Tuesday, November 30, 2010
BALANÇO DO MÊS 11
"Não falles alto, que isto aqui é vida -
Vida e consciência d'ella,
Porque a noite avança, estou cansado, não durmo,
E, se chego á janella,
Vejo, sob as palpebras da besta, os muitos logares das estrellas...
Cansei o dia com esperanças de dormir de noite,
É noite quasi outro dia. Tenho somno. Não durmo.
Sinto-me toda a humanidade atravez do cansaço -
Um cansaço que quasi me faz carne os ossos...
Somos todos aquillo...
Bamboleamos, moscas, com asas presas,
No mundo, teia de aranha sobre o abysmo."
Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), Vida e Obras do Engenheiro, ed. Teresa Rita Lopes, 2ª ed., Lisboa: Estampa, 1992, p. 82.
Sunday, November 28, 2010
ONDE ADORMECEM AS AVES, MUROS
"Dormis onde adormecem as aves:
abrigos de sóis empalidecidos
sob céus amplos como velhas naves
vogando num reflexo de lagos esquecidos;
num sono fugitivo como a corça
que o próprio vento amedronta
quando, soprando sem força,
o arbusto dobra na ponta.
Num espasmo de breve sobressalto
os corpos estremecem: velas
empurradas para o mar alto
num impulso branco de telas
que o pintor olhou, sem ver nelas
mais do que um brusco bater de janelas.
Nuno Júdice, Meditação sobre Ruínas, 3ª ed., Lisboa: Quetzal Editores, 1999, p. 80.
Saturday, November 27, 2010
WARUM BIST DU SO KURZ?
"Porque és tão breve? Pois não amas então
Já o canto? Quando jovem, nunca achavas,
Nos dias da esperança,
O fim, quando cantavas!
Como a ventura é a canção. - Se queres banhar-te
Alegre no sol da tarde, eis que ele desaparece,
A terra é fria, e a ave nocturna
Esvoaça importuna ante teus olhos."
Friedrich Hölderlin, Poemas, trad. Paulo Quintela, Lisboa: Relógio D'Água, 1991, p. 73.
Friday, November 26, 2010
COISAS QUE DURAM POUCO
" A história chama-se «A Rosa». «A Rosa era feliz. Vivia em harmonia com as outras flores. Um dia, a Rosa sentiu-se murchar e estava quase a morrer. Viu uma flor de papel e disse-lhe: "Que bela rosa és tu" - "Mas eu sou uma flor de papel" - "E tu sabes que eu estou a morrer?" - A Rosa então morreu e não voltou a dizer mais nada.»
Esta história tão breve, que diz quase tudo o que se pode dizer sobre a ternura da vida e a dor insuportável da morte, recorda-nos que as coisas duram um pouco mais do que a vida mas estão também destinadas a desaparecer e que, perante a dor da morte, faz pouco sentido celebrar o autêntico contra o artificial. Somos fiéis às lágrimas das coisas vivas quando ouvimos o seu choro, o seu desejo de durarem um pouco mais, pelo menos como as coisas fictícias, como as colunas dóricas deste Walhalle postiço."
Claudio Magris, Danúbio, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Quetzal, 2010, pp. 128-129.
Thursday, November 25, 2010
SE É UMA PORTA
"Os Irmãos:
A nossa irmã é pequena,
ainda não tem seios.
Que faremos nós à nossa irmã
no dia em que for pedida (em casamento)?
Se ela é um muro,
edificaremos sobre ela ameias de prata.
Se é uma porta,
fechá-la-emos com batentes de cedro."
Cant. 8, 8-9.
Wednesday, November 24, 2010
AO OLHO DE DEUS 2
"Sempre o meio é mais fundo, o grito no meio confia no fim, sobre verde-]
muco seco,
o corpo canibalesco fica
inundado por outro corpo, gosta de ver
o medo perto, muitas vezes, uma forma parecida
entrar por ele e levantar
ângulos novos, cantos, o exagero dos pontos -
outros bicos sopram para lá da boca. Deus soube olhar para a carne
quando as pedras abriam
a cabeça. O que está mais perto desta terra são as mãos e o resto do corpo
cortado."
António Madureira Rodrigues, A Potência do Meio dos Nós, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2009, p. 38.
Tuesday, November 23, 2010
AO OLHO DE DEUS 1
"Se até vós subir o movimento das águas,
querereis um com o outro vos banhar?
- E se até vós subir o movimento da morte,
querereis um com o outro vos banhar?"
"Canção Indonésia", in Herberto Helder, O Bebedor Nocturno, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 148.
Monday, November 22, 2010
DA FÉ, PENSANDO TAMBÉM EM HENRY MOORE
"Não é necessária fé em Deus, basta a fé nas coisas criadas, que consente que nos movamos entre os objectos persuadidos de que eles existem, convencidos da irrefutável realidade da cadeira, do guarda-chuva, do cigarro, da amizade. Quem duvida de si próprio está perdido, como quem, temendo não conseguir fazer amor, não consegue. Somos felizes junto das pessoas que nos fazem sentir a indubitável presença do mundo, do mesmo modo que um corpo amado nos dá a certeza desses ombros, desse seio, dessa curva dos flancos e da sua onda que nos sustenta como um mar. E quem não tem fé, ensina Singer, pode comportar-se como se acreditasse; a fé virá depois."
Claudio Magris, Danúbio, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Quetzal, 2010, p. 70.
Sunday, November 21, 2010
NASCEMOS PARA O SONO
"Nascemos para o sono,
nascemos para o sonho.
Não foi para viver que viemos sobre a terra.
Breve apenas seremos erva que reverdece:
verdes os corações e as pétalas estendidas.
Porque o corpo é uma flor muito fresca e mortal."
"Poesia Mexicana do ciclo Nauatle", in Herberto Helder, O Bebedor Nocturno - poemas mudados para português, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 65.
Saturday, November 20, 2010
A REGIÃO DAS SEMENTES HÚMIDAS
"Ireis à região das piteiras selvagens,
para colher os cactos e as piteiras selvagens,
para erguer uma casa de piteiras selvagens.
Ireis à região onde é a raiz da luz,
para atirar os dardos:
águia amarela, tigre amarelo, serpente amarela,
coelho amarelo, veado amarelo.
Ireis à região onde é a raiz da morte,
para atirar os dardos:
águia azul, tigre azul, serpente azul,
coelho azul, veado azul.
Ireis à região das sementes húmidas
para atirar os dardos sobre a terra florida:
águia branca, tigre branco, serpente branca,
coelho branco, veado branco.
Ireis à região dos espinheiros bravos,
para atirar os dardos sobre a terra violenta:
águia vermelha, tigre vermelho, serpente vermelha,
coelho vermelho, veado vermelho.
E depois de atirar os dardos e atingir os deuses,
o amarelo, o azul, o branco, o vermelho,
águia, tigre, serpente, coelho, veado -
colocai sob a sua protecção
os veladores do deus antigo - o deus do tempo."
"Canto de Itzpapaloltl", in Herberto Helder, O Bebedor Nocturno - poemas mudados para português, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, pp. 62-63.
Friday, November 19, 2010
AVISOS À NAVEGAÇÃO 3
"- Acha - disse eu em seguida - que nunca vai confiar plenamente em mim?
Ela virou-se a sorrir, mas não deu qualquer resposta, apenas continuou a sorrir para mim.
- Não vai responder? - disse eu. - Não pode responder amigavelmente. Eu não devia ter perguntado.
- Fez muito bem em perguntar-me isso, ou qualquer outra coisa. Não sabe como é querida por mim ou não pode imaginar nenhum segredo grande de mais para saber. Mas estou sob juramento, nenhuma freira faria um voto tão terrível e não ouso contar a minha história ainda, até mesmo para si. Está muito perto o tempo quando deverá saber de tudo. Acha que sou cruel, muito egoísta, mas o amor é sempre egoísta; quanto mais ardente, mais egoísta. O quanto sou ciumenta não pode imaginar. Deve vir comigo, amar-me à morte ou então odiar-me e ainda vir comigo. E odiar-me na morte e depois. Não existe a palavra indiferença na minha apática natureza.
- Agora, Carmilla, vai falar com seu extravagante disparate novamente? - disse eu apressadamente."
Sheridan Le Fanu, Carmilla, trad. Mafalda Silva, Lisboa: QuidNovi, 2010, p. 45.
Thursday, November 18, 2010
AVISOS À NAVEGAÇÃO 2
"Um quadrado de céu estrelado, onde se desvaneciam nuvens azuladas, dominava o pátio branco. Todo um andar brilhava iluminado pela Lua e o resto repousava numa sombra confidencial.
Concha estendeu-se à oriental numa esteira. Sentei-me junto dela e ela pegou-me na mão.
- Meu amigo - disse-me ela -, amar-me-á?
-Que pergunta!
- Durante quanto tempo me amará?
Receio estas perguntas que todas as mulheres fazem e a que não se pode responder senão com as piores banalidades."
Pierre Louÿs, Um Obscuro Objecto de Desejo, Lisboa: Bico de Pena, 2009, p. 66.
Wednesday, November 17, 2010
AVISOS À NAVEGAÇÃO 1
"Nunca ela usara aquele tom, tão comovido e tão simples, para me dirigir a palavra. Julguei ter finalmente libertado a sua verdadeira alma irónica e orgulhosa que ma havia ocultado durante tanto tempo, e uma nova vida se abriu à minha convalescença moral.
(Conhece, no museu de Madrid, uma singular tela de Goya, a primeira à esquerda ao entrar na sala do primeiro andar? Quatro mulheres com saias espanholas, na relva do jardim, estendem um xaile pelas quatro pontas e nele fazem saltar, a rir, um fantoche do tamanho de um homem...)
Em resumo, voltamos a Sevilha.
Ela retomara a sua voz trocista e o seu sorriso particular: mas eu já não me sentia inquieto. Há um provérbio espanhol que diz: «A mulher, como a gata, é de quem cuida dela.» Eu tratava-a tão bem e seria tão feliz se ela se deixasse tratar!"
Pierre Louÿs, Um Obscuro Objecto de Desejo, Lisboa: Bico de Pena, 2009, p. 92.
Tuesday, November 16, 2010
VARIANTES, VARIAÇÕES
"Não há palavras que digam o mistério
Das trevas e da luz em diagonal"
Alberto de Lacerda, Oferenda I, Lisboa: IN-CM, 1984, p. 173.
Monday, November 15, 2010
GÉNERO FEMININO, NÚMERO PLURAL
" Calou-se um instante, depois prosseguiu em tom de conselho:
- Ah! Senhor! - disse. - Tenha cuidado com as mulheres! Não direi que fuja delas, pois gastei a minha vida com elas e, se pudesse voltar atrás, as horas que assim passei estão entre as que desejaria reviver. Mas tenha cuidado, tenha cuidado com elas!
E como se tivesse encontrado uma expressão para o seu pensamento, don Mateo acrescentou mais lentamente:
- Há duas espécies de mulheres que se deve, a todo o custo, evitar conhecer: primeiro, as que não nos amam, e depois as que nos amam. Entre estes dois extremos, há milhares de mulheres encantadoras, mas não sabemos apreciá-las."
Pierre Louÿs, Um Obscuro Objecto de Desejo, trad. Ana Moura, Lisboa: Bico de Pena, 2009, p. 29.
Sunday, November 14, 2010
PUMPKINS WITHOUT A ROOF
"- De qualquer modo - disse o Apostador, depois de muito instado a responder. - O estado natural entre duas pessoas que se desejam é a discussão. O segundo irmão Jade chega ao ponto de chamar gorda à irmãzinha Lin, o que a põe furiosa, como se fosse uma briga de hoje. Que maravilha! "Tão gorda como a favorita Yang!" O presidente Clinton não arranjava melhor para dizer à sua descarada e encantadora menina Lewinsky. Mas desejar uma mulher é vergonhoso, não há evasiva, é só um acto carnal. Enquanto que amar e desejar um homem está aberto a todas as contradições: a guerra, a governação, a ciência, a filosofia, os negócios e por aí adiante. Até a arte culinária e a moda.
- É uma indirecta?
- Não, não - disse, apressadamente, o Apostador. E pensou: «Que quer ele, com esta conversa?»"
Agustina Bessa-Luís, A Quinta Essência, 3ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1999, p. 355.
Saturday, November 13, 2010
VENTO NORTE
"Da tua dor faz um caudal de espuma
para que no mar somente permaneça
a água."
Alberto de Lacerda, Oferenda I, Lisboa: IN-CM, 1984, p. 27.
Friday, November 12, 2010
DIFÍCIL É ESPERAR
"Difícil é esperar
quando sabemos
nada haver a esperar.
O eco de uma lágrima não basta
para dar vento à sementeira."
Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970, p. 44.
Thursday, November 11, 2010
FÁBRICA DE NUVENS 2
[em "Nota a «Em honra e memória de Howard»"]
"Na primeira estrofe refere-se a divindade indiana Camarupa (weaver of shapes at will = aquela que pode tecer várias formas), aquele ser espiritual que transforma como quer todas as figuras, e que também actua neste nosso domínio, formando ou desfazendo as nuvens.
Na segunda estrofe é da função da imaginação humana que se trata, uma faculdade que, assentando num impulso inato, tende sempre a dar a tudo o que é acidental e amorfo uma qualquer forma necessária. Reconhecemos isso pelo facto de a imaginação gostar de atribuir às nuvens formas de animais, exércitos em luta, fortalezas e coisas semelhantes, como Shakespeare fez também algumas vezes de forma muito feliz. A mesma operação se produz ao contemplarmos muros e paredes com manchas, imaginando então ver aqui e ali, se não figuras definidas, pelo menos imagens deformadas, fragmentadas."
Johann Wolfgang Goethe, O Jogo das Nuvens, selecção e trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, p. 83.
Wednesday, November 10, 2010
ET IN ARCADIA EGO 2
"Tão profundo quanto a escuridão eram o silêncio e a quietude. Os rios haviam parado o seu curso, o vento não se movia e até as folhas dos choupos tinham deixado de ondular. Se se estivesse junto ao mar, ver-se-ia que as ondas já não batiam na praia, se se estivesse no deserto, a areia deixaria de ranger debaixo dos pés. Tudo estava petrificado e imóvel, para não perturbar essa santa noite. A erva não ousava crescer, o orvalho não podia cair e as flores não se atreviam a exalar o seu perfume."
Selma Lagerlöf, Os Milagres do Anticristo, trad. Liliete Martins, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2008, p. 9.
Tuesday, November 9, 2010
DO DESTINO AZUL
"Todas as manhãs corria até chegar ao cimo do monte. Queria ser o primeiro a saudar o sol. Abria as janelas e deixava que o primeiro raio de sol se refractasse nas águas adormecidas do meu ser.
Hoje, um artigo de jornal veio lembrar-me que o sol - também ele - um dia se há-de extinguir. E nem o facto de isso só vir a acontecer daqui a alguns milhões de anos conseguiu atenuar a minha dor."
Hoje, um artigo de jornal veio lembrar-me que o sol - também ele - um dia se há-de extinguir. E nem o facto de isso só vir a acontecer daqui a alguns milhões de anos conseguiu atenuar a minha dor."
Jorge Sousa Braga, O Poeta Nu [poesia reunida], Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 135.
Monday, November 8, 2010
DA INEXISTÊNCIA, OUTONO
"De novo se desfazem as instâncias do tempo
Da verdade da tua inexistência
atravessas a noite transparente
Os sonhos no outono são cruéis
mas não és um fantasma e o presente
embora falso transformou-se em ti"
Gastão Cruz, As Pedras Negras, Lisboa: Relógio D'Água, 1995, p. 40.
Sunday, November 7, 2010
CHAMAS
"Do sono matinal jorram palavras
é o poder do dia
Luz vencida
trama solar herança da nocturna
lividez
céu da manhã nublado de apagadas
estrelas, de fantasmas
dá lugar
às chamas imperfeitas
não me detenhas
enquanto o corpo eterno
arde na tarde."
Gastão Cruz, As Pedras Negras, Lisboa: Relógio D'Água, 1995, p. 24.
Friday, November 5, 2010
OBSERVANDO OS EPÍGONOS DE JOANA VASCONCELOS
"Que essa arte não é feita para o povo? Naturalmente que o não é - nem ela nem nenhuma arte verdadeira. Toda a arte que fica é feita para as aristocracias, para os escóis, que é o que fica na história das sociedades, porque o povo passa, e o seu mister é passar."
Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa: Edições Ática, s.d., p. 161.
Thursday, November 4, 2010
DO PODER
"O mais nobre tipo de beleza é aquele que não arrebata de repente, que não faz ataques impetuosos e raptadores (esse provoca com facilidade o tédio), mas sim aquele que se insinua lentamente, que, quase despercebido, a pessoa traz consigo e, em sonhos, vem mais uma vez ao seu encontro, mas que, por fim, após ter estado muito tempo no nosso coração com toda a modéstia, toma inteiramente posse de nós, enche os nossos olhos de lágrimas, o nosso coração de ânsia. Porque ansiamos nós, à vista da beleza? Por sermos belos: julgamos que muita felicidade deveria estar associada a isso. Mas é um erro."
Friedrich Nietzsche, Humano, Demasiado Humano, trad. Paulo Osório de Castro, Lisboa: Relógio D'Água, 1997, p. 156.
Tuesday, November 2, 2010
NOVEMBRO PÕE TUDO A SECAR, PODE O SOL NÃO TORNAR
"Todos os passados, como os paraísos, são irrecuperáveis, embora não impossíveis de reinventar."
João Barrento, O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 101.
João Barrento, O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 101.
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