"noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras.
hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se
onde se pode - num vocabulário reduzido e
obsessivo - até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir
apesar de tudo
continuamos a repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva - vamos pela febre
dos cedros acima - até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial."
Al Berto, Horto de Incêndio, 3ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, pp. 11-12.
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