Monday, April 27, 2020

ARRASTAR O MUNDO



"Sentou-se à espera que 
as últimas palavras
lhe indicassem o caminho
que o podia trazer de novo
à beira do precipício. 
Por várias vezes iniciou
o poema, mas, ao longe, 
um rumor levou-o a suspeitar
de uma presença que o parecia
sondar por entre os arbustos. 
Fizesse o que fizesse, era
sob o seu olhar que escrevia, 
elaborando cenários
a que depois as palavras
davam uma consistência
que no seu pensamento
ainda não possuíam:
escrevia para se inventar
uma saída para fora 
do poema, arrastando
o mundo para uma cerimónia
que só pelo Horror, 
no estertor dos signos, 
se sabia conseguida."

[Fernando Guerreiro], Ventos Borrascosos, 100 Cabeças, 2019.