Sunday, November 6, 2011

PALAVRAS E SERES


"Dividia as gemas das claras dos ovos estrelados e quando comia uma não comia a outra. Dizia que há dias para comer a gema e outros para comer a clara.
- Repete comigo o que eu disser, Jozef. As palavras são tudo. Olha: a palavra frio desce. A palavra calor sobe. A palavra ninho tem ovos lá dentro e um pássaro a dormir. Há quem não queira que confundamos as palavras com as coisas, que o mapa não é o território, mas as palavras é que são as coisas. Há mapas, mas não há nenhum território. A palavra porta abre e fecha; e a palavra janela, se for velha, tem o vidro partido. A palavra água ou se bebe ou afoga-nos. Porque há pessoas com sede e pessoas que se afogam. É assim que se separa a humanidade: uns pegam nas coisas para morrer e outros para viver. E há a palavra mar que afunda todos os navios.
Frantiska olhava em frente enquanto, com o pé, desenhava círculos na terra.
- Olha: são tão importantes, Jozef, que sem elas éramos ocos. Sem a palavra vertical andávamos a rastejar e sem a palavra horizontal só poderíamos sonhar acordados. Os sonhos de dormir são mais distantes e vêm de lugares tão antigos que nunca lá poderemos chegar a caminhar pelo tempo, pelo passeio, pelos jardins. Só lá chegamos deitados, adormecidos até ao chão. Repete comigo, Jozef: cova, dedo mindinho, sete..."
Afonso Cruz, O Pintor Debaixo do Lava-Loiças, Lisboa: Editorial Caminho, 2011, p. 46.

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