"Normalmente, seguia a sua fantasia e esculpia invariavelmente madonas: grandes madonas orgulhosas carregando nas pregas pesadas das suas mangas um Menino Jesus rechonchudo e vigoroso. Ou então senhoras insignificantes, desamparadas e desprotegidas, tão espantadas pela sua maternidade que pareciam prestes a pousar nalgum sítio, não se importava aonde, os seus minúsculos Salvadores num gesto de bênção. Outras ainda, envergando grandes coroas, estendiam as suas mãos numa dávida infinita de si próprias. Por vezes, em sinal de timidez e de confusão, cruzavam sobre o peito os seus braços cansados, e as suas pálpebras ficavam pesadas à força de estarem fechadas...
E finalmente, algumas delas tinham reclamado cor, um ar mais rosado nas suas faces, e mais rosado ainda nos seus lábios; e eis que a sua fisionomia se transformava e ficava com um ar muito mais são, mais vigoroso. Mas era a mesma expressão de gratidão em relação a Werner: deviam-lhe a vida. Teriam todas reunido os seus esforços para ajudar o rapaz a reencontrar o seu uso das pernas, paralisadas desde os seus dezasseis anos, se alguém ao menos se tivesse querido ajoelhar diante delas. Mas na sua maioria não tinham sido criadas sob encomenda. Era em vão que elas esperavam no sótão, uma ao lado das outras; nunca imaginariam que pudesse alguma vez chegar o dia em que todas elas se aliassem na mais profunda união a fim de conseguirem realizar o milagre. As pessoas da aldeia perguntavam-se muitas vezes como é que Werner não se cansava de esculpir essas virgens e os velhotes sacudiam as suas cabeças brancas num sinal simultâneo de admiração e reprovação. Sacrilégio! Quem é que poderia conhecer exactamente os traços da Virgem?
E Werner muito menos do que qualquer outro, já que a paralisia o tinha impedido desde sempre de ir à igreja."
Rainer Maria Rilke, "Traço Comum", in Histórias do Bom Deus e outros textos, trad. Maria Gabriela Cardote, Lisboa: Livros do Brasil, 1989, p. 27.
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