Monday, May 20, 2019

PODERES



"E, assim, atingimos estes picos de emoção, não por retórica ou por exaltação, mas ouvindo uma jovem cantarolar para si mesma velhas canções enquanto se baloiça nos ramos de uma árvore; vendo as ovelhas a retouçar pelos brejos; escutando a brisa mansa a suspirar por entre as ervas. A vida na quinta, com tudo o que tinha de absurdo e improvável, é exposta ante os nossos olhos e é-nos dada plena oportunidade de compararmos Wuthering Heights com uma quinta real e Heathcliff com um homem real. Como, poderemos nós perguntar, pode haver verdade ou sensibilidade ou os mais finos matizes de emoção em homens e mulheres que tão pouco se assemelham com o que nós próprios vimos? Mas, ao mesmo tempo que formulamos esta pergunta, vemos em Heathcliff o irmão que uma irmã de génio poderia ter visto; dizemos que ele é impossível, mas, não obstante, nenhum outro jovem tem na literatura uma existência mais plena do que ele; o mesmo acontece com as duas Catherines; nunca as mulheres puderam sentir ou agir como elas, dizemos nós. Mesmo assim, elas são as mulheres que mais simpatia inspiram na ficção inglesa. É como se Emily Brontë pudesse desfazer tudo o que reconhecemos nos seres humanos e preencher essas transparências irreconhecíveis com uma tal ânsia de viver que elas transcendam a realidade. E, assim, detém o mais raro de todos os poderes - conseguir libertar a vida da sua dependência dos factos; revelar com algumas pinceladas a alma de um rosto, tornando o corpo desnecessário; ao falar do brejo, fazer o vento uivar e o trovão ribombar."

Virginia Woolf, "Jane Eyre and Wuthering Heights", in Ensaios Escolhidos, trad. Ana Maria Chaves, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, pp. 109-110. 

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