Saturday, November 30, 2019

PERTENÇA



"Não adianta fazeres de conta que tens asas. Por mais
que acredites nelas, voarão sem ti. Porque tu és do
chão. Devias saber. 

Trazes restos de chumbo na alma e um caos de 
grainhas no corpo que ninguém quer. 

E se olhares para os teus pés verás que não caminhas
descalça. Trazes-te neles, chumbo e grainhas. Como
esperas levantá-los do fundo de tudo?

E há fragas de pó no teu leito sem janelas. E o único
ar que respiras é o que sorves dos espaços entre 
as pedras. 

Porque havias tu de querer um céu inteiro?

Tu pertences ao chão. Devias saber."



Virgínia do Carmo, Relevos, Macedo de Cavaleiros: Poética Edições, 2014, p. 15. 

Friday, November 29, 2019

REACÇÃO



"Na Paixão de Jesus concretiza-se aquilo que o profeta previra: na aparente desgraça dá-se a salvação do povo. Jesus é atraiçoado. Mas Deus utiliza esta traição para abençoar as pessoas não intervindo durante este sofrimento desumano e aparentemente absurdo. Só quando Jesus morre é que se dá uma reacção da Terra, que entretanto, escurecera durante a sua agonia: e então sente a escuridão de todas as pessoas, a escuridão do mal e do absurdo do sofrimento. Imediatamente após a sua morte, dá-se um terramoto, os campos abrem-se ao meio e muitos mortos levantam-se dos túmulos. Através da reacção do cosmo, Deus apresenta-nos ma resposta para a agonia de Jesus. O coração endurecido das pessoas abre-se ao meio. A Terra treme e reconhece que foi o próprio Deus quem suportou o sofrimento de Jesus para o transformar."

Anselm Grün, Que fiz eu para merecer isto? - A incompreensível justiça de Deus, 2.ª ed., trad. Ana Varela, Prior Velho: Paulinas Editora, 2009, p. 30. 

Thursday, November 28, 2019

DO SOFRIMENTO




"Esta resposta de Rahner é a única resposta teológica que me satisfaz. Sempre que falamos de Deus de uma maneira demasiadamente simples ou serena, magoamos as pessoas angustiadas. Em última análise, Deus permanece precisamente tão incompreensível como o sofrimento. Isto também é válido para o nosso discurso em relação às pessoas. Quando dizemos que basta ter um pensamento positivo para enfrentarmos a dor, não estamos a ser justos com as pessoas que têm mistérios abissais."

Anselm Grün, Que fiz eu para merecer isto? - A incompreensível justiça de Deus, 2.ª ed., trad. Ana Varela, Prior Velho: Paulinas Editora, 2009, p. 17. 

Wednesday, November 27, 2019

INCLINADO




"Senti-me inclinada a ficar ali, pensando vagamente em Sérgio e serenando o coração sobressaltado pelos sentimentos confusos que experimentara durante a tarde.
Docemente penetrada da alma das coisas, pensava que Deus deu aos homens esta quietação imutável da terra, este sussurro meditativo do arvoredo, esta elevação e esta pureza do céu, e que eles desperdiçam todos os bens. E não aprendem a lição da terra - preferem a agitação das corridas e das danças; e não aprendem a lição dos bosques - preferem o ruído das suas conversas fúteis e das suas músicas sem música; e não aprendem a lição do céu - preferem o rastejar enlameado das suas paixões e dos seus conflitos."


Esther de Lemos, Rapariga, 2. ª ed., Lisboa: Ática, s.d., p. 100. 

Tuesday, November 26, 2019

MEMÓRIAS




"E todas as mortes que deixámos espalhadas
por aí, todos os corpos que encostámos ao
canto dos olhos para partirmos sem memória?
Onde estão agora que os dedos já pararam
de contar paredes e portões?

E que é feito das sombras que guardámos em caves
para que os sustos se detivessem sob os pés
lavados de culpa sem caminhos para conhecer 
para além deles?

Onde estão agora que a verdade sangra cinza
e a alma é um retábulo de visões em carne viva?"


Virgínia do Carmo, Poemas simples para corações inteiros, Poética Edições, 2017, p. 18. 

Monday, November 25, 2019

UMA CATEDRAL



"Porque o Homem da minha civilização não se define a partir dos homens. São os homens que se definem a partir dele. Há nele, como aliás em todo o ser, qualquer coisa que os materiais que o constituem não explicam. Uma catedral é uma coisa totalmente diferente de um somatório de pedras. É geometria e arquitectura. Não são as pedras que a definem, é ela que enriquece as pedras com o seu próprio significado. Essas pedras cobram nobreza no facto de serem pedras de uma catedral. As pedras mais diversas servem a sua unidade. A catedral absorve até as goteiras mais irrequietas do seu cântico."

Antoine de Saint-Exupéry, Piloto de Guerra, trad. Ruy Belo, Lisboa: Editorial Aster, s.d., p. 196. 

Sunday, November 24, 2019

REX



"De onde acha que vem esse lado grotesco?

De nós. Somos assim. 


É assim?

Sou. É uma beleza qualquer que não sei explicar.


Essa beleza virá da dádiva, da entrega, do sacrifício? Caso dessa mulher que corta o peito. 

Vem do sacrifício e do amor [sorriso]. A beleza e o grotesco vêm do amor. O amor casa essas coisas todas."


Anabela Mota Ribeiro, Paula Rego por Paula Rego, Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2016, p. 99. 

Saturday, November 23, 2019

INSTÁVEL





"Sentir que a água invisível do medo nos inunda
e, ainda assim, respirar. Permanecer quando o chão
é líquido e instável e tentar até à dor o equilíbrio
por entre dunas de ar gelado. Ficar. Dizer sim
quando o silêncio é de nãos e o céu cai de si. 

Olhar. Mesmo quando a vida nos oprime
as pálpebras."


Virgínia do Carmo, Ecos de Green Rose, Poética Edições, 2019, p. 34. 

Friday, November 22, 2019

DO INEXPLICÁVEL



"- Danny? Ouve. Vou-te falar sobre isto pela primeira e última vez. Há coisas que nunca se deviam ter de dizer a um menino de seis anos. Mas a forma como as coisas deviam ser e a forma como são na realidade raramente coincidem. O mundo é um lugar duro, Danny. Não se importa com a gente. Não te odeia nem a ti nem a mim, mas também não morre de amores por nós. Acontecem coisas terríveis no mundo, e são coisas que ninguém pode explicar."

Stephen King, A Luz, trad. Regina Estêvão, sic Idea, 2009, p. 437. 

Thursday, November 21, 2019

POR CIMA DAS ÁRVORES



"E, depois da parte de baixo, recortaram o papel do feitio de casas, de árvores, de montes. Como a lâmpada está muito alta, as casas, as árvores e os montes ficam negros. 
Lembrei-me, outra vez, dos cartões que eu recortava na escola. Às vezes fazia quadros de papel de lustro, e o céu era sempre uma tira azul-escura que eu colava por cima das árvores, das casas e dos montes. 
Hoje o céu é muito simples."


Fiama Hasse Pais Brandão, Em Cada Pedra Um Voo Imóvel e outros textos, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, p. 60. 

Wednesday, November 20, 2019

DERRAMANDO




"A natureza, vê! é o inferno das almas:
As árvores, as flor's, as penhas escarpadas, 
Os sapos ao luar, os vinhedos e as palmas
São almas condenadas!

Por isso, tu nos vês derramando carinhos
Sobre ervas, minerais e plantas infelizes...
Sofrem humanamente as pedras dos caminhos, 
Os troncos e as raízes!

Só vaidade! A virtude é uma palavra vã!
Não julgues santa a caridade que exercemos:
Somos bons para que nos façam amanhã
O que hoje aqui fazemos."


Eugénio de Castro, "Sagramor", in Obra Poética, Tomo III, ed. Vera Vouga, Porto: Campo das Letras, 2002, p. 218. 

Tuesday, November 19, 2019

MOVIMENTO



"Na cidade todas as casas são de pedra. 
A geometria é mais que geometria. É vida. É polígonos de sombra à luz estática da lua a angular-se nas pedras. O movimento é a única realidade essencial. 
Em cada esquina, há um princípio e um fim. Mas todos passam e ninguém pára a meditar. Ninguém compreende o simbolismo tranquilo das esquinas, beleza fatalista das esquinas. 
Na cidade todas as casas são de pedra."


Fiama Hasse Pais Brandão, Em Cada Pedra Um Voo Imóvel e outros textos, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, p. 56. 

Monday, November 18, 2019

ABSOLVO



"De don Ciro contaban que el día que el Yayo, el herrador de Torrecillórigo, mató a palos a su madre y tras enterrarla bajo un montón de estiércol, se presentó a él para descargar sus culpas, don Ciro le absolvió y le dijo suavemente: «Reza tres Ave-marías, hijo, co mucho fervor, y no vuelvas a hacer.»"

Miguel Delibes, Las ratas, 9.ª ed., Barcelona: Ediciones Destino, 1982, p. 105. 

Sunday, November 17, 2019

ARDE




"O desejo transforma também o dia
Que no chão é deitado com amor. 
A atenção à luz é total porque envolve
Uma palavra que por sua vez é manto para ele. 
Uma união consolida-se pelo fogo. 
E as labaredas entranham-se no corpo e no ar. 
O dia é novo porque arde."


Maria Teresa Dias Furtado, Onde o Poeta mora seguido de Tradução do Silêncio, Braga: Poética Edições, 2019, p. 114. 

Saturday, November 16, 2019

INÓSPITO



"Tras la perra, bajo el teso, se abría el mundo; um mundo que la Columba, la mujer del Justito, juzgaba inhóspito, tal vez porque lo ignoraba. Un mundo de surcos pardos, simétricos, alucinantes. Los surcos del otoño, desguarnecidos, formaban un mar de cieno tan sólo quebrado por la escueta línea del arroyo, del otro lado del cual se alzaba el pueblo. El pueblo era también pardo, como una excrecencia de la propia tierra, y de no ser por los huecos de luz y las sombras que tendía el sol naciente, casi las únicas en la desolada perspectiva, hubiera pasado inadvertido."

Miguel Delibes, Las ratas, 9.ª ed., Barcelona: Ediciones Destino, 1982, p. 13. 

Friday, November 15, 2019

IMUTÁVEL



"Pela primeira vez, talvez, desde que viera ao mundo, acontecia-lhe pensar nos mortos sem medo. Somente eles, os mortos, contavam para alguma coisa, só eles existiam verdadeiramente. Levavam apenas um par de anos a reduzir-se a puro esqueleto: lera em algum lado. Mas depois nunca mais mudavam, nunca mais. Limpos, duros, magníficos, haviam-se transmutado como as pedras preciosas e os metais nobres. Imutáveis e, assim, eternos."

Giorgio Bassani, A Garça, trad. Sara Ludovico, Lisboa: Quetzal, 2013, p. 178. 

Thursday, November 14, 2019

OLHOS




"As pernas dos olhos para andar
O ombro dos olhos para dormir"


Edmond Jabès, A Obscura Palavra do Deserto (Uma Antologia), trad. Pedro Tamen, Lisboa: Cotovia, 1991, p. 25. 

Wednesday, November 13, 2019

QUARTO


"No Overlook, tudo tinha uma espécie de vida. Era como se tivesse dado corda ao lugar todo, com uma chave de prata. O relógio batia. O relógio batia. E ele era essa chave, pensou Danny tristemente."

Stephen King, A Luz, trad. Regina Estêvão, sic Idea, 2009, p. 300. 

Tuesday, November 12, 2019

ENTRADA




"O porteiro terrífico dos portões eternos levantou a tranca do Norte:
Thel entrou & viu os segredos da terra incógnita;
Ela viu os leitos dos mortos, & onde as raízes fibrosas
Dos corações da terra penetram fundo os torções inquietos:
Uma terra de mágoas e de lágrimas, onde jamais se viu sorriso."


William Blake, "O Livro de Thel", in Sete Livros Iluminados, trad. Manuel Portela, Lisboa: Antígona, 2005, p. 73. 

Monday, November 11, 2019

SÃO MARTINHO




"Ermo, 
o sol dá lugar às lájeas
lisas da noite, açoitada de vento.
Prende a imobilidade da morte
sob o vaguear incessante, asas
do anjo, a vida do insecto, 
cobre plantado na coroa
do outeiro."


João Miguel Fernandes Jorge, "Pelo Fim da Tarde", in Obra Poética, vol. 6, Lisboa: Editorial Presença, 2000, p. 95. 

Sunday, November 10, 2019

TODOS-OS-SANTOS



"São felizes de verdade. E já não me seguem
em silêncio e vão, em sombra, de grandes sacos
pelo caminho pedregoso. Pão por deus é o que
pedem submissos. Por vezes o novembro começa
sob os fiapos amarelos da leve bruma. 

E correm exultando a proximidade de todos os
santos. Vão pelas dissonâncias do mar
p'la novidade dos figos secos. 
As janelas estavam abertas
e o cheiro da lúcia-lima entrava na sala

combinado com os tiros da primeira caça. 
Mais tarde ou mais cedo acabariam 
estendidos nas dunas, os braços estreitando o
outro corpo. 
Ao redor, 

uma feira de luzes e os olhos, suplicantes, 
tomavam o pão-por-deus.
Vacilantes, carregavam a parte que lhes cabia."


João Miguel Fernandes Jorge, "Tronos e Dominações", in Obra Poética, vol. 6, Lisboa: Editorial Presença, 2000, p. 71. 

Saturday, November 9, 2019

INFINITO




"Sendo o desejo do Homem Infinito, Infinita é a posse & ele próprio é Infinito.
Por isso, Deus vem a ser o que somos, para virmos a ser o que ele é."


William Blake, "Não há religião natural", in Sete Livros Iluminados, trad. Manuel Portela, Lisboa: Antígona, 2005, p. 61. 

Thursday, November 7, 2019

NEGAÇÃO




"A morte é natural na natureza. Mas
nós somos o que nega a natureza. Somos
esse negar da espécie, esse negar do que 
nos liga ainda ao Sol, à terra, às águas. 
Para emergir nascemos. Contra tudo e além
de quanto seja o ser-se sempre o mesmo
que nasce e morre, nasce e morre, acaba
como uma espécie extinta de outras eras. 
Para emergirmos livres foi que a morte
nos deu um medo que é nosso destino. 
Tudo se fez para escapar-lhe, tudo
até coragem, desapego, amor, 
para que morte fosse natural."


Jorge de Sena, "Metamorfoses", in Poesia 1, Lisboa: Guimarães/Babel, 2013, p. 357. 

Wednesday, November 6, 2019

CENTENÁRIO



"Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes

Deixai-me com as coisas 
Fundadas no silêncio"


Sophia de Mello Breyner Andresen, "Livro Sexto", in  Obra Poética I, Lisboa: Editorial Caminho, 1992, p. 374. 

Tuesday, November 5, 2019

PAVIMENTO




"muitas vezes enterro versos
por longos anos os abandono
à escuridão

até que acordam 
entre pensamentos acenando
restituídos à vida
e de novo encontram o seu lugar

o poema é por isso uma fibrilação
um suceder-se irregular e desordenado
de contracções
que pode ser fatal"


Mário Rui Oliveira, O Livro da Consolação, Lisboa: Assírio & Alvim, 2019, p. 34. 

Monday, November 4, 2019

ABERTURA




" - Aí está! - disse Wendy, sorrindo. - Eis uma pessoa que vale o que lhe pagam.
- Mas ele não gostava daquela senhora. - disse Danny, imediatamente. - Estava a fingir que gostava dela.
Jack sorriu-lhe malicioso.
- Tenho certeza de que tens razão, doc. Mas a lisonja é o lubrificante ideal para as engrenagens do mundo.
- O que é a lisonja?
- A lisonja - explicou Wendy - é quando o teu pai diz que gosta das minhas novas calças, mesmo não gostando, ou então quando diz que não preciso de perder uns quilinhos.
- Já sei. É mentir na brincadeira?
- Uma coisa assim.
Olhou-a mais de perto e disse:
- A mãe é bonita. - E franziu as sobrancelhas confuso, quando os pais se entreolharam e explodiram numa gargalhada."

Stephen King, A Luz, trad. Regina Estêvão, sic Idea, 2009, p. 67. 

Sunday, November 3, 2019

SIMPLICIDADE



"- A simplicidade dos trajos - disse ela - convém à opulência e não fica mal à grandeza.
- Faz parte da beleza divina confiar na sua força - acrescentou Soliman - e ao homem desconfiado da sua própria fraqueza não se esquecer de nada."


Gérard de Nerval, Balkis, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2019, p. 38. 

Saturday, November 2, 2019

DIA DOS MORTOS



"Adonai, que reina à volta dos mundos, murou a terra e interceptou está atracção externa. Disto resulta que a terra há-de morrer como os seus habitantes. Já envelhece; espécies inteiras de animais e plantas desapareceram; as raças fazer-se mais pequenas, a duração da vida abrevia-se."


Gérard de Nerval, Balkis, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2019, p. 96.

Friday, November 1, 2019

SANTIDADE


"Na sua essência, a santidade é uma realidade única que no entanto apresenta simultaneamente milhares de facetas. Entre os seus objetivos está o de atingir a perfeição da caridade, isto é, o grau superior de amor para com Deus e o próximo. E isto exige que se cumpra, na vida pessoal, o projecto que Deus desenhou expressamente para cada homem, que não é um produto «efeito em série» mas antes uma obra de artesanato divino."

José Saraiva Martins, Como se Faz um Santo, trad. António Rocha, Lisboa: Aletheia Editores, 2005, p. 13.