"O crepúsculo desce, tão dourado como foi a manhã, como foi o pleno dia. Os cimos recolhem-se, aceitam a noite com a mesma graça com que aceitavam a aurora. Um pouco de luz estagna no côncavo do vale, como um pouco de água no côncavo de uma mão fresca. A noite paira, tecida de oiro como um estofo divino. Aqui a obscuridade é mais maternal, mais fraternal que amorosa: a Grande Mãe muda-se em Boa Virgem: Deméter torna a ser Perséfone; Latona torna a ser Ártemis. Os joelhos terrestres recobrem-se lentamente de um veludo estrelado. O leite de Hera escorre na Via Láctea, brotado de uma mordedura no seio azul. A sombra onde tudo se torna Sombra mal deixa adivinhar, na palestra, a mais esbelta das colunas, fuste agora solitário em torno do qual os jovens lutadores de antanho decerto passaram muitas vezes o braço como em volta de uma cintura, e que não se pode ver sem se pensar em Hipólito. A vida, madrasta ardente e repelida sob a forma de Fedra, suscitava contra ele um monstro que Hércules teria exterminado sem custo, mas cujo sopro bastava para destruir esse mancebo virgem, esse mancebo-flor. Depois, fatal, tranquilizante, lunar, a Morte aproximava-se dele sob a forma de Ártemis. Ele adivinhava-a sem a ver, pois os moribundos não fazem senão adivinhar os deuses. E nós que incessantemente morremos a nossa vida, nós tão-pouco entrevimos Ártemis. Mas aspiramos aqui o seu perfume de erva e de astro e, deitados sob esse céu, sob essas luzes, vemos na noite um pedaço do seu manto."
Marguerite Yourcenar, Peregrino e Estrangeiro, trad. Afonso Pizarro, Lisboa: Livros do Brasil, 1990, pp. 10-11.
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