Wednesday, February 27, 2013

PAISAGEM


"Esta paisagem em que não creio é toda a minha alma.
Nela me abismo como quem reflui, abstracta vaga
de estrutura alheia. Não creio nela, acredito nela,
verifico a existência dela, dela vivo e nela morrerei,
para ainda nela me dissolver enfim, enquanto outros
pensarão que ascendi à celeste esfera ou que desci
às chamas sulfurosas do inferno. Sim, não
creio nela, mas sei que nela principia e se termina
a minha alma dela. Todavia, se alma tiver, prometo
a cada instante a mim mesmo que no fim
hei-de crer como um arrependido nela.

Esta paisagem em que me recreio é quase toda a minha alma."
  Luís Adriano Carlos, Livro de Receitas, Porto: Campo das Letras, 2000, p. 23.

Tuesday, February 26, 2013

TABUS


"Estava morta por não ter adivinhado o Mistério, e que havia uma coisa em que era preciso não tocar sob pena de sacrilégio. Ela ousara levantar a mão, sim, ela, para a trança, vingativa, essa trança que, de improviso - para aqueles cuja alma é pura e comunica com o Mistério -, dava a entender que, no minuto em que fosse profanada, ela própria se tornaria instrumento de morte."
Georges Rodenbach, Bruges, a Morta, trad. Domingos Monteiro, Lisboa: Editorial Inquérito, s.d., p. 129.

Monday, February 25, 2013

COMISERAÇÃO / VERTIGO


"Hugo, já depois dela morta, cortara esses cabelos doirados, que foram talhados em trança nos últimos dias da doença. Não são os cabelos a única forma de comiseração da morte? Ela tudo destrói, mas deixa as cabeleiras intactas. Os olhos, os lábios, tudo se aniquila e modifica. Os cabelos nem sequer perdem a cor. É só neles que a gente sobrevive! E agora - passados cinco anos já! - a trança da morta, que conservara, não tinha empalidecido sequer, apesar do sal de tantas lágrimas!"
 
Georges Rodenbach, Bruges, a Morta, trad. Domingos Monteiro, Lisboa: Editorial Inquérito, s.d., p. 11.

Sunday, February 24, 2013

O DIA FÚTIL



"Foi um dia de inúteis agonias,
- Dia de sol, inundado de sol.
Fulgiam, nuas, as espadas frias.
- Dia de sol, inundado de sol.

Foi um dia de falsas alegrias.
- Dália a esfolhar-se, o seu mole sorriso.
Voltavam os ranchos das romarias.
- Dália a esfolhar-se, o seu mole sorriso.

Dia impressível, mais que os outros dias.
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido.
Difuso de teoremas, de teorias...

O dia fútil, mais do que os outros dias!
Minuete de discretas ironias...
Tão lúcido, tão pálido, tão lúcido!"
  Camilo Pessanha, Clepsydra, ed. crítica de Paulo Franchetti [ort. act.], Lisboa: Relógio d'Água, 1995, p. 100.

Saturday, February 23, 2013

MADURO



"Na modorra das tardes vadias da fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés da terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho; não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de paciência meu sono adolescente? que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda? de que adiantavam aqueles gritos, se os mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? (meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo)."
  Raduan Nassar, Lavoura Arcaica, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, pp. 13-14.

Friday, February 22, 2013

DELTA


"Todo o amor tem querela. Suspiro. Interrompo o ressonar. O pescoço dela é morno como um ventre com dez mamilos."

Maria Velho da Costa, Myra, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, p. 66.

Thursday, February 21, 2013

PORQUÊ ESTAS E NÃO OUTRAS?


"A questão de Beaumarchais - «Porquê estas coisas e não outras?» - jamais tem resposta, porque o universo é destituído de finalidade. A ausência de finalidade é o reino da necessidade. As coisas têm causas e não fins. Aqueles que crêem decifrar os desígnios particulares da Providência assemelham-se aos professores que à custa de um belo poema se entregam àquilo a que chamam a explicação do texto."
  Simone Weil, Espera de Deus, trad. Manuel Maria Barreiros, Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, p. 180.

Tuesday, February 19, 2013

TIRANIA


"O que é a razão?
Wong mantinha-se quieto a pensar, o olhar velocíssimo em cada planta destroçada, talvez vivaz, viva ainda. A sua vida.
Rambo, atrevido depois das provações da noite, puxava-lhe pelas calças de ganga, falava e Myra ouvia.
- Vamos para casa. Isto é muito cansativo.
És um tirano, Rambô, um tirano escondido na fealdade.
Quem me fez lá sabe, disse o cão, trotando feliz em direcção à gamela, sacudindo as patas do lamaçal inesperado na propriedade privada dos que o amavam e ele amava."
Maria Velho da Costa, Myra, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, p. 127.

Sunday, February 17, 2013

O ESPANTO


"Riu de novo.
- Já pensaste, Leninha, que posso ser uma assombração, um fantasma?
- Ou eu ou vossemecê, disse Myra.
- Deixa lá o vossemecê.
Chamo-me Alonso. Os fantasmas não têm cão.
- Sabe-se lá. O senhor Alonso tem cão. E eu também. Se eu for, levo-o comigo para o mar dos mortos, que é o céu."
 
Maria Velho da Costa, Myra, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, p. 83.

Saturday, February 16, 2013

DEPURAR


"O demónio de Sócrates era um certo impulso da sua vontade que se apoderava dele sem o ditame do seu raciocínio; numa alma tão bem governada como a deste filósofo, e tão depurada pelo não interrompido exercício da sobriedade e da virtude, é verosímil que tais inclinações, embora temerárias e severas, fossem sempre importantes e dignas de chegar ao fim. Cada qual sente em si mesmo algum âmago dessas agitações a que um impulso pronto, veemente e fortuito dá margem. Dou mais autoridade a tais impulsos que à reflexão, e experimentei-os tão débeis em razão e violentos em persuasão e dissuasão, como frequentes eram em Sócrates; deixo-me levar por eles tão útil e felizmente que poderia dizer-se que encerram algo da inspiração divina."
Michel de Montaigne, Ensaios (Selecção), trad. R. Correia, Lisboa: Amigos do Livro, s.d., p. 38.

Friday, February 15, 2013

GUIADOS



"Um soldado da guarda de César, que se achava ferido e destroçado, pediu ao imperador licença para se matar. César, ao contemplar o seu decrépito aspecto, respondeu-lhe engenhosamente: «Acaso te julgas vivo?» Mas, guiados pela sua mão, por uma suave e como insensível encosta, pouco a pouco, e como que gradualmente, aproxima-nos daquela miserável situação e familiariza-nos com ela de tal modo que não sentimos nenhuma transição violenta quando a nossa juventude acaba, o que é na realidade uma morte mais dura do que o acabamento de uma vida que amortece, como é a morte na velhice. A passagem do mau viver para o não viver não é tão rude como a da idade florescente para uma situação penosa e rodeada de males."

Michel de Montaigne, Ensaios (Selecção), trad. R. Correia, Lisboa: Amigos do Livro, s.d., p. 63.

Wednesday, February 13, 2013

REDIME O TEMPO (40 DIAS)


"Porém a fonte jorrou e a ave cantou
Redime o tempo, redime o sonho
O penhor da palavra ensurdecida, emudecida

Até que o vento sacuda do teixo sussurros mil

E depois deste nosso desterro."

T.S. Eliot, Quarta-Feira de Cinzas, trad. Rui Knopfli, Lisboa: Relógio D'Água, 1998, p. 21.

Tuesday, February 12, 2013

COLORIDO / EMOTIVO


"Os pensamentos não são coloridos. Mas suponhamos que tudo aquilo que um homem pensa fosse tingido de cor e atirado para fora da cabeça como um fogo-de-artifício. Qual seria a decoração do ar das Cidades? Do céu das grandes aglomerações populacionais? Assim, através desse tom, dessa aura, dessa mancha levantada da cabeça, a compreensão do outro seria alcançável, visível. Teríamos algo a que nos agarrar. Poderíamos ler as nuvens. E dizer, consoante a influência do amarelo, do rosa, do verde, do azul, do roxo, do laranja, do castanho, do cinzento, do preto, sei como pensas, não preciso das tuas frases para saber se devo afastar-me ou aproximar-me. Toda a vasta culinária de pensamentos santos ou assassinos seriam pintados na tela da atmosfera e, mais importante, facilmente identificados."
  Sandro William Junqueira, Um Piano para Cavalos Altos, Lisboa: Caminho, 2011, p. 188.

Monday, February 11, 2013

A IMPORTÂNCIA DA ABDICAÇÃO


"Calfúrnia - Em que pensas, César? Pensas em sair? Não, hoje não sairás de casa.

César - César há-de sair. Os prenúncios que me ameaçam ainda me não viram de frente; quando me virem cara a cara, eles desaparecerão.

Calfúrnia - César, eu nunca dei importância a prodígios, e todavia hoje assustam-me. Contam-se para aí cousas horríveis que apareceram às sentinelas, ainda além das que nós vimos e ouvimos. Uma leoa pariu no meio duma rua; os túmulos escancararam-se e expeliram de si os cadáveres; viram-se guerreiros a combater furiosamente nos ares, a ponto que o sangue gotejava sobre o Capitólio! O ruído do combate ressoava nos ares; os cavalos nitriam, gemiam os moribundos, fantasmas ululavam pelas ruas! Ó César! estas cousas sobrenaturais infundem-me receios!

César - E pode-se evitar o que os deuses determinam? César sairá; porque essas predições tanto se podem referir a César como a todos em geral."
 
William Shakespeare, Júlio César, trad. A. J. Anselmo, Porto: «Renascença Portuguesa», 1916, pp. 58-59.

Sunday, February 10, 2013

UPIR 2


" - Não mo pergunte - respondeu ela, estremecendo -, não fale disso comigo! Estou muito feliz por ver o senhor - acrescentou com um sorriso. - Quanto tempo vai ficar aqui em casa?
- O mais tempo possível!
- E vai dormir sempre neste quarto?
- Acho que sim. Mas por que me pergunta?
- Porque quero falar consigo a sós. Venho a este quarto todas as noites, mas é a primeira vez que encontro aqui o senhor.
- É claro, cheguei apenas hoje.
- Runévski - disse ela depois de uma pausa. - Faça-me um favor. No canto ao lado do divã, na prateleira, há uma caixinha e, dentro, um anel de ouro; pegue no anel e, amanhã, faça o noivado com o meu retrato.
- Meu Deus! - exclamou Runévski. - Já viu o que me está a pedir?"
Aleksei K. Tolstoi, "Upir" [O Vampiro], in O Vampiro e a Família do Vampiro, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Lisboa: Arbor Litterae, 2010, p. 43.

Saturday, February 9, 2013

UPIR 1


"Não chores, patroa, anima a alma!
Tu própria nos convidaste para a festa!
A maldição do marido troveja sobre Marta,
À beira da morte lançada:
Perece, maldita, tu e a tua linhagem,
cem vezes serás maldita!
Exaurida seja o amor entre vós,
que a avó sugue o sangue da neta!
Que pesem as pragas sobre os descendentes,
que não haja lugar para eles,
até que um dia o retrato se case
e a noiva se levante da campa,
e a última pagante do perverso amor
com o crânio partido se deite no sangue!
O bufo caçou o morcego cinzento,
apertou-lhe os ossos com as garras,
o cavaleiro Ambrósio com os seus farfantes
Foi visitar o vizinho.
Não chores, patroa, anima a alma,
Tu própria nos convidaste para a festa!"
 
Aleksei K. Tolstoi, "Upir" [O Vampiro], in O Vampiro e a Família do Vampiro, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Lisboa: Arbor Litterae, 2010, p. 33.

Friday, February 8, 2013

ESFORÇO


"Mas Deus, por qualquer razão que apenas podemos adivinhar, decidiu dar à sua especial criação, ou seja, a humanidade, a liberdade de escolher entre o bem e o mal, entre a submissão aos propósitos de Deus ou revoltar-se contra eles. Ele não os programou com um sistema pré-determinado de instintos que controlam as actividades do homem, bem como os seus pensamentos, tal como Ele fez com todas as outras criaturas, mas Ele queria dar-lhes a oportunidade de alcançar a perfeição através dos seus próprios esforços."
 
George Frankl, Os Fundamentos da Moralidade, trad. Fernando Dias Antunes, Lisboa: Editorial Bizâncio, 2003, pp. 196-197.

Wednesday, February 6, 2013

ANTIGO / DESGASTE


"Juventude, beleza, morte - as três coordenadas do mundo antigo. Martine escreveu: «Disse a mim própria que no sufismo e no tauísmo (seria preciso demasiado tempo para te convencer que a Astarte original de Érice era muito mais antiga do que a grega) não têm nada que ver com a noção de doença como nós a encaramos. Eles não falam em curar-se, mas simplesmente em modificar a conduta. Presume-se que um acto errado da nossa parte originou uma desarmonia com o universo e a doença é a manifestação dessa desarmonia. Acredito nisso com todo o meu coração, mas também acredito no destino, assim como em que nos vamos desgastando, como uma panela."
 Lawrence Durrel, Carrocel Siciliano, trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Lisboa: Livros do Brasil, 1992, p. 254.

Tuesday, February 5, 2013

ACORDADO


"Tem que adormecer-se em cima na luz.
Tem que se estar acordado em baixo na escuridão intraterreste, intracorporal dos diversos corpos que o homem terrestre habita; o da terra, o do universo, o seu próprio.
Além nas "profundidades", nos ínferos o coração vela, desvela-se, reacende-se em si mesmo.
Em cima, na luz, o coração abandona-se, entrega-se. Recolhe-se. Adormece por fim já sem mágoa. Na luz que acolhe onde não se padece nenhuma violência, pois chegou-se ali, a essa luz, sem forçar nenhuma porta e até sem a abrir, sem ter atravessado lintéis de luz e de sombra, sem esforço e sem protecção."
María Zambrano, Clareiras do Bosque, trad. José Bento, Lisboa: Relógio D'Água, 1995, p. 43.

Sunday, February 3, 2013

DESCONFIANÇAS


"Em certas horas a sociedade humana tem os seus enigmas, enigmas que para os sábios se resolvem em luz e para os ignorantes em escuridão, em violência e em barbárie. O filósofo hesita em acusar. Tem em conta as perturbações provocadas pelos problemas. Os problemas não passam sem lançar uma sombra, como as nuvens."
Victor Hugo, Noventa e Três, trad. Pedro Reis, Lisboa: Amigos do Livro, Editores, s.d., p. 168.

Saturday, February 2, 2013

COLHIDO EM LUCRÉCIO


"A beleza tende para a esfericidade. O olhar que a recolhe quer abrangê-la toda ao mesmo tempo, porque é una, manifestação sensível da unidade, suposto da inteligência do que tão facilmente ao ficar preso de "isto" ou de "aquilo" e da sua relação, sobretudo da sua relação, se desprende. Já que isto ou aquilo considerado desinteressadamente mostra a sua unidade, não sua talvez, mas unidade ao fim e ao cabo.
E a beleza na qual depois distingue a inteligência, elementos e relações até com os seus números, oferece-se ao aparecer como unidade sensível. E a mente de quem a contempla tende a assimilar-se a ela, e o coração a bebê-la, num só hausto, como seu cálice ansiado, o seu feitiço."

María Zambrano, Clareiras do Bosque, trad. José Bento, Lisboa: Relógio D'Água, 1995, p. 59.

Friday, February 1, 2013

ARQUIACIONADORES


"Também para Empédocles o mundo estava arranjado de uma maneira não excessivamente misteriosa, embora estivesse longe de ser a máquina impulso-inibidora governada por mecanismos invisíveis e sem alma. A melhor maneira de o interpretar era como uma esfera incessantemente agitada por dois impulsos ou disposições primordiais que, por seu turno, actuavam sobre quatro raízes fundamentais de todo o ser: fogo, ar, água, terra. Este motor de unir e separar (a máquina do Amor e da Discórdia), nas suas convulsões completamente involuntárias, manipulava matéria e expelia-a num milhão de padrões e misturas diferenciadas, como um caleidoscópio expele imagens à mais leve sacudidela. Os arquiaccionadores de todo o processo eram o Amor e o Ódio - os impulsos da união e da desunião. O domínio de um ou do outro produzia efeitos perfeitamente reconhecíveis na natureza, ligas dos quatro elementos fundamentais. Parece suficientemente claro."
Lawrence Durrel, Carrocel Siciliano, trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Lisboa: Livros do Brasil, 1992, p. 200.