Thursday, November 15, 2018
ENLEVOS
"Não sentes, não ouves um hino tão pulcro,
sem letras, sem notas, sem voz conhecida,
um hino, que é d'anjos, se os anjos descantam,
em salmos celestes, mistérios da vida?
Não vês, como eu vejo o céu bonançoso
por tardes estivas, no ermo a cismar,
estranhas imagens de nuvens vestidas
Contando segredos às vagas do mar?
Não tens, como eu tenho, saudades dum tempo,
fulgor instantâneo da infância... não tens?
Não vês que tão caros os gozos se compram?
Que penas em troca de tão raros bens!
Quiseras que um anjo te desse o destino?
Quiseras prever neste mundo um laurel?
Não queiras que os anjos eleitos da glória
Tem neste desterro o seu cálice de fel.
A vaga tristeza, que ensombra o teu rosto,
não sei se tormentos futuros prediz!
Tão bela, tão nobre, tão pura em desejos,
quem pode no mundo fazer-te infeliz !?
Eu, não! que a virtude respeitos inspira
ao vício, que às vezes simula desdéns.
Não creias que possam perversos... não podem
as rosas calcar da grinalda que tens.
Não temas! Confia no céu que te manda
mostrar-me visível a imagem de Deus,
na face, onde brilham esplêndidos traços
dos anjos que os homens namoram nos céus."
Camilo Castelo Branco, Ao Anoitecer da Vida, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1999, pp. 62-63.
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