"Senhor, porque as grandes cidades estão
perdidas e desfeitas;
a maior é como fuga de chamas direitas,
e não há consolo que lhe dê consolação,
e o seu pequeno tempo escoa em vão.
Aí vivem pessoas, mal vivem e com dificuldade,
em quartos isolados, com gestos angustiados,
mais do que um rebanho de primogénitos assustados;
e lá fora vigia e respira a terra tua e dos deserdados,
mas eles existem e já não sabem essa verdade.
Aí há crianças que crescem em degraus de janelas,
sempre na mesma sombra fria,
e não sabem que lá fora chamam flores por elas
para um dia cheio de espaço, vento e alegria,
e têm de ser crianças e são crianças, tristes delas.
Aí se abrem raparigas ao desconhecido
e têm saudades do seu sossego de infância;
mas não existe o que lhes era querido,
e a tremer fecham-se na sua ânsia.
E passam em escondidos quartos das traseiras
os dias da desiludida maternidade,
o choramingar sem vontade de noites inteiras
e anos frios sem luta e sem tenacidade.
E completamente no escuro estão leitos de mortes alheias,
e lentamente desejam que o corpo para aí siga;
e longamente morrem, morrem como em cadeias
e apagam-se como uma mendiga."
Rainer Maria Rilke, O Livro de Horas, 2.ª ed., trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2020, pp. 283; 285.
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