Friday, August 31, 2018

CONTACTO


"Os nossos costumes foram corrompidos pelo contacto com os santos. Os nossos livros de orações ressoam com a melodiosa maldição de um Deus que teremos de suportar por toda a eternidade. Dir-se-ia que até os profetas e redentores consolaram mais os medos do que confirmaram as esperanças humanas. Em nenhum lado se registou uma simples alegria irreprimível perante o dom da vida ou qualquer louvor a Deus digno de ser celebrado."

Henry David Thoreau, Walden, trad. Alda Rodrigues, Lisboa: Relógio D'Água, 2016, p. 70. 

Thursday, August 30, 2018

NOITE


"Cuán insoportable serían los días sin la noche, con sus rocíos y su oscuridad, no viniera a restaurar el mustio mundo! A media que las sombras comienzan a reunirse a nuestro alrededor, nuestros instintos primigenios despiertan, y nos deslizamos fuera de nuestras guaridads, como los habitantes de la selva, en busca de esos pensamientos callados y taciturnos que son la presa natural del intelecto."

Henry David Thoreau, Noche y luz de luna, trad. Jordi Quingles, Palma: José J. de Oñaleta, Editor, 2018, p. 60. 

Wednesday, August 29, 2018

NUTRIMENTO


"Em verdade, porque é que os avós dos nossos avós, com o seu machado de pederneira à cinta num improvisado boldrié de pele de auroque, ou o seu chuço de pau na mão, haviam de proceder para com os seus semelhantes como hoje nós, os civilizadíssimos europeus, procedemos uns para com os outros? Por uma questão ideológica? Não havia ideologias. Pela posse da terra? Ainda não havia propriedade. Pelo melhor lugar no rio e para a pesca, o melhor aprisco na floresta para a caça? Santo Deus, águas e bosques seriam fartos viveiros de nutrimento para a escassa população humana. Pela fêmea, vão-me dizer... A fêmea era para o mais forte e garboso, sim, mas a operação, a julgar pelos hábitos observados no restante mundo animal, não suscitava um lote de preconceitos, nem exigia a prova de sarrabulho até se dirimir quem estava em primeiro lugar. A nossa ética sexual, fora da qual julgamos que todos os entendimentos entre homem e mulher são bárbaros e afrontosos, tem muito que se lhe diga."

Aquilino Ribeiro, Arcas Encoiradas, Lisboa: Bertrand Editora, 2012, pp. 54-55. 

Tuesday, August 28, 2018

TESTEMUNHA



"Terrível monstro! Uma vaca, afogueada pelo sol e os tabões, entrou para uma capelinha dos montes, cuja porta se fechou sobre ela. Lembraram-se de procurá-la ali, mas só passante semanas. Tinha devorado as toalhas e roído o frontal o altar e a cara da própria santa."

Aquilino Ribeiro, Arcas Encoiradas, Lisboa: Bertrand Editora, 2012, p. 63.

Monday, August 27, 2018

A VIDA


"Aqui o Sr. Martini tossicou, contraindo os ombros para a frente. 
- A renúncia - continuou - é o nosso pacto com a musa, é nela que reside a nossa força, o nosso orgulho; e a vida é o nosso jardim proibido, a nossa grande tentação à qual sucumbimos por vezes, mas nunca para nossa salvação."

Thomas Mann, Sua Alteza Real, s. trad., Lisboa: Livros do Brasil, s.d, p. 155. 

Friday, August 24, 2018

ANTEPASSADOS


"Não há dúvidas que existe uma tradição arraigada profundamente, mas sem raízes sérias na antropologia, de que este nosso antepassado era uma espécie de besta-fera, sanguinária e cruel, com tendência marcada para a violência e o dolo. Possivelmente Gobineau e até porventura Darwin tenham contribuído para difamação tão gratuita. A gente de boas manhas e policiada é muito atreita a confundir ferocidade com bruteza, selvajaria com aptidão para o crime. O nosso avô não beneficia com esta confusão lamentável. Acresce que ao entendimento da nossa civilização cristã tudo o que fica à sua retaguarda é suspeito, pervertido, mormente o homem atascado na ganga fresca do vício original. Por todas estas razões, e mais uma que haverá sempre a dizer, quando se quer cominar uma criatura de animada pelos mais baixos instintos, capaz de todas as bestialidades, chama-se-lhe simplesmente troglodita. E nada mais injusto."

Aquilino Ribeiro, Arcas Encoiradas, Lisboa: Bertrand Editora, 2012, p. 54. 

MUNÍFICO


"Distintos ou não - e nunca esta distinção será afinal a do ovo e do espeto - não devem passar, como expomos, de figurações imaginosas do instrumento por excelência, o meritório e munífico machado, desde o rachão de pedra lascada que o homem apertava na ganchorra dos cinco dedos, passando pela cunha de diorite encabada num pau fendido entre dois nós, à acha de bronze com volumes e linhas de estudada harmonia. Compreende-se a floração opulenta: o machado foi a mais útil descoberta do homem durante alguns milénios e, na sua longa evolução, desde o sílex de troglodita ao aço fino do lenhador da Floresta Negra, multiplicou largamente o valor das mãos que o empunhavam. Adaptado a todos os usos, pronto para todos os lances, não admirava que na representação artística revestisse as mais curiosas e imprevistas modalidades."

Aquilino Ribeiro, Arcas Encoiradas, Lisboa: Bertrand Editora, 2012, p. 34. 

Wednesday, August 22, 2018

LIÇÃO



"Dans un langage plus précis, on pourrait dire que les deux sentiments sont presque à l' opposé l'un de l'autre. Dans la passion, il y a le désir de se satisfaire, de s' assouvir, quelquefois de diriger, de dominer un autre être. Dans l' amour, au contraire, il y a abnégation. Au moment où s'écrivais, je mélamgeais les deux. Je décrivais tantôt l'amour-abnégation et tantôt l'amour-passion. Mais finalement, la passion est plutôt de l'ordre de l'agressivité que de l'abnégation."


Marguerite Yourcenar, Les yeux ouverts, Paris: Éditions du Centurion, 1980, p. 98.

Tuesday, August 21, 2018

ETERNO


"Quand on parle de l'amour du passé, il faut faire attention, c'est de l'amour de la vie qu'il s'agit; la vie est beaucoup plus au passé qu'au présent. Le présent est un moment toujours court et cela même lorsque sa plénitude le fait paraître éternel."

Marguerite Yourcenar, Les yeux ouverts, Paris: Éditions du Centurion, 1980, p. 31. 

Monday, August 20, 2018

OS MUNDOS DE FORMAS ACABADAS


"Os mundos de formas acabadas podem 
           Não vir a sê-lo?

Se o Universo não tem Demiurgo, 
          Qual é o sentido da vida?

Quem, senão Deus, seria o germe, 
          Na génese do mundo?

          Ó Senhor dos imortais!
A pusilanimidade torna os homens incrédulos."


Pushpadanta, Shiva - o Senhor do Sono, 2.ª ed., trad. Teresa Antunes Cardoso sobre versão francesa de Alain Porte, Lisboa: Editorial Estampa, 2011, p. 27. 

CELEBRAÇÃO


"Iminente estava a destruição do Universo, 
           Deuses e Demónios tremiam.
           Levado pela compaixão, 
Tu, que possuis o terceiro olho do conhecimento, 
           Absorveste o veneno. 
O negro que te maculava a garganta não realça
           A tua beleza?

Por quem tem a paixão de arrancar o mundo aos seus medos, 
          Até uma sombra se celebra!"


Pushpadanta, Shiva - o Senhor do Sono, 2.ª ed., trad. Teresa Antunes Cardoso sobre versão francesa de Alain Porte, Lisboa: Editorial Estampa, 2011, p. 43. 

Friday, August 17, 2018

SOPHIA


"Padre Praxedes de Vila Cova sabia de cor Aristóteles e Platão. Filosofia, física, história natural, gramática, lógica, metafísica, poética, meteorologia, política, e mais centenar de ciências todas lhas ensinaram os dois sábios de Estagira e Atenas. Na opinião dele, a inteligência do homem, depois de Platão e Aristóteles, envelhecera, ou fingira remoçar-se com atavios de ouropel e pechisbeques, sem quilate na experimentada mão de um sábio."

Camilo Castelo Branco, O Bem e o Mal, Lisboa: Círculo de Leitores, 1981, p. 21. 

Thursday, August 16, 2018

PEIXES



"Para elas olhei longamente. Ferviam de peixe. Devia ser peixe miúdo. Adiante - brilho de espada no mar - um cardume de grandes peixes alegrava o dia, que despontara. Saltavam, riscavam. E, além, era a lenta mudança da alvorada, o milagre de sangue em luz, que se cumpria mais uma vez.
Tudo vivia em gratidão. Em todos, mesmo nos vermes. A vida estava cheia de alegria. Em mim, castigo era. Morta a esperança, a maldade gastava-me a alma entorpecida."


Dinah Silveira de Queiroz, A Ilha dos Demónios (Margarida La Rocque), Lisboa: Edição Livros do Brasil, s.d., p. 201. 

RETÁBULO DE ISENHEIM (SUITE)


"Calculai uma vasta roda, tal corrente constituída por seres vários, a girar com fúria. Fazia ela um zumbido, um cantar entre o urro do animal e a voz humana. Embora girasse com rapidez - aquela atropelada multidão - eu podia distinguir ásperos e agudos cornos, caudas estrebuchantes, dorsos que ondulavam frenéticos de prazer, mamas e ventres bambos. Animais e assemelhados humanos compunham aquele agrupamento. Eram bichos e espíritos da ilha, gozando de uma festa, e alumiados pela lua."

Dinah Silveira de Queiroz, A Ilha dos Demónios (Margarida La Rocque), Lisboa: Edição Livros do Brasil, s.d., pp. 123-124. 

Monday, August 13, 2018

FRÉNÉSIES (Retábulo de Isenheim III)


"Avec ses buccins de couleurs et ses cris tragiques, avec ses violences d' apothéoses et ses frénésies de charniers, il vous accapare et il vous soubjugue; en comparaison de ces clameurs et de ces outrances, tout le reste paraît et aphone et fade."

J.-K. Huÿsmans, Trois Primitifs, Paris: Flammarion, 1967, p. 31. 

AGNEAU (Retábulo de Isenheim II)


"Et, seul, dans les sanglots, dans les spasmes affreux du Sacrifice, ce témoin de l'avant et de l'après, cambré sur ses reins, debout, ne pleure, ni ne souffre; il certifie, impassible, et promulgue, décidé; et l' Agneau du monde qu'il baptisa est à ses pieds, portant une croix, drdant de son portrait blessé un jet de sang dans un calice."

J.-K. Huÿsmans, Trois Primitifs, Paris: Flammarion, 1967, pp. 11-12. 

GESTE (Retábulo de Isenheim I)



"Ce visage de reître de la Franconie, dont la toison de poils de chameau s'aperçoit sous une ceinture dont le noeud bouffe et un manteau drapé en de larges plis, c'est saint Jean-Baptiste. Il est ressuscité, et pour le geste dogmatique et pressant de son long index que se retrousse en indiquant le Redémpteur s'explique, cette inscription en lettres rouges s'étend près du bras: «Illum oportet crescere, me autem minui. Il faut qu'il croisse et que je diminue»."


J.-K. Huÿsmans, Trois Primitifs, Paris: Flammarion, 1967, p. 11. 

Friday, August 10, 2018

ÁRVORE DA VIDA



"Ils disent qu'il avait un jardin entouré de murs où il se promenait au coucher du soleil. Ç'aurait pu être sa prison, hors qu'il était libre, avec tout le loisir d'inventer les périls qui le menaçaient. «Le Pilier de la Loi sera-t-il détruit, et l'édifice couché dans la poussière, la Misshnah, profanée et foulée aux pieds?» Puisse la mémoire de son chemin ici-bas et de son destin perdurer avec les sept catégories de Justes. Nul ne sortait. Nous attendions dans l'obscurité de nos chambres; à chaque souffle de vent qui faisait claquer les persiennes, nous frissonnions. Que les victimes de la fièvre reponsent en l'Eden, et que leur demeure soit sous l'Arbre de la Vie."

Paul Bowles, Des aires du temps, trad. Chantal Mairot, Paris: Christian Bourgois Editeur, 1986, p. 13. 

Wednesday, August 8, 2018

EXPRESSÃO


"Ainda não conhecia, não compreendia, não imaginava as dificuldades, o perigo, a austeridade da vida que lhe estava destinada. A sua atuação, a sua expressão, impedia que alguém suspeitasse que ele sentia o contraste que o opunha às grandes massas. Esse ser pequenino era um sonho, livre de quaisquer responsabilidades e cuidadosamente manipulado do exterior; uma vida que se desenrolava num palco que mal se abrangia com a vista. E este palco pululava de figuras coloridas, de comparsas e atores com papéis furtivos e de outros com papéis eternos."

Thomas Mann, Sua Alteza Real, s. trad., Lisboa: Livros do Brasil, s.d, p. 46. 

Tuesday, August 7, 2018

NOVO MUNDO


"- Talvez possamos, então, concordar no seguinte: que, enquanto estamos aqui reunidos, quentes e em segurança, após uma boa refeição, ao pé da lareira, a beber vinho do Porto e o Gabriel a fumar o seu cachimbo, lá fora está a formar-se um novo mundo. - Nesta altura, o Patrão ergueu o cálice na direção da janela que dava para a praça. - E trata-se de um mundo do qual sabemos pouco, no qual poderemos não ter lugar, um mundo - o Patrão fez uma pausa e todos os cavalheiros ficaram suspensos das suas palavras, tal como eu - que nós fizemos mas que já está fora do nosso controlo. 
O Dr. Lanyon falou imediatamente:
- Sim; isso é verdade."

Valerie Martin, Mary Reilly, trad. Maria Filomena Duarte, Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p. 207. 

Monday, August 6, 2018

JUVENTUDE


"- São ervas daninhas, Mary - replicou o Patrão, pousando o cálice no tabuleiro, com força, como se quisesse esmagar essas ervas. - De onde é que elas vêm se a Mary não as semeou?
- Ora, o ar deve andar cheio delas, senhor - respondi. - Porque há tantas que vemos as florestas cheias delas e ninguém as semeou. Mas o que não percebo é por que razão as ervas daninhas, assim que encontram um bocado de terra, crescem com mais força do que as coisas que nós queremos que cresçam.
- E tem alguma resposta para essa pergunta, Mary? - quis saber o Patrão. 
- Tenho pensado nisso, senhor - atrevi-me. - Acho que, por serem selvagens, têm mais desejo de viver. 
O Patrão deitou-me um sorriso sinistro e repetiu o que dissera, como se fosse uma verdade profunda que lhe caíra do céu.
- Creio que isso acontece com quem não tem nada, e com as crianças, também - prossegui -, que crescem fortes quando ninguém cuida delas, parecem amar a vida que conseguem arrancar ao mundo e são capazes de matar para a conservar, enquanto uma criança mimada adoece e morre."

Valerie Martin, Mary Reilly, trad. Maria Filomena Duarte, Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, pp. 58-59. 

Sunday, August 5, 2018

ASPETO DIFERENTE


"- Há muitos homens que bebem, senhor, e nós vemos que alguns até ficam bem dispostos e de bom humor, e outros tornam-se fanfarrões ou que querem lutar com os companheiros. No do meu pai, quando bebia era como se não se fartasse de ver sofrer, e como eu estava à mão, tinha prazer em tratar-me mal. Nessas alturas, era um homem diferente - até tinha um aspeto diferente, senhor, como se um homem cruel estivesse sempre dentro dele e a bebida o trouxesse cá para fora. 
- Ou o deixasse sair - disse o Patrão em voz baixa."


Valerie Martin, Mary Reilly, trad. Maria Filomena Duarte, Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p. 31.

Saturday, August 4, 2018

ILUMINAÇÃO



"Se o homem a Terra aprecia
Pelo Sol iluminada, 
Com a uva se delicia
À faca sacrificada, 
Pois sabe que a sua seiva, 
Fermentada, o mundo anima, 
Que muitas forças redobra
E muitas outras elimina - 
Sabe também que o deve à chama
Que tudo isso faz crescer: 
Vai cambaleando o embriagado, 
E canta alegre o moderado."


J. W. Goethe, Poesia, trad. João Barrento, Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, p. 171. 

Friday, August 3, 2018

NEGÓCIO


"O excesso de atividade, na escola ou no colégio, na igreja ou no mercado, é sintoma de uma vitalidade deficiente; enquanto a capacidade para o ócio implica um apetite ecuménico e uma vigorosa identidade pessoal. Existe uma classe de pessoas, vulgares e quase-mortas, que mal têm consciência de estarem vivas exceto em pleno exercício de alguma ocupação convencional. Levem um destes indivíduos ao campo, ou numa viagem marítima, e vereis como anseia por regressar à secretária ou ao gabinete. São desprovidos de curiosidade; não conseguem entregar-se a paixões momentâneas; são incapazes de desfrutar o exercício das suas faculdades pelo mero prazer de as exercer; em a não ser que a Necessidade os espicace, podem até ficar imóveis. Não vale a pena conversar com estas pessoas; não conseguem ser ociosos, a sua natureza não é suficientemente generosa; e assim passam numa espécie de coma todas as horas que não dedicam ao lufa-lufa diário."

Robert Louis Stevenson, Apologia do Ócio, tad. Rogério Casanova, Lisboa: Antígona, 2016, pp. 21-22. 

Thursday, August 2, 2018

PHARO



"Convence-te do disparate que é imaginar que nem os teus próximos nem os teus homens de confiança estão a salvo de uma falha. Nada neste mundo é inteiramente garantido."

Cardeal Mazarin, Breviário dos Políticos, trad. Maria Bragança, Lisboa: Guimarães Editores, 1997, p. 122. 

Wednesday, August 1, 2018

DIAS OCIOSOS


"Nos dias ociosos
que pena senti pelo tempo perdido!

Mas terá sido alguma vez perdido, Senhor?
Não tiveste Tu a minha vida, 
a cada instante, em tuas mãos?

Escondido no coração das coisas, 
Tu nutres sementes
e transforma-las em rebentos, 
e os botões em flores
e as flores em frutos. 

Estava eu cansado, 
dormitando no meu leito ocioso, 
e pensava que nada fazia. 
Quando acordei, pela manhã, 
vi o meu jardim
cheio de flores maravilhosas."


Rabindranath Tagore, O Coração da Primavera, 3.ª ed., trad. Manuel Simões, Braga: Editorial A.O., 1990, p. 65.