"Aquele que se livrou dos seus demónios importuna-nos com os seus anjos."
Henri Michaux, Antologia, trad. Margarida V. de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, p. 224.
"Aquele que se livrou dos seus demónios importuna-nos com os seus anjos."
"A alumiá-lo, não havia senão o alvor azulado que o fantasma ia esparzindo numa área de alguns passos. Inútil prudência a sua, porém! Bem adivinhava que tantas cautelas impacientavam a companheira. E, tendo ele próprio grande pressa de chegar, não sabendo embora aonde, fechou os olhos. Começou a correr, sempre levado pela mão espectral da que parecia ir voando. E o caso é que ou se desviavam dele, agora, as arestas das penhas e os monstruosos caules das árvores, ou também já ele os varava, como se também o seu corpo houvera deixado de ser matéria. Demais, já se nem sentia trilhar ou roçar o chão. Era como se fosse correndo, pairando, ao de cima do solo."
"Como um impulso de amor de todo o ser o atirava para ela, o fantasma recuou com os olhos astrais fitos nele, um dedo hirto nos lábios. E o rei reconheceu tratar-se dum fantasma, porque, recuando, ela atravessara o tronco da magnólia, que passava através dela como de fumo."
"Estava ali o mundo exaltado do Oriente, uno e total, exprimindo o cúmulo do êxtase em nome de todos, de todos sobre a Terra."
"Vida em comum: perda de si, mas decréscimo dos enigmas."
"Com efeito, é esta a verdadeira causa de todas estas diferenças: o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, só sabe viver na opinião dos outros e, por assim dizer, é apenas do seu juízo que tira o sentimento da sua própria existência."
"Nunca se imaginava a gozar com ele uma perfeita vida de felicidade. Só via diante de si tragédias, desgostos, sacrifícios. No sacrifício sentia orgulho, quanto à renúncia era forte, mas não confiava na coragem que devia ter para suportar vida quotidiana. Preparara-se para as coisas nobres e sublimes, como a tragédia; o que a assustava era a perspectiva do dia-a-dia, medíocre e trivial."
"Em segundo lugar, qualquer homem pode comprovar por si mesmo que a imagem de alguma coisa vista por reflexão num vidro, ou na água, ou em algo semelhante, não é nada no vidro ou por trás do vidro, nem na água ou por baixo da água; o que é a segunda proposição."
"Por vezes, a vida toma conta de alguém, carrega-lhe com o corpo, cumpre-se o seu destino, e todavia parece irreal, é como se passasse muito leve..."
"Nos fins de semana, todas as refeições do dia eram anunciadas por três gongos: pequeno, médio e grande. Naquele momento, o primeiro anunciava o pequeno-almoço na sala de jantar. A sua vibração suscitou o pensamento de que em vinte e seis passos se reuniria à sua jovem cúmplice, cujo almíscar delicado ainda conservava na cova da mão - e o afectava com uma espécie de radiante espanto: acontecera, realmente? Somos realmente livres? Alguns pássaros engaiolados - segundo dizem amadores chineses estremecendo com o riso dos gordos - atiram-se contra as grades (e permanecem alguns minutos inconscientes) todas as santas manhãs, logo ao despertarem, num ímpeto que é a continuação de um sonho, que tem laivos de sonho - embora, durante o resto do tempo, esses iridescentes prisioneiros se mostrem muito vivos, dóceis e palradores."
"Assim, poesia é o nome que dou a certas perturbações que em mim provocam as palavras (os mortos) e de que eu sou o local de encontro, o hospedeiro e o portador. Ao fim e ao cabo, procuro provocar pelas palavras ou fazer que em mim aconteçam as transformações que Carpenter ou Cronenberg produzem nos seus filmes."
"As crianças do tipo dela conseguem excogitar as mais puras filosofias. Ada criara o seu sistemazinho próprio. Mal decorrera uma semana depois da chegada de Van, achara-o digno de ser iniciado na sua teia de sabedoria. A vida de um indivíduo compunha-se de certas coisas classificadas: «coisas reais», que eram infrequentes e inestimáveis; «coisas» simplesmente, que constituíam o material rotineiro da vida, e «coisas fantasmas», também chamadas «nevoeiros», como febre, dor de dentes, terríveis desilusões e morte. A ocorrência simultânea de três ou mais coisas formava uma «torre» ou, se ocorriam numa sucessão imediata, uma «ponte». As «torres reais» e as «pontes reais» eram as alegrias da vida e, quando as torres ocorriam em série, experimentava-se um êxtase supremo; mas isso quase nunca acontecia. Em certas circunstâncias e a uma certa luz, uma «coisa» neutra podia parecer ou até tornar-se verdadeiramente «real», ou, inversamente, podia coagular num nojento «nevoeiro». Quando o venturoso e o desventuroso se misturavam, simultaneamente, ao longo de uma duração gradual, estava-se perante «torres em ruínas» e «pontes partidas»."