Sunday, June 30, 2013

A OFERENDA


"Enquanto proferiu estas palavras, verteu muitas lágrimas e pediu a Hipótoo que a deixasse cortar uma mecha do seu cabelo para a consagrar a Hélio e fazer-lhe uma súplica por Habrócomes. Hipótoo concordou. Ela cortou então o que pôde das suas madeixas e, aguardando por um momento oportuno, quando todos se foram embora, fez a oferta, na qual deixou gravadas as seguintes palavras:

«Pelo seu marido Habrócomes, Ântia consagrou o seu cabelo ao deus.»

Depois de ter depositado a oferenda e de ter encomendado as suas preces [a Hélio], foi-se embora, acompanhada por Hipótoo.
Lêucon e Rode, que estiveram todo o tempo na procissão, acabaram por entrar no templo. Observaram as oferendas e reconheceram os nomes dos seus senhores. A sua primeira reação foi beijar o cabelo e discorrer em toda a casta de lamentos, como se estivessem a ver ali Ântia; mas, depois puseram-se a correr de um lado para o outro, a ver se conseguiam encontrá-la em algum lugar (a população de Rodes ainda se lembrava dos nomes deles e que lá tinham estado antes). Por não terem conseguido descobrir nada naquele dia, foram-se embora e contaram a Habrócomes o que tinham encontrado no templo. Ele sentiu-se atingido no seu coração com a notícia inesperada, alimentando grande esperança de poder encontrar Ântia."
Xenofonte de Éfeso, As Efesíacas - Ântia e Habrócomes, trad. Vítor Ruas, Lisboa: Edições Cosmos, 2000, L. V, pp. 64-65.

Saturday, June 29, 2013

NA COVA


"Eles cumpriram a ordem: Ântia foi levada para a cova. Os cães eram egípcios, de um porte fora do habitual e metiam medo só de olhar para eles. Logo que os lançaram lá para dentro, puseram em cima umas tábuas grandes e taparam com terra a cova (que ficava a pouca distância do Nilo), deixando lá de sentinela um dos piratas, Anfínomo. Este Anfínomo já antes se tinha apaixonado por Ântia e, neste momento, a sua dor por ela ainda era maior, lamentando a sua infelicidade. Ele arranjou então maneira de lhe prolongar a vida e de os cães não lhe fazerem mal. De vez em quando, afastava as tábuas que estavam em cima da cova, atirava pedaços de pão e água, exortando Ântia a ter coragem. Assim, os cães, pelo facto de serem alimentados, não lhe faziam mal nenhum; bem pelo contrário, já se tinham tornado mansos e meigos. Então Ântia, revendo a sua vida, pôs-se a reflectir na situação em que se encontrava: «Ai de mim! Que infelicidade a minha! Que castigo tenho eu de suportar? Uma cova por prisão e, fechados aqui comigo, uns cães que são bem mais meigos do que os piratas. O sofrimento por que eu estou a passar, Habrócomes, iguala-se ao teu: também tu estavas nas mesmas situações, quando, em Tiro, eu te deixei numa prisão. Mas se ainda estás vivo, este meu sofrimento não é nada, pois um dia talvez nos reencontremos; mas se já morreste, é em vão que eu luto pela vida, é em vão que este homem, seja ele quem for, se compadece de mim, que sou uma desgraçada». Foram estas as palavras que deram voz aos queixumes que constantemente repetia. E lá estava ela enfiada naquela cova com os cães; quanto a Anfínomo, todos os dias a consolava, dando de comer aos cães, para os amansar."

Xenofonte de Éfeso, As Efesíacas - Ântia e Habrócomes, trad. Vítor Ruas, Lisboa: Edições Cosmos, 2000, L. IV, p. 50.

MARTÍRIO


"Ergueram a cruz e amarraram-no a ela, atando-lhe as mãos e os pés com cordas, pois era este o hábito deles na crucificação. Depois foram-se embora, deixando-o ali suspenso, cientes de que ele lá ficava atado em segurança. Depois de ter olhado fixamente para o Sol, Habrócomes virou-se para o leito do Nilo e disse: «Ó deus de todos os deuses, o mais misericordioso para todos os humanos, tu que és senhor do Egipto, que deste a conhecer a terra e o mar a todos os seres humanos, se Habrócomes cometeu algum crime, que eu morra miseravelmente e, se for possível, que receba uma punição ainda maior que esta; mas se eu fui atraiçoado por uma muher perversa, que estas águas do Nilo não fiquem manchadas com o sangue do corpo de quem foi morto injustamente, nem tu assistas a uma tal cena: ver um homem que nada fez de mal a morrer nas tuas águas». Foi esta a súplica que ele lhe fez. E o deus compadeceu-se dele. Uma rajada de vento surgiu então repentinamente, abateu-se sobre a cruz e desmoronou o terreno do precipício onde estava implantada; Habrócomes caiu à água e foi arrastado sem que a corrente o pusesse em perigo, nem as cordas o mobilizassem, nem ainda os seres marinhos lhe fizessem mal; a corrente apenas se limitou a conduzi-lo. Arrastado até às Embocaduras do Nilo, chegou ao lugar em que estas confinavam com o mar. Aí os guardas de serviço agarraram-no e, como um fugitivo da justiça, levaram-no à presença do Governador do Egipto."
Xenofonte de Éfeso, As Efesíacas - Ântia e Habrócomes, trad. Vítor Ruas, Lisboa: Edições Cosmos, 2000, L. IV, pp. 46-47.

Friday, June 28, 2013

AD AMOREM, AD MORTEM, RUMO A ALEXANDRIA


"Entretanto, logo que se fez noite, uns piratas, ao saberem que uma moça tinha sido sepultada com inúmeras riquezas e que com ela jazia também uma grande quantidade de adornos femininos, muita prata e muito ouro, dirigiram-se ao túmulo e arrombaram as portas da sepultur; entraram lá dentro, apoderaram-se de tudo o que era de valor e viram que Ântia estava viva. Pensando que também ela lhes daria um lucro chorudo, levantaram-na e queriam levá-la com eles. A moça, porém, atirou-se-lhes aos pés e suplicou nestes termos: «Meus senhores, quem quer que vocês sejam, peguem nestes adornos, em tudo o que aqui está e fiquem com tudo o que foi sepultado comigo, mas mantenham-se afastados de mim. Eu estou consagrada a duas divindades: ao Amor e à Morte. Deixem-me continuar devota delas. Por favor, pelos deuses da vossa própria pátria, não me façam encarar a luz do dia, porque eu sou uma desgraçada que apenas sou digna de noite e trevas». Com estas palavras ela não conseguiu convencer os piratas; eles tiraram-na do túmulo, dirigiram-se ao mar, meteram-se no seu barco e rumaram em direcção a Alexandria. Durante a viagem, cuidaram dela e procuraram consolá-la. Ao meditar na infelicidade em que se via novamente, [Ântia] desfez-se em lamentos e queixumes. «Outra vez», disse ela, «piratas e mar; aqui estou eu outra vez como prisioneira; mas agora é ainda mais doloroso, porque me falta a companhia de Habrócomes. Que terra é que me irá receber? Que espécie de homens eu irei lá encontrar? Oxalá eu nunca mais veja nem Méris, nem Manto, nem Perilau, nem a Cilícia. Oxalá que para onde eu vá possa encontrar o túmulo de Habrócomes. É só o que eu peço!» À medida que ia falando, as suas lágrimas não paravam de correr; também não queria beber nem comer, mas os piratas obrigavam-na."
Xenofonte de Éfeso, As Efesíacas - Ântia e Habrócomes, trad. Vítor Ruas, Lisboa: Edições Cosmos, 2000, L. III, pp. 38-39.

Thursday, June 27, 2013

EM PELÚSIO



"Ao desembarcarem, caíram sobre eles uns pastores de lá que lhes roubaram as mercadorias, amarraram os homens e os levaram por um longo caminho desértico para Pelúsio, uma cidade do Egipto, onde os venderam como escravos a um e outro comprador. Habrócomes foi então comprado por um velho soldado (que já estava na reforma), Araxo de seu nome. Este Araxo tinha uma mulher, que, se vê-la já era repugnante, ouvi-la ainda pior, ultrapassando todos os limites imagináveis. Cino era o seu nome. Ora esta Cino apaixonou-se por Habrócomes logo que ele chegou a sua casa e não pôde conter a sua paixão por muito tempo. Se foi violenta ao apaixonar-se, foi-o também ao querer satisfazer o seu desejo. Enquanto Araxo tratava Habrócomes com carinho e o tinha por filho, Cino, por seu lado, falou-lhe em serem amantes e suplicou-lhe que se deixasse seduzir, prometendo-lhe fazê-lo seu marido depois de matar Araxo. A Habrócomes, tudo isto lhe pareceu horrível; muitos foram os pensamentos que o assaltaram ao mesmo tempo: pensava em Ântia, nos juramentos, na fidelidade que já o tinha deixado tantas vezes prejudicado. Por fim, perante a insistência de Cino, ele lá acabou por concordar. Logo que se fez noite, para que pudesse ter Habrócomes por marido, ela matou Araxo e contou a Habrócomes o que tinha feito, mas ele, não conseguindo suportar a imprudência daquela mulher, fugiu de casa e deixou-a atrás, dizendo que nunca seria capaz de se deitar com uma assassina. Ao cair em si, ela dirigiu-se, logo que amanheceu, para o meio do povo de Pelúsio; lamentou o seu marido e disse que o seu escravo mais recente o tinha assassinado; desfez-se em lamentos e toda a gente acreditou na palavra dela. Apanharam logo Habrócomes e, já acorrentado, enviaram-no à presença do alto magistrado do Egipto, acabando por ser levado para Alexandria para cumprir a sua pena por alegado crime contra Araxo, o seu dono."
Xenofonte de Éfeso, As Efesíacas - Ântia e Habrócomes, trad. Vítor Ruas, Lisboa: Edições Cosmos, 2000, L. III, pp. 42-43.

Wednesday, June 26, 2013

JULIETA EM TARSO


"Assim que cumpriu as habituais honras fúnebres, foi conduzido à cidade pelos servos; quanto a Ântia, depois de ter sido depositada no túmulo, voltou a si e, apercebendo-se de que o veneno não era mortífero, começou a gemer e a chorar: «Que engano», disse ela, «foi para mim este fármaco, impedindo-me de fazer o meu caminho de regresso à felicidade com Habrócomes. Mil vezes mísera, que fui lograda até do meu desejo de morrer. Mas, ao permanecer aqui no túmulo, eu posso pela fome produzir o efeito que o fármaco não fez, pois ninguém me virá tirar daqui, nunca mais verei o Sol, nunca mais viverei à luz do dia». Depois de pronunciar estas palavras, aguentou-se firme, aguardando a morte com nobreza de espírito."
Xenofonte de Éfeso, As Efesíacas - Ântia e Habrócomes, trad. Vítor Ruas, Lisboa: Edições Cosmos, 2000, L. III, p. 38.

Tuesday, June 25, 2013

ÂNTIA


"-«Que bela é Ântia!». Mesmo depois de o grupo das raparigas ter passado, não se falava doutra coisa a não ser de «Ântia!». Mas quando Habrócomes chegou juntamente com os efebos, então, por mais belo que tivesse sido o cortejo das raparigas, todos se esqueceram delas ao verem Habrócomes. E viraram os olhares para ele, clamando de espanto: «Que belo é Habrócomes!»; «Que imagem única de um deus belo!» Houve até quem acrescentasse: «Que casal formariam Habrócomes e Ântia!».
Estava aqui o começo da armadilha tramada por Eros. Com efeito, eles não tardaram a ter-se um ao outro no pensamento: Ântia ansiava por ver Habrócomes; e Habrócomes, até ao momento ainda não atingido pelo amor, queria ver Ântia."

Xenofonte de Éfeso, As Efesíacas - Ântia e Habrócomes, trad. Vítor Ruas, Lisboa: Edições Cosmos, 2000, L.1, p. 6.

Monday, June 24, 2013

HABRÓCOMES


"Este Harbrócomes, a cada dia que passava, ficava mais belo e, juntamente com a beleza física, floresciam nele igualmente as virtudes da alma. Tinha uma educação completa: não só praticava uma gama variada de artes, como também lhe eram exercícios habituais a caça, a equitação e a luta com armas. Era muito estimado, não só por todos os efésios, mas também pelos que vivem no resto da Ásia, que depositavam nele grandes esperanças de um dia ele vir a ser um cidadão destacado. Tratavam o rapaz como um deus. E até havia quem se prosternasse à sua frente e lhe fizesse súplicas. O rapaz tinha-se em grande conta, sentindo orgulho não só das suas virtudes intelectuais, mas, sobretudo, da sua beleza física. Passou então a menosprezar tudo o que era tido por belo, considerando tudo isso inferior a si próprio; o que via e ouvia não lhe parecia ser digno de Habrócomes. E, se ouvia falar de um rapaz belo ou de uma rapariga formosa, troçava dos que assim falavam, como se não soubessem que belo só havia um: ele próprio. Até Eros, ele não o tinha por um deus. Rejeitava-o completamente, não lhe dando importância alguma; dizia que ninguém se apaixona ou se submete ao deus a não ser de sua livre vontade. Se, por acaso, via um templo ou uma estátua de Eros, começava a rir e arrogava-se superar Eros em beleza e poder. E assim era de facto: onde quer que Habrócomes aparecesse, nenhuma estátua parecia bela, nenhuma imagem recebia elogios."
 
Xenofonte de Éfeso, As Efesíacas - Ântia e Habrócomes, trad. Vítor Ruas, Lisboa: Edições Cosmos, 2000, L 1, pp. 3-4.

Sunday, June 23, 2013

PASSARINHOS E PASSARINHÕES


"Os orangotangos cantam, cantam caramilos que os outros cantores vêm chupar por dez tostões.
Ao que parece temos de trabalhar,
É uma dívida,
Dívida para com as criaturas estúpidas,
Evolução dos peixes brancos,
Aspirações humanas,
Bocas de camponeses,
Pregas de pele.
Um quilómetro
Ou cem quilómetros,
Não há quilómetros.
Só as palavras existem, o que não tem nome não existe. A palavra luz existe, a luz não existe."
 
Francis Picabia, Jesus-Cristo Rastacuero, trad. Célia Henriques, Vítor Silva Tavares, Lisboa: &etc, 1994, pp. 43-44.

Friday, June 21, 2013

BELEZA CONTINGENTE


"Franz disse: «Na Europa, a beleza foi sempre premeditada. Havia sempre uma intenção estética e um projecto de grande fôlego; uma catedral gótica ou uma cidade renascentista que obedecessem a esse projecto demoravam séculos a construir. A beleza de Nova Iorque tem uma origem completamente diferente. É uma beleza involuntária. Nasceu sem que houvesse qualquer intenção por parte do homem, um pouco como uma gruta de estalactites. Formas que, isoladas, são horrorosas, encontram-se aqui umas ao lado das outras numa vizinhança perfeitamente improvável, que inesperadamente as fa brilhar, com uma poesia mágica.»
Sabina disse: «A beleza involuntária. Claro. Mas também podia dizer-se: a beleza por engano. Antes de deixar definitivamente o mundo, a beleza ainda há-de subsistir alguns instantes, mas por engano. A beleza por engano é o último estádio da história da beleza.»"
Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser, trad. Joana Varela, Lisboa: RBA, 1994, p. 111.

Thursday, June 20, 2013

TERRIBILITÀ


"Na verdade, emanava desta mulher um encanto irresistível: sedutor era o seu vestido na sua simplicidade; pescoço firme, rodeado de pérolas; sedutores, os caracóis travessos da sua cabeleira um tanto em desordem; sedutores, os gestos das suas mãos finas, os movimentos das suas pernas nervosas; sedutor, o seu belo rosto animado. Mas havia nesta sedução qualquer coisa de terrível e de cruel."
 
Leão Tolstoi, Ana Karenine, trad. José Saramago, rev. Gonçalves Piçarra, Lisboa: Círculo de Leitores, s.d., p. 87.

Tuesday, June 18, 2013

RUINOSO





"Experimente-se deitar pedras à parede
para ver se à nossa frente o pensamento
frutifica: devastada, a linguagem comunica
-nos a experiência dos limites com que
se debate a poesia. E no entanto, no poema,
as palavras amontoam-se, ensurdecendo
-nos com o estrondo que a linguagem
faz ao cair no caminho. Com efeito,
para quem nela pensa, é sempre
ruinoso o seu exemplo e dorido
o seu sentido: dir-se-ia que,
esgotadas as palavras, só a poesia
cumpre os desígnios da vida.
Alimentados os pássaros
- em relevo sobre a paisagem -
nos seus pios extingue-se,
só para que o contemplemos,
o ruído do absoluto."


Fernando Guerreiro, Caminhos de Guia, Lisboa: Black Son, 2002, p. 26.

Sunday, June 16, 2013

ATRAÇÃO


"É natural que quem «elevar-se» sempre mais, um dia, acabe por ter vertigens. O que são vertigens? Medo de cair? Mas então porque é que temos vertigens num miradoiro protegido com um parapeito? As vertigens não são o medo de cair. É a voz do vazio por debaixo de nós que nos enfeitiça e atrai, o desejo de cair do qual, logo a segui, nos protegemos com pavor."

Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser, trad. Joana Varela, Lisboa: RBA, 1994, p. 69.

Saturday, June 15, 2013

VIVER


"Parecia estar no uso da sua razão, falou com toda a gente; agiu tal como os outros, mas havia nele um vazio aterrador, já não sentia nenhum medo, nenhum desejo; a sua existância era para ele um fardo inelutável. - Assim continuou a viver."
  Georg Büchner, Lenz, trad. Bruno Duarte, Lisboa: Edições Vendaval, 2006, p. 44.

Thursday, June 13, 2013

FERNANDO ANTÓNIO


"Sob a leve tutela
De deuses descuidosos,
Quero gastar as concedidas horas
Desta fadada vida.

Nada podendo contra
O ser que me fizeram,
Desejo ao menos que me haja o Fado
Dado a paz por destino.

Da verdade não quero
Mais que a vida: que os deuses
Dão vida e não verdade, nem talvez
Saibam qual a verdade."
 
Ricardo Reis (Fernando Pessoa), Odes, org. António Quadros, 3ª ed., Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 148.

Wednesday, June 12, 2013

TORRENTE


"Levamos a vida a afastar da morte quem amamos. Mas somos quase sempre derrotados, porque os gestos que afastam já estão carregados de morte."
Rui Nunes, Armadilha, Lisboa: Relógio D'Água, 2013, p. 24.

Tuesday, June 11, 2013

INTUIÇÃO DO MAL


"É a luz que nos comanda, não o deus que nela habitava.
Esquecemos a humildade dos instrumentos, do alpendre onde nos abrigávamos: o massacre reduz-se à repetição de um gesto.
Alguém disse: depois, de quê?, já não é possível escrever um poema: talvez desconhecesse o poder dos resíduos, do subtil residuo que é a luz: foi com ela que tecemos o terror.
E a escrita tornou-se a intuição desse mal, (...)"

Rui Nunes, Armadilha, Lisboa: Relógio D'Água, 2013, p. 20.

Friday, June 7, 2013

LUZ INSIDIOSA

 
"estrangeiros somos, quando revisitamos a memória com a memória; cada passo torna mais inóspita a terra pisada, e deixa um molde que outros passos apagarão; não reconhecemos as próprias mãos, o copo de vinho na mesa, a luz insidiosa na toalha, a penumbra que chama ruína à casa; somos alguém que só encontrará repouso nas palavras de uma língua estranha; por mais tempo, por todo o tempo, nada se tornará uma posse. Sabemos? O que sabemos? A verdade tem origem numa guerra e quebra o silêncio do retorno. Mas o objecto que nos sai das mãos refaz por um momento a integridade perdida. E à integridade chama-se beleza. Ao que explora olhos, ouvidos, dedos, corpos. E nessa exploração deixa o rasto, o rosto?, do inacabado. O que sabemos? Sabemos? Talvez só desencontros. Por vezes, um nome que não se deixa dizer"


Rui Nunes, Armadilha, Lisboa: Relógio D'Água, 2013, pp. 8-9.

Wednesday, June 5, 2013

PHANTOM


"All look and likeness caught from earth,
All accident of kin and birth,
Had pass'd away. There was no trace
Of aught on that illumined face,
Uprais' d beneath the rifted stone
But of one spirit all her own; -
She, she herself, and only she,
Shone through her body visibly."
  Samuel Taylor Coleridge, Selected Poetry, London: Penguin Books, 1996, p. 185.

Tuesday, June 4, 2013

PROCESSO



"Toda a imagem resulta de um processo de ocultamento
de que ela se desprende, aos nossos olhos, ainda envolta
nas sombras que a acompanham na descida ao precipício.
Também quando chega o Outono, o poema se despenha
para dentro, incomodado com as nódoas que nele
deixa a polpa entumecida dos frutos. Dir-se-ia
que alguém, porque não acredita no poema,
arrasta pela sala caixas carregadas de palavras
de onde pinga a torrente litúrgica da dúvida.
Só os sentimentos nos prendem à mobília
e nos levam a conservá-la quando já toda
a casa desaba, arrastando consigo os segredos
da arquitectura. Mesmo os lagartos
que escalam os penedos esquecem-se
por vezes, nos seus sonhos, da solidão
imensa que os mantém fechados
nos salões em ruína da literatura."


Fernando Guerreiro, Caminho de Guia, Lisboa: Black Son Editores, 2002, p. 14.

Sunday, June 2, 2013

PARA O SUL



"Porque é que te odeiam os homens, se os levas
                A um mundo melhor?
Ó velha hospedeira da aldeia do nada,
Tenho as malas prontas, vou breve partir.
Prepara-me um quarto na tua pousada,
Que tem a janela para o sul voltada
E fontes à roda para eu dormir..."
  António Nobre, Despedidas, Lisboa: Vega, s.d., p. 56.

Saturday, June 1, 2013

IUNO


"Conta a fábula que Vénus, a pedido de certo amoroso, converteu um gato em mulher; mas esta, farejando um rato, pulou da cama do marido e correu atrás do roedor.
Que devemos concluir daqui? Não que a noiva estivesse aborrecida com os abraços do seu apaixonado, pois, embora muitos observem que os gatos são dados à ingratidão, gatos e mulheres, em certos momentos, fazem ronrom e amam. A verdade é esta: se fecharmos a porta à natureza, ela entra-nos pela janela."


Henry Fielding, Tom Jones, texto condensado por Somerset Maugham, trad. Maria Franco e Cabral do Nascimento, Lisboa: Portugália Editora, 1966, p. 220.