"Em verdade, porque é que os avós dos nossos avós, com o seu machado de pederneira à cinta num improvisado boldrié de pele de auroque, ou o seu chuço de pau na mão, haviam de proceder para com os seus semelhantes como hoje nós, os civilizadíssimos europeus, procedemos uns para com os outros? Por uma questão ideológica? Não havia ideologias. Pela posse da terra? Ainda não havia propriedade. Pelo melhor lugar no rio e para a pesca, o melhor aprisco na floresta para a caça? Santo Deus, águas e bosques seriam fartos viveiros de nutrimento para a escassa população humana. Pela fêmea, vão-me dizer... A fêmea era para o mais forte e garboso, sim, mas a operação, a julgar pelos hábitos observados no restante mundo animal, não suscitava um lote de preconceitos, nem exigia a prova de sarrabulho até se dirimir quem estava em primeiro lugar. A nossa ética sexual, fora da qual julgamos que todos os entendimentos entre homem e mulher são bárbaros e afrontosos, tem muito que se lhe diga."
Aquilino Ribeiro, Arcas Encoiradas, Lisboa: Bertrand Editora, 2012, pp. 54-55.
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