"Pensavam efetivamente naquelas hecatombes de regimentos aniquilados e de passageiros afogados; mas há uma operação inversa que a tal ponto multiplica o que se refere ao nosso bem-estar e que divide por um número tão formidável o que não lhe diz respeito, que a morte de milhões de desconhecidos mal nos aflora e é quase menos desagradável que uma corrente de ar. A senhora Verdurin, que sofria por causa das suas enxaquecas com o facto de já não haver croissants para molhar no café com leite, acabara por obter de Cottard uma receita que lhe permitiu mandar fazê-los num certo restaurante de que já falámos. Fora quase tão difícil conseguir isto dos poderes públicos como a nomeação de um general. Mas recuperou o seu primeiro croissant na manhã em que os jornais narravam o naufrágio do Lusitania. Ao mesmo tempo que molhava o croissant no café com leite e dava uns piparotes no jornal para ele se manter aberto de par em par sem necessidade de desviar a outra mão das sopinhas, dizia: «Que horror! Isto ultrapassa em horror as tragédias mais pavorosas.» Mas a morte de todos aqueles afogados devia revelar-se-lhe reduzida apenas a uma milionésima parte, porque ao mesmo tempo que, de boca cheia, fazia estas desoladas reflexões, a expressão que lhe subia à superfície do rosto, ali trazida provavelmente pelo sabor do croissant, tão precioso contra a enxaqueca, era antes a de uma suave satisfação."
Marcel Proust, À Procura do Tempo Perdido - O Tempo Reencontrado, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, p. 87.
No comments:
Post a Comment