREFECE




"Foi-se o Verão com todas as suas rosas
O sol, as flores frondosas e o fragor, 
A chuva e o calor que fortalece
Até Outono falece. 

Sim, até o fresco Outono se vai
E vem o Inverno que mais arrefece;
Cada dia mais frio o gelo cai
E o último verdor esvanece."


Christina Rossetti, O Mercado dos Duendes e outros poemas, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 2001, p. 93. 

Wednesday, November 23, 2016

UTERINO



"Então a mulher disse: 
- Quem come todos os dias destes frutos semelhantes à ambrósia, terá certamente um coração de ambrósia. Portanto, se tens alguma estima por mim, por ser tua mulher, proporciona-me o coração desse macaco, para que, comendo-o, fique isenta de velhice e de morte e goze contigo de muito prazer.
- Não digas isso, querida - respondeu o monstro - porque esse macaco é como um irmão para mim; e além disso, matá-lo não é possível. Esquece, pois, esse vão capricho, pois disse-se: 

5. O homem é filho, por um lado, da sua palavra, e pelo outro, da sua mãe; o parentesco que nasce da palavra está, segundo dizem, acima do que se tenha com um irmão uterino."


Anónimo, Panchatantra, trad. L. Pereira Gil, Lisboa: edição Amigos do Livro, s.d., Livro IV, pp. 264-265. 

Tuesday, November 22, 2016

ATROZ


"106. Se cortando árvores, matando animais e cometendo cruéis atrocidades se vai para o céu, quem irá para o inferno?"

Anónimo, Panchatantra, trad. L. Pereira Gil, Lisboa: edição Amigos do Livro, s.d., Livro III, p. 239. 

Sunday, November 20, 2016

O MUNDO



"O mundo! o mundo! - E que me importa o mundo?
- Velho invejoso, a resmungar baixinho!
Nada perturba a paz serena e doce
Que as rolas gozam no seu casto ninho."

Casimiro de Abreu, As Primaveras, 6ª ed., Porto: Lello & Irmão, 1945, p. 106. 

Saturday, November 19, 2016

PRO PAUPERE



"Com efeito, vemos mulheres mal feitas e feias em todos os aspetos
serem adoradas e gozar de grande prestígio.
E os homens riem-se uns dos outros e dão conselhos 
para aplacar Vénus, porque estão atingidos
por uma paixão vergonhosa e os desgraçados
quase nunca percebem as suas próprias e enormes desgraças. 
A preta é "cor de mel", a suja e fedorenta é "simples", 
a esverdeada é uma "estátua de Palas", a seca e nervosa é uma "gazela", 
a baixota e anã é uma das Graças, um "puro grão de sal", 
a corpulenta e matulona é um "portento", "cheia de majestade", 
a gaga, incapaz de falar, diz-se que "ceceia", a muda é "recatada", 
mas, se é impetuosa, de mau feitio e desagradável, torna-se uma "tocha ardente", 
a que tem lábios grossos é "toda ela um beijo", 
aquela que, de tão magra, a custo se mantém viva
é um "terno amorzinho", 
a meio-morta de tosse é "delicada", 
se for cheiinha e mamalhuda, é "Ceres em pessoa, 
depois de dar o peito a Baco", 
a de nariz achatado é uma "Silena" e uma "sátira", 
a de lábios grossos é um "ninho de beijos". 
E seria um nunca acabar se eu quisesse continuar por aí fora. 
Mas seja qual for a designação honrosa que queiras dar
àquela que emana sensualidade de todo o seu corpo, 
a verdade é que há mais mulheres no mundo, 
a verdade é que vivemos antes sem esta, 
a verdade é que faz as mesmas coisas que a feia (e sabemos que as faz)
e ela própria se conspurca a si mesma, a infeliz, com cheiros nauseabundos, 
a ponto de as servas fugirem para longe e rirem às escondidas."


Lucrécio, Da Natureza das Coisas, IV, 1153-1180,  trad. Luís Manuel Gaspar Cerqueira, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2015, p. 257. 

Friday, November 18, 2016

EPICURIA



"Deuses de um céu que rosas vãs me atira!
Não estais num além que brilha nas estrelas. 
Reais nas horas, sois a maravilha
Que reverdece as nossas folhas secas.

A vossa dispersão, se recolhida
Num deus compacto de pupilas cegas
Rejeito, ó Numes frequentadores da vida
Nos deleites, nos risos, nas adegas. 

Para noites de alma dever à eternidade
É breve a vida. Melhor à claridade
Me dou de um afável anjo transitivo. 

E mais não sei que plenilúnio empreste
Ao sangue, instantâneos deuses tal como este
Soneto honestamente inconclusivo."


Natália Correia, "Sonetos Românticos", in Antologia Poética, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, pp. 258-259. 

Thursday, November 17, 2016

AO ENCONTRO



"Mas quando pela quarta vez se lançou como um deus, 
então, ó Pátroclo, apareceu o termo da tua vida. 
Pois ao teu encontro em potente combate veio Febo, 
deus terrível. E Pátroclo não o viu caminhando entre a multidão, 
pois vinha ao seu encontro envolto em denso nevoeiro."


Homero, Ilíada, XVI, 786-790, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Cotovia, 2009 [reimp.], p. 342. 

Wednesday, November 16, 2016

AITIAI



"Sabia que o amor é causado apenas pelo enchimento dos átomos que desejam juntar-se a outros átomos. Sabia que a tristeza causada pela morte não passa das piores ilusões terrestres, pois que a morta não deixara de ser infeliz e de sofrer, enquanto aquele que a chorava se afligia com os seus próprios males e pensava tenebrosamente na sua própria morte. Sabia que não fica de nós qualquer simulacro para verter as lágrimas sobre o próprio cadáver, estendido aos nossos pés. Mas, conhecendo exatamente a tristeza e a morte, e que são vãs imagens quando contempladas do espaço calmo onde temos de nos fechar, continuou a chorar, e a desejar o amor, e a temer a morte."

Marcel Schwob, Vidas Imaginárias, trad. Telma Costa, Lisboa: Teorema, s.d., p. 44. 

Tuesday, November 15, 2016

REBORDO




"Colocou ainda a grande força do rio Oceano, 
à volta do último rebordo do escudo bem forjado."


Homero, Ilíada, XVIII, 606-607, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Cotovia, 2009 [reimp.], p. 385. 

Monday, November 14, 2016

SELENITAS



"Envelhecendo, os Lunares não morrem (no sentido habitual da palavra) acabando por diluir-se em fumo, transformados em ar."

Luciano, História Verdadeira, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: & etc, 1981, p. 39. 

Sunday, November 13, 2016

LIQUIDI COLOR AUREUS IGNIS



"É também por esta razão que aquela veloz cor dourada
de fogo líquido voa para a terra, por ser necessário 
que as próprias nuvens tenham um grande número de átomos de fogo."


Lucrécio, Da Natureza das Coisas, VI, 205-207,  trad. Luís Manuel Gaspar Cerqueira, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2015, p. 353. 

Saturday, November 12, 2016

BRECHA



"Por conseguinte, os homens tremem pelas cidades, com um duplo pânico: 
receiam os tectos por cima, receiam as cavernas por baixo, 
não vá a natureza da terra dissolver-se subitamente
ou abrir-se, rasgando lentamente as suas fauces e, em confusão, 
querer preenchê-las com as suas próprias ruínas."


Lucrécio, Da Natureza das Coisas, VI, 596-600,  trad. Luís Manuel Gaspar Cerqueira, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2015, pp. 371-372. 

Friday, November 11, 2016

VIVÊNCIAS



"Os muros gretados são muito mais belos
que os muros lisos."



Mário Quintana, "A Vaca e o Hipogrifo", in Poesia Completa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 548. 

Wednesday, November 9, 2016

INFINDO


"Após um dia fatigante para todos, deitaram-se cedo, logo depois do jantar. O silêncio infindo do campo, quase religioso, envolvia a pequena aldeia: um silêncio tranquilo, penetrante, que se estendia até aos astros. As mulheres, habituadas aos serões tumultuosos do estabelecimento público, sentiam-se emocionadas por este surdo repouso dos campos adormecidos. Sentiam-se arrepios, não de frio, mas de solidão, vindos de corações inquietos e perturbados."

Guy de Maupassant, A Casa Tellier, trad. Isabel St. Aubyn, Lisboa: Círculo de Leitores, 1992, pp. 27-28. 

Tuesday, November 8, 2016

ROTA



"O mesmo Diágoras, viajando de barco, foi apanhado por uma tempestade; a tripulação, cheia de medo e aterrorizada, disse que fora não sem justiça que isto lhes sucedera, pois tinham-no recebido no seu navio. Ele apontou-lhes então muitos outros navios que se encontravam na mesma rota e na mesma aflição, e perguntou-lhes se eles pensavam mesmo que havia um Diágoras em cada navio. A verdade é que a fortuna favorável ou adversa nada tem a ver com o que tu és ou com o modo como vives."

Marco Túlio Cícero, Da natureza dos deuses, III, 89., trad. Pedro Braga Falcão, Lisboa: Nova Vega, 2004, p. 164.

Monday, November 7, 2016

VINHA



"Ninguém mo ensinou mas descobri por mim
Uniste aos nossos pulsos o milagre das mãos

A vara que me auxilia é de longe que a arranca
Aquele que faz a monda. É já de longe que se abre
No interior da morte

Não adianta escolher um terreno onde estacá-la
De pedra em pedra o rio não salta para fora
Da corrente. De silêncio em silêncio não se guarda 
No peito como pulsação o segredo
Não nascem como o lírio as pequenas constelações. Nem achá-las iguala
As quatro folhas do trevo

Ninguém planta a vinha como quem descobre uma nova fonte
Mais do que o vinho ninguém aguarda a sede nova
Ninguém se enxerta por si mesmo ano após ano

Ninguém mo ensinou fui eu que descobri"


Daniel Faria, "Dos Líquidos", in Poesia, ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p.  328. 

Sunday, November 6, 2016

ADIVINAÇÃO



"Grande é a autoridade dos áugures; e quanto à arte dos harúspices, não é ela divina? Quem observa este tipo de exemplos, e muitos outros do mesmo género, não há-de ser forçado a admitir que os deuses existem? Alguém que contrate um intérprete necessariamente existe; ora, se existem intérpretes dos deuses, então devemos admitir que os deuses existem. Talvez nem tudo o que se vaticina ocorra. Mas não é pelo facto de nem todos os doentes ficarem curados que a medicina não existe. São enviados sinais pelos deuses quanto ao futuro, e se alguns homens erram em interpretá-los, o que falhou não foi a natureza divina, mas a interpretação dos homens."

Marco Túlio Cícero, Da natureza dos deuses, II, 12., trad. Pedro Braga Falcão, Lisboa: Nova Vega, 2004, p. 70. 

Saturday, November 5, 2016

DIVINO


"Nem percebo por que é que Epicuro preferiu dizer que os deuses são semelhantes aos homens, e não que os homens são semelhantes aos deuses. Perguntar-me-ás qual é a diferença entre 'este ser igual ao outro' ou 'o outro ser igual a este'. Compreendo, mas sempre te digo que a figura e a forma dos deuses não veio dos homens, Os deuses sempre existiram e não tiveram nascimento, se de facto forem imortais. Os homens, pelo contrário, nascem. Segue-se então que a forma humana já existia antes do homem, e era essa a forma dos deuses imortais. Não devemos pois dizer que eles têm uma forma humana, mas sim que a nossa é que é divina."

Marco Túlio Cícero, Da natureza dos deuses, I, 90, trad. Pedro Braga Falcão, Lisboa: Nova Vega, 2004, p. 52. 

Thursday, November 3, 2016

TIMBRE




"Caprichos de lilás, febres esguias, 
Enlevos de Ópio - Íris-abandono...
Saudades de luar, timbre de Outono, 
Cristal de essências langues, fugidias...

O pajem débil de ternuras de cetim, 
O friorento das carícias magoadas; 
O príncipe das Ilhas transtornadas - 
Senhor feudal das Torres de marfim..."


Mário de Sá-Carneiro, "Indícios de Oiro", in Poesia, Lisboa: Círculo de Leitores, 1990, p. 163. 

Wednesday, November 2, 2016

DIA DOS MORTOS



"Vi quanto basta. A visão confirmou-se em todos os ambientes. 
Tive a minha conta. Rumores urbanos, de noite, em pleno dia, e continuamente. 
Conheci o suficiente. Os decretos da vida. - Ó Rumores e Visões!
Estou de partida para novos afectos e ruídos!"


Arthur Rimbaud, O Rapaz Raro - Iluminações e Poemas, trad. Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio d'Agua, 1998, p. 53. 

Tuesday, November 1, 2016

SUPRA EIDOLON



"eu caminhei sempre pela beira da vida
pela beira de copos de abismos e edifícios
caminhei sem saber que caminhava/ caminhei

eu caminhei sempre pela ponta de garfos
pela ponta de lanças de bibelôs partidos
caminhei sem me dar conta/ eu caminhava

eu caminhei sempre pela borda virada da asa
pela estampa dobrada onde uma seda se rasga
e se quebra/ eu caminhei num sorriso quebrado

eu caminhei sempre pela rua errada pelo beco
sem saída onde a única saída é só caminhar e
caminhar de uma corda à outra/ eu caminhei"

Flávio Caamaña, Aquedutos, São Paulo: Patuá, 2016, p. 100.