Wednesday, February 28, 2018

VERDADE



"Aquele que se livrou dos seus demónios importuna-nos com os seus anjos."

Henri Michaux, Antologia, trad. Margarida V. de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, p. 224. 

Tuesday, February 27, 2018

ALUMIAR


"A alumiá-lo, não havia senão o alvor azulado que o fantasma ia esparzindo numa área de alguns passos. Inútil prudência a sua, porém! Bem adivinhava que tantas cautelas impacientavam a companheira. E, tendo ele próprio grande pressa de chegar, não sabendo embora aonde, fechou os olhos. Começou a correr, sempre levado pela mão espectral da que parecia ir voando. E o caso é que ou se desviavam dele, agora, as arestas das penhas e os monstruosos caules das árvores, ou também já ele os varava, como se também o seu corpo houvera deixado de ser matéria. Demais, já se nem sentia trilhar ou roçar o chão. Era como se fosse correndo, pairando, ao de cima do solo."

José Régio, O Príncipe com Orelhas de Burro, 2.ª ed., Lisboa: Editorial Inquérito, 1946, pp. 44-45. 

Monday, February 26, 2018

AGNÓRISE


"Como um impulso de amor de todo o ser o atirava para ela, o fantasma recuou com os olhos astrais fitos nele, um dedo hirto nos lábios. E o rei reconheceu tratar-se dum fantasma, porque, recuando, ela atravessara o tronco da magnólia, que passava através dela como de fumo."

José Régio, O Príncipe com Orelhas de Burro, 2.ª ed., Lisboa: Editorial Inquérito, 1946, p. 44. 

Sunday, February 25, 2018

MIRADOR


"Estava ali o mundo exaltado do Oriente, uno e total, exprimindo o cúmulo do êxtase em nome de todos, de todos sobre a Terra."

Henri Michaux, Antologia, trad. Margarida V. de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, p. 280. 

Saturday, February 24, 2018

COMUM



"Vida em comum: perda de si, mas decréscimo dos enigmas."

Henri Michaux, Antologia, trad. Margarida V. de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, p.  224. 

Friday, February 23, 2018

ESTADO



"O tempo decorreu. Os ratos, muito satisfeitos, corriam no quarto e atreviam-se a passar-lhe por cima das chinelas. Paul não fazia um único movimento. Não queria mover-se. Não pensava em nada. Achava assim mais fácil. Não precisava de conhecer as coisas. Mas, de tempos a tempos, da sua consciência sempre em actividade, irrompiam frases maquinais como esta:
- Que faço eu?
E, desse estado de transe em que se achava, surgia uma resposta:
- Estou a dar cabo de mim."

D. H. Lawrence, Filhos e Amantes, 4.ª ed., trad. Cabral do Nascimento, Lisboa: Portugália, 1970, p. 523. 

Thursday, February 22, 2018

AS ORIGENS


"Com efeito, é esta a verdadeira causa de todas estas diferenças: o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, só sabe viver na opinião dos outros e, por assim dizer, é apenas do seu juízo que tira o sentimento da sua própria existência."

Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, trad. Ana Rabaça, Lisboa: Didáctica Editora, 1999, p. 87.

Wednesday, February 21, 2018

DEIXAR



"Deixa imediatamente de procurar o mar e a lã
      das ondas empurrando as traineiras
debaixo do céu estamos nós os peixes e as
      árvores são algas."


Yorgos Seferis, Poemas Escolhidos, trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, Lisboa: Relógio d'Água, 1993, p. 81. 

Tuesday, February 20, 2018

PERSPETIVA


"Nunca se imaginava a gozar com ele uma perfeita vida de felicidade. Só via diante de si tragédias, desgostos, sacrifícios. No sacrifício sentia orgulho, quanto à renúncia era forte, mas não confiava na coragem que devia ter para suportar  vida quotidiana. Preparara-se para as coisas nobres e sublimes, como a tragédia; o que a assustava era a perspectiva do dia-a-dia, medíocre e trivial."

D.H. Lawrence, Filhos e Amantes, 4.ª ed., trad. Cabral do Nascimento, Lisboa: Portugália, 1970, p.  279. 

Sunday, February 18, 2018

SOBRE AS ÁGUAS (para a memória de Teresa Belo)



"Morrer é uma coisa que se vê
O teu amor cresce como uma árvore
há vozes de desgosto na separação dos corpos
Eu canto árvores, animais herbívoros ou carnívoros
e centra-se na tarde e cerca-me completamente 
este crepúsculo esta hora de poetas
A noite entra depois pelas nossas janelas
e traz consigo pitagóricos gente que vive só pelos desertos
Eu porém vivo vou de cidade em cidade
Escrever-te é a maneira de te ter presente
deste satisfação a um amigo e companheiro 
pagaste a dívida de amizade e de fraternidade
Por confiar em ti nada perdi
é a ti que eu quero e não abraços teus
adeus mulher amada mundo meu
Eu digo eu canto e logo o mundo faz-se
ó ave vida momentânea sobre as águas"


Ruy Belo, "Enganos e desencontros" de Despeço-me da Terra da Alegria, in Antologia Poética, Lisboa: Círculo de Leitores, 1999, p. 219. 

Saturday, February 17, 2018

VIDRO


"Em segundo lugar, qualquer homem pode comprovar por si mesmo que a imagem de alguma coisa vista por reflexão num vidro, ou na água, ou em algo semelhante, não é nada no vidro ou por trás do vidro, nem na água ou por baixo da água; o que é a segunda proposição."

Thomas Hobbes, A Natureza Humana, trad. João Aloísio Lopes, Lisboa: IN-CM, 1983, p. 53. 

Thursday, February 15, 2018

PIETRALATA


" - Há que confiar no peixe! - disse no fim Tommaso, muito alegre. 
- Claro que se passares à nossa categoria - disse ainda Settimio - de fome não morres. Porque peixe todos o comem, desde os senhores aos desgraçados! - E acrescentou, com uma palmada no ombro: - Aaaah Tomà! O futuro é de quem é novo!"

Pier Paolo Pasolini, Uma Vida Violenta, trad. José Lima, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 198. 

Wednesday, February 14, 2018

PULUIS



"Vida que não acaba de acabar-se
chegando já de vós a despedir-se, 
ou deixa por sentida se sentir-se,
ou pode de imortal acreditar-te. 

Vida que já não chega a terminar-se
pois chega já de vós a dividir-se, 
ou procura vivendo consumir-se. 
ou pretende matando eternizar-se. 

O certo é, senhor, que não fenece, 
antes no que padece se reporta, 
porque não se limite o que padece. 

Mas, viver entre lágrimas, que importa?
se a vida que entre ausências permanece
é só viva ao pesar, ao gosto morta."


Sóror Violante do Céu, Rimas Várias, Lisboa: Editorial Presença, 1994, p. 74. 

SUMBOLA


"Assim, Heaton segurava o nené, enquanto a dona da casa batia um pudim ou descascava batatas; sem tirar os olhos dela, o sacerdote expunha-lhe o assunto do seu próximo sermão. As ideias do rapaz eram originais e fantásticas. Judiciosamente, Gertrudes fazia-o descer dessas alturas. O tema consistia nas bodas de Caná.
- Quando Ele mudou a água em vinho - disse o pastor - quis simbolizar que a vida quotidiana dos casados e o sangue deles, eram tão simples como a água; mas veio depois a visita do Espírito e a água tornou-se como o vinho; logo que o amor chega, toda a constituição espiritual do homem se modifica; penetra-o o Espírito Santo, e até a sua forma se altera. 
A Sr.ª Morel pensava consigo mesma: «Pobre rapaz! Tua mulher, tão nova que era, já não é deste mundo. Por isso fazes do amor o Espírito Santo.»"

D.H. Lawrence, Filhos e Amantes, 4.ª ed., trad. Cabral do Nascimento, Lisboa: Portugália, 1970, p. 55.

Tuesday, February 13, 2018

A VIDA


"Por vezes, a vida toma conta de alguém, carrega-lhe com o corpo, cumpre-se o seu destino, e todavia parece irreal, é como se passasse muito leve..."

D.H. Lawrence, Filhos e Amantes, 4.ª ed., trad. Cabral do Nascimento, Lisboa: Portugália, 1970, p. 23. 

Monday, February 12, 2018

DO NADA



"Na verdade, qual destes, sob uma forte pressão, resistirá, 
de forma a escapar à aniquilação, sob os próprios dentes da morte?
O fogo, a água, o ar? Qual destes? O sangue ou os ossos? 
Nenhum, ao que julgo, porque todos estes corpos são de essência mortal, 
tal qual como as coisas que vemos manifestamente perecer diante dos nossos olhos, 
vencidas por alguma força. E reafirmo coisas já anteriormente provadas: 
que nem uma coisa pode desaparecer do nada nem do nada pode nascer."


Lucrécio, Da Natureza das Coisas, I, 851-858, trad. Luís Manuel Gaspar Cerqueira, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2015, p. 61. 

Saturday, February 10, 2018

CAIR



"Entretanto no céu estendiam-se umas nuvens espessas, para além do rio, a seguir às casas de Montesacro, longe, muito ao longe. Tapavam toda a luz que antes inundava o céu ainda molhado da chuva e que agora a reflectia sobre uns campos miseráveis. 
Tommasino, que há pouco não tinha ouvido soar a sirene, pensou que já fosse tarde, e que a noite estivesse a cair."


Pier Paolo Pasolini, Uma Vida Violenta, trad. José Lima, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 28. 

Thursday, February 8, 2018

AOS VENCIDOS


"Dia parado entre nevoento e enxuto. 
A natureza como semimorta.
Quanto aos vencidos, Musa, desconforta
esta infinita sugestão de luto!

Quanto a mim, de minuto por minuto, 
ouço alguém... Alguém bate à minha porta...
Quem é? Quem sabe? Uma saudade morta, 
cousas tão d'alma que eu somente escuto. 

Nesta indecisa solidão sombria,
sem cor, sem som, meio entre a noite e o dia, 
com que a morte a tudo, a tudo assiste...

como que pela Terra desolada, 
a consciência universal do Nada
deixa um silêncio cada vez mais triste..."


Pereira da Silva,  in A Circulatura do Quadrado, org. António Ruivo Mouzinho, Porto: UNICEPE, 2004, p. 223. 

Tuesday, February 6, 2018

INCERTO


"Apagou-se, por fim, o incerto lume, 
que, em volta do meu ser, ainda ardia, 
e o velho alfange, de inquietante gume, 
cortou o voo que meu sonho erguia.

Apagou-se, por fim, o lume incerto...
e fiquei-me entre as urzes, hesitante, 
no local que pr'a o além era o mais perto
e pr'a voltar a mim o mais distante. 

Abandonada, então, essa charneca, 
vestida de silêncio, árida e seca, 
rodeou-me a minha alma sonhadora. 

Afastei-me. Acabei por me perder:
sem poder atingir o que quis ser
e sem poder voltar ao que já fora."


Alfredo Guisado, in A Circulatura do Quadrado, org. António Ruivo Mouzinho, Porto: UNICEPE, 2004, p. 265. 

Monday, February 5, 2018

FILHOS



"Façamos d'elle um deus, creando uma nova esperança. 
Os nossos deuses são velhos. Equeceram-se de nós como de muitos filhos bastardos."


Fernando Pessoa, "Calvário", in Teatro Estático, ed. Filipa de Freitas e Patrício Ferrari, Lisboa: Tinta-da-China, 2017, p. 195. 

Sunday, February 4, 2018

REALMENTE


"Nos fins de semana, todas as refeições do dia eram anunciadas por três gongos: pequeno, médio e grande. Naquele momento, o primeiro anunciava o pequeno-almoço na sala de jantar. A sua vibração suscitou o pensamento de que em vinte e seis passos se reuniria à sua jovem cúmplice, cujo almíscar delicado ainda conservava na cova da mão - e o afectava com uma espécie de radiante espanto: acontecera, realmente? Somos realmente livres? Alguns pássaros engaiolados - segundo dizem amadores chineses estremecendo com o riso dos gordos - atiram-se contra as grades (e permanecem alguns minutos inconscientes) todas as santas manhãs, logo ao despertarem, num ímpeto que é a continuação de um sonho, que tem laivos de sonho - embora, durante o resto do tempo, esses iridescentes prisioneiros se mostrem muito vivos, dóceis e palradores."

Vladimir Nabokov, Ada ou Ardor, trad. Fernando Pinto Rodrigues, Lisboa: Teorema, 2004, p. 137. 

Saturday, February 3, 2018

O NOME


"Assim, poesia é o nome que dou a certas perturbações que em mim provocam as palavras (os mortos) e de que eu sou o local de encontro, o hospedeiro e o portador. Ao fim e ao cabo, procuro provocar pelas palavras ou fazer que em mim aconteçam as transformações que Carpenter ou Cronenberg produzem nos seus filmes."

Fernando Guerreiro, Imagens Roubadas, Várzea da Rainha (impr.): Enfermaria 6, 2017, p. 50. 

Friday, February 2, 2018

SISTEMA



"As crianças do tipo dela conseguem excogitar as mais puras filosofias. Ada criara o seu sistemazinho próprio. Mal decorrera uma semana depois da chegada de Van, achara-o digno de ser iniciado na sua teia de sabedoria. A vida de um indivíduo compunha-se de certas coisas classificadas: «coisas reais», que eram infrequentes e inestimáveis; «coisas» simplesmente, que constituíam o material rotineiro da vida, e «coisas fantasmas», também chamadas «nevoeiros», como febre, dor de dentes, terríveis desilusões e morte. A ocorrência simultânea de três ou mais coisas formava uma «torre» ou, se ocorriam numa sucessão imediata, uma «ponte». As «torres reais» e as «pontes reais» eram as alegrias da vida e, quando as torres ocorriam em série, experimentava-se um êxtase supremo; mas isso quase nunca acontecia. Em certas circunstâncias e a uma certa luz, uma «coisa» neutra podia parecer ou até tornar-se verdadeiramente «real», ou, inversamente, podia coagular num nojento «nevoeiro». Quando o venturoso e o desventuroso se misturavam, simultaneamente, ao longo de uma duração gradual, estava-se perante «torres em ruínas» e «pontes partidas»."

Vladimir Nabokov, Ada ou Ardor, trad. Fernando Pinto Rodrigues, Lisboa: Teorema, 2004, pp. 86-87. 

Thursday, February 1, 2018

DESEJO PRESO



"Neste lugar acendes teu ceder
lugar ao sítio, à sombra de acordares
margem fronteira ao tempo onde aluir
teus passos sabem. Neste estar só rendes
assédio ao cerco, ao sempre, ao demorado
deserto ausente à beira de nem vires."


José Augusto Seabra, Desmemória, Porto: Brasília Editora, 1977, p. 23.