Sunday, December 16, 2012

LÍNGUA DAS ASAS




" - Em que língua falou? Foi em hebraico?
- Foi na língua das asas que Ele o disse. Não lha posso ensinar, já não me lembro. Quando me engaiolaram, esqueci-a. Mas que impressão lhe faz o meu segredo? Se os homens o soubessem, seria Ele na verdade o Redentor...
- Sim, sim. É bem justo o que me grasna. Shelley tê-lo-ia amado como irmão, e Nietzsche, o próprio Nietzsche...
- Bem sei. Esse afirmou com pompa, lá para o Norte, que Ele decerto se teria refractado se tão cedo o não crucificassem. Foi minha mãe que o disse a Zaratrustra. Zaratrustra ouviu mal, não disse tudo. A verdade é assim, como eu lha conto. Parece que os homens riram do filósofo, acharam tudo isso uma tolice...
- Acharam...
- E afinal esse Hebreu crucificado, no instante supremo de tortura, quando p'ra além das nuvens o esqueciam, chamava só por Pã, o grande Pã! Se os homens soubessem isto e o entendessem, teria o grande Pã ressuscitado. Seriam brancas estas pobres asas.
- Brancas? Porquê?
- Durante séculos tivemos asas brancas, todas nós, águias da minha estirpe.
Foi só depois que Pã morreu que elas ficaram pretas, como luto. Quem se lembra de Pã por estes tempos?...
- Os que sabem amar, os que ainda amam.
- Os que sabem amar!... Esse Hebreu mesmo só conheceu o Amor no alto da cruz. Viveu como um fantasma transparente, com sonho nas artérias e nos olhos... Só escoado em sangue, no madeiro, viu nos olhos da minha avó sanguissedenta dois espelhos do Amor, irmão do sangue...
- Conhecem lá o amor aves de presa!"
 
António Patrício, "Diálogo com Uma Águia", in Serão Inquieto, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 1995, pp. 15-16.

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