"Com efeito, vemos mulheres mal feitas e feias em todos os aspetos
serem adoradas e gozar de grande prestígio.
E os homens riem-se uns dos outros e dão conselhos
para aplacar Vénus, porque estão atingidos
por uma paixão vergonhosa e os desgraçados
quase nunca percebem as suas próprias e enormes desgraças.
A preta é "cor de mel", a suja e fedorenta é "simples",
a esverdeada é uma "estátua de Palas", a seca e nervosa é uma "gazela",
a baixota e anã é uma das Graças, um "puro grão de sal",
a corpulenta e matulona é um "portento", "cheia de majestade",
a gaga, incapaz de falar, diz-se que "ceceia", a muda é "recatada",
mas, se é impetuosa, de mau feitio e desagradável, torna-se uma "tocha ardente",
a que tem lábios grossos é "toda ela um beijo",
aquela que, de tão magra, a custo se mantém viva
é um "terno amorzinho",
a meio-morta de tosse é "delicada",
se for cheiinha e mamalhuda, é "Ceres em pessoa,
depois de dar o peito a Baco",
a de nariz achatado é uma "Silena" e uma "sátira",
a de lábios grossos é um "ninho de beijos".
E seria um nunca acabar se eu quisesse continuar por aí fora.
Mas seja qual for a designação honrosa que queiras dar
àquela que emana sensualidade de todo o seu corpo,
a verdade é que há mais mulheres no mundo,
a verdade é que vivemos antes sem esta,
a verdade é que faz as mesmas coisas que a feia (e sabemos que as faz)
e ela própria se conspurca a si mesma, a infeliz, com cheiros nauseabundos,
a ponto de as servas fugirem para longe e rirem às escondidas."
Lucrécio, Da Natureza das Coisas, IV, 1153-1180, trad. Luís Manuel Gaspar Cerqueira, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2015, p. 257.
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