" - Em que língua falou? Foi em hebraico?- Foi na língua das asas que Ele o disse. Não lha posso ensinar, já não me lembro. Quando me engaiolaram, esqueci-a. Mas que impressão lhe faz o meu segredo? Se os homens o soubessem, seria Ele na verdade o Redentor...- Sim, sim. É bem justo o que me grasna. Shelley tê-lo-ia amado como irmão, e Nietzsche, o próprio Nietzsche...- Bem sei. Esse afirmou com pompa, lá para o Norte, que Ele decerto se teria refractado se tão cedo o não crucificassem. Foi minha mãe que o disse a Zaratrustra. Zaratrustra ouviu mal, não disse tudo. A verdade é assim, como eu lha conto. Parece que os homens riram do filósofo, acharam tudo isso uma tolice...- Acharam...- E afinal esse Hebreu crucificado, no instante supremo de tortura, quando p'ra além das nuvens o esqueciam, chamava só por Pã, o grande Pã! Se os homens soubessem isto e o entendessem, teria o grande Pã ressuscitado. Seriam brancas estas pobres asas.- Brancas? Porquê?- Durante séculos tivemos asas brancas, todas nós, águias da minha estirpe.Foi só depois que Pã morreu que elas ficaram pretas, como luto. Quem se lembra de Pã por estes tempos?...- Os que sabem amar, os que ainda amam.- Os que sabem amar!... Esse Hebreu mesmo só conheceu o Amor no alto da cruz. Viveu como um fantasma transparente, com sonho nas artérias e nos olhos... Só escoado em sangue, no madeiro, viu nos olhos da minha avó sanguissedenta dois espelhos do Amor, irmão do sangue...- Conhecem lá o amor aves de presa!"
António Patrício, "Diálogo com Uma Águia", in Serão Inquieto, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 1995, pp. 15-16.
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