"Todos os meus papéis se perderam nas mãos de uma criança.
Versos que dariam obras-primas e algumas prebendas mais,
artigos dispersos, introduções e prefácios a poetas geniais,
colectâneas de inéditos com garantia de inesgotáveis créditos,
romances que são do melhor que se fez neste país de aridez,
além de abundantes dados dos meus tempos dourados,
cartas de amigos e inimigos, bilhetinhos trémulos e efémeros,
e outros papéis perdidos sem glória que me deixaram na penúria.
Os filhos são perigosos dentro de casa porque tudo nos arrasam.
Na fogueira ou na banheira, tudo se vai com alegria e brincadeira,
e às vezes penso que é nos seus prazeres que a verdade se esconde.
Quando não cumprem os deveres, sabem por exemplo onde
procurar a verdade e brincar com a verdade de maneira profunda,
que confesso desconhecer nesta minha vida perfeitamente redonda
que eles não querem sequer jogar à bola quando chegam da escola.
Todo o poeta deveria ter papéis à sua volta com crianças à solta,
porque o poema destroçado é a voz da verdade que nenhum poeta
pode exprimir nos seus versos de forma original e completa.
Hoje agradeço à minha criança o bem que fez pela minha obra
e todos os dias lhe peço que leia os meus versos e lhes faça justiça.
A minha criança ainda não sabe ler mas de vez em quando esquissa
um poema colorido que põe no sítio preciso do seu poema destruído."
Luís Adriano Carlos, Torpor, Porto: Porto Editora, 2020, p. 14.