Wednesday, December 31, 2014
FINDA
"«A noite
impôs ao céu
uma servidão
de inúmeras
estrelas»,
e a via láctea
aprende
como nasce
um cometa
dilacerante,
«que o meu corpo
se despedace
nas pontas
das estrelas»,"
Carlos de Oliveira, "Micropaisagens", in Trabalho Poético, Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, p. 275.
FIRMAMENTO
"Nunca, di, llegaste a ver
una nube que hasta el cielo
sube amenazando el suelo,
y entre el dudar e el temer
irse a otra parte a verter,
cesando la confusión,
y no en su misma región?"
Luis Velez de Guevara, Reinar Después de Morir, Madrid: Editorial Libra, 1970, p. 176.
OS MANTOS DO FRIO
"Traz-me o frio
Traz-me os mantos do frio
Os horrores necessários do frio
O comércio que eu recusei a vida inteira
Mas que é o único possível neste mundo
Traz-me as túnicas os sabres as cotas de malha
Do frio que eu neguei quarenta e nove vezes
Às dez da noite na Estação das Neves Eternas
Traz-me o frio
O deus mutilado do frio
Em que hei-de transformar-me lentamente
De pálpebras cerradas sangue pisado
Sem compaixão nenhuma
Sem amor nenhum de espécie alguma
Fortaleza inviolável
Castelo sepulcral definitivo
E altíssimo
Inacessibilíssimo
Sol inteiro consumido
No gelo
Sem uma lágrima
Uma única lágrima"
Alberto de Lacerda, Oferenda - I, Lisboa: IN-CM, 1984, p. 312.
AS MÉDULAS 2
"Esta substância?
outra? a erosão do mundo?
estrelas, focos tensos,
sobre o gás
que brilha, ao acaso,
no rigor das órbitas; escolho
três sílabas fulgentes:
a palavra esplendor;
escrevo-a, irradiando
a noite; ou sendo
o aro dela; e esses três ímanes
repelem, chamam
num jogo frio a pedra,
a luz; incompreensíveis."
Carlos de Oliveira, "Entre Duas Memórias", in Trabalho Poético, Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, p. 313.
Tuesday, December 30, 2014
AS MÉDULAS 1
"Para haver rio
tem de haver
árvores duríssimas; sabor
de metal nos ramos; equilíbrio
no fogo; antes, depois
das trocas primitivas;
redes coando
como filtros
a consistência a transferir-se,
a seiva neutra
donde nasce o álamo
de pedra; e a noite,
pedra também, mas rarefeita
na sua lactescência."
Carlos de Oliveira, "Entre Duas Memórias", in Trabalho Poético, Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, p. 312.
Friday, December 26, 2014
LUTAR (para a memória de Sílvia Leão)
"Lutava contra o sol aquela faixa
estreita de sombra, negra de silêncio,
onde passava o nosso olhar ausente.
Lutava contra o sol, réstea da noite,
o que resiste à luz, dentro da terra:
a mágoa de perder o que é da treva,
pontos de incerta luz sobre o vazio.
Lutava contra a luz o que é da terra."
Luís Filipe Castro Mendes, Poesia Reunida (1985-1999), Lisboa: Quetzal Editores, 1999, p. 282.
Thursday, December 25, 2014
A LUZ
"Disse. E a só luz do entendimento
meu corpo iluminou já sem palavras.
Disse a razão que pensa o pensamento
e a sem razão brutal que sobrenada
às almas e paixões quando escurece
e a morte lê no céu sua alvorada.
Disse o terror da terra e a alegria
que há em passar do mundo ao puro dia."
Luís Filipe Castro Mendes, Poesia Reunida (1985-1999), Lisboa: Quetzal, 1999, p. 115.
Wednesday, December 24, 2014
A NOITE (VIGÍLIA)
"A noite não é nada,
Como se diz a um doente.
Se a alma é estiolada,
Sabe lá o que sente!
Ser o avesso do dia,
Bem na intenção de Deus,
Que verbo nos põe na boca?
Que «não» jogado a que lago
Põe toda a luz em fuga
E o candeeiro na mesa?
A pedra divina toca
Nossa pouca certeza
E logo a noite se enruga.
Acudam aos acordados:
São os que a noite não quer;
Dêem-lhes dia logo.
Sonhar é como ter fogo:
Só quando a estrela der."
Vitorino Nemésio, Poesia (1935-1940), Lisboa: Bertrand Editora, 1986, p. 221.
RECORDAÇÃO
"A recordação é uma cadeira de balanço
embalando sozinha..."
Mário Quintana, "Preparativos de Viagem", in Poesia Completa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 769.
Monday, December 22, 2014
VAGO
"Oh tu: sombra perdida numa reminiscência
de céus selados na minha memória; tu, que
um passado desejo despertas na maturação
dos bosques - de onde se elevam os fluídos
húmidos do crepúsculo - e que ao ameno
Sul emprestas o amargo traço de um rosto noc-
turno: dar-me-ás esse véu de palavras
mortas sob as argilas negras do inverno?
Esse cansado impulso de ser num vestígio
de voz - sudário sopro de que vago murmúrio?"
Nuno Júdice, "Lira de Líquen", in Obra Poética (1972-1985), Lisboa: Quetzal Editores, 1991, p. 274.
Sunday, December 21, 2014
ANIVERSÁRIO
"D. JOÃO - Há outono, há todo o outono em mim. E passam asas sobre folhas secas."
Saturday, December 20, 2014
CORPO
"HELENA - Há piedade em mim. E há doçura. Há carícias de nuvem no meu corpo. Vem a mim todo ferido, todo em sangue. Oh! Venha a mim o teu desejo em sangue...
D. JOÃO - Tens uma voz de ave-maria, tu. A volúpia que reza: coisa turva, coisa turva e profunda a voz da carne."
António Patrício, D. João e a Máscara, Lisboa: Livraria Sam Carlos, 1972, p. 59.
Friday, December 19, 2014
IR NA VIDA
"Vamos na vida, como o cavaleiro de Dürer, entre o Diabo e a Morte. Só se vive na consciência, e a consciência só apreende morte. Quer isto dizer que toda a vida consciente é vida morta? Não, de certo: mas lento e lento, um naufragar contínuo, naufrágio de marujo-poeta, em que se prolongam sempre os horizontes. Sabia-o bem Antero, que o sentido da vida é o sentido da morte. E os que, como nós, rezavam os Sonetos no colégio, souberam-no de cor, como os simples dizem orações, bem antes de em desespero o aprenderem. Quanto ao Diabo, o outro camarada da gravura, esse, como eu o vejo, é a ausência de lei, a arritmia: o contingente, o acaso, o acidental."
António Patrício, D. João e a Máscara, Lisboa: Livraria Sam Carlos, 1972, p. 11.
Wednesday, December 17, 2014
ROMANTICISMO
"- Nada más ridículo en Vetusta que el romanticismo. Y le llamaba romántico todo lo que no fuese vulgar, pedestre, prosaico, callejero, Visita era el papa de aquel dogma anti-romántico. Mirar a la luna medio minuto seguido era romanticismo puro; contemplar en silencio la puesta del sol... ídem; respirar com delicia el ambiente embalsamado del campo a la hora de la brisa... ídem; decir algo de las estrellas... ídem; encontrar expresión amorosa en las miradas, sin necesidad de ponerse la habla... ídem; tener lastima de los niños pobres... ídem; comer poco... oh! esto era el colmo del romanticismo.
- La de Páez no come garbanzos - decía Visita - porque eso no es romántico."
Leopoldo Alas "Clarín", La Regenta, 4ª ed., Barcelona: Editorial Optima, 1998, p. 341.
Tuesday, December 16, 2014
VOADOR
"uma herança de mastros de navios
partindo com a água dos
muitos mortos deixados
a tormento
do amor que esses conhecem
um mar no bolso áspero das rochas
o tapete da fala
voador"
António Franco Alexandre, Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 132.
Monday, December 15, 2014
INSTANTE
"A oeste são os planaltos, a vida selvagem
que um véu de água recolhe,
um horizonte de coisas por dizer, por acontecer
mas a verdade mais abstracta é a mais prática:
let him look at the stars. tão longe
do seu próprio quarto como da multidão.
porisso os selvagens, que não têm mais
que o necessário,
conversam em figuras.
esta dependência imediata da linguagem
esta radical correspondência das coisas visíveis
nunca perde o poder de afectar-nos.
devemos ir sós, vivos e sós. i must
be myself.
tudo quanto Adão teve, o céu a terra a sua casa,
tudo podes e tens.
keep thy state; come not into their confusion.
constrói, sim, o teu reino, o teu mundo: natureza."
António Franco Alexandre, Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 291.
Sunday, December 14, 2014
CUMULUS
"En los últimos términos del Ocaso columbraba un anfiteatro de montañas que parecían escala de gigantes para ascender al cielo; nubes y cumbres se confundían, y se mandaban reflejados sus colores. En lo más alto de aquel cumulus de piedra azulada Ana divisó su punto; sabía que era un santuario."
Saturday, December 13, 2014
LUZIA
"Não ousava aperceber-me da própria beleza dessa região do universo. A menos que fosse para rebuscar o segredo dessa beleza, a impostura sob que se esconde para vitimar quem nela confia. Recusando-a, descobria a poesia. «Todavia, tanta beleza é feita para mim. Registo-a e sei que é em meu torno assim tão evidente para salientar a minha desgraça.»"
Jean Genet, Diário de um Ladrão, trad. Maria Helena Albarran, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 71.
Thursday, December 11, 2014
MARÉ
"Assim, invertendo a maré, eis que vos consagrava a minha piedade"
Jean Genet, Diário de um Ladrão, trad. Maria Helena Albarran, Mem Martins: s.d., p. 70.
Wednesday, December 10, 2014
DECADENTES
"Estamos decadentes enquanto exibirmos os estigmas dessa decadência, e mesmo que vele dentro de nós a consciência da impostura, de pouco serve. Só recorrendo ao orgulho imposto pela miséria, nós provocávamos a piedade cultivando os defeitos mais repulsivos. Transformávamo-nos numa reprovação à vossa felicidade."
Jean Genet, Diário de um Ladrão, trad. Maria Helena Albarran, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 52.
Tuesday, December 9, 2014
A VIOLÊNCIA
"Chamo violência a uma audácia em repouso apaixonada pelos perigos. Distinguimo-la num olhar, no modo de andar, num sorriso, e é em vós que ela gera a ressaca. Perturba-nos. Esta violência é uma calma que nos enerva."
Jean Genet, Diário de um Ladrão, trad. Maria Helena Albarran, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 14.
Monday, December 8, 2014
PROCURAR A LUZ
"Abrir os olhos, procurar a luz,
De coração erguido no alto, em chama,
Que tudo neste mundo se reduz
A ver os astros cintilar na lama!
Amar o sol da glória e a voz da fama
Que em clamorosos gritos se traduz!
Com misericórdia, amar quem nos não ama,
E deixar que nos preguem numa cruz!
Sobre um sonho desfeito erguer a torre
Doutro sonho mais alto e, se esse morre,
Mais outro e outro ainda, toda a vida!
Que importa que nos vençam desenganos,
Se pudermos contar os nossos anos
Assim como degraus duma subida?"
Florbela Espanca, Sonetos Completos, 8ª ed., Coimbra: Livraria Gonçalves, 1950, p. 162.
Sunday, December 7, 2014
PAIXÃO
"La hipocresía de doña Camila llegaba al punto de ternerla en el temperamento, pues siendo su aspecto el de una estatua anafrodita, el de un ser sin sexo, su pasión principal era la lujuria, satisfecha a la inglesa; una luxuria que pudiera llamarse metodista, si no fuera una profanación."
Leopoldo Alas "Clarín", La Regenta, 4ª ed., Barcelona: Editorial Optima, 1998, pp. 67-68.
Saturday, December 6, 2014
HISTÓRIA
"A história é este modo de experiência comum onde as experiências se equivalem e onde os signos de qualquer uma delas são capazes de exprimir todas as outras. A era da história tem a sua poética, resumida na célebre fórmula de Novalis: «tudo fala»"
Jacques Rancière, A Fábula Cinematográfica, trad. Luís Lima, Lisboa: Orfeu Negro, 2014, p. 291.
Friday, December 5, 2014
FATIGADAS
"Habitamos um corpo em perigo.
Com um pouco de sorte
estas folhas fatigadas pela chuva irão permanecer
(dezembro vai começar
os trabalhos do inverno e
o sol menos quente: assim
as memórias.)
Deixemos em paz os jardins a mão no bolso esquerdo
não tarda a esquecer.
Dormir é deixar a saliva viajar pelos teus livros
naturalmente
saberei julgar à maneira de um canteiro
negligente
trabalhando sobre a pedra.
Que procuras? ( a missa acabou
dezembro vai começar e
o sol menos quente.
Podemos partir para a guerra?) podemos partir?"
João Miguel Fernandes Jorge, "Vinte e Nove Poemas", in Obra Poética, vol. 3, 2ª ed., Lisboa: Presença, 1988, p. 58.
Thursday, December 4, 2014
MEMO
"Uma memória não é um conjunto de lembranças de uma consciência. Se assim fosse, a própria ideia de memória colectiva seria vazia de sentido. Uma memória é um certo conjunto, um certo arranjo de signos, de vestígios, de monumentos."
Jacques Rancière, A Fábula Cinematográfica, trad. Luís Lima, Lisboa: Orfeu Negro, 2014, p. 255.
Wednesday, December 3, 2014
RAZÃO OFUSCADA
"te doy
mi razón ofuscada
que se empeña en buscar lo nuevo
en otros rostros otras voces otra luz
y olvida así que lo único realmente nuevo
es justamente el reflejo tan antiguo
del mundo en tu mirada
y que nada fuera de eso
merece tan siquiera
la molestia de nombrarlo"
Luis Maria Marina, Nueve poemas a Sofía, s.l.: Olifante. Ediciones de Poesía, 2014, pp. 20-21.
Tuesday, December 2, 2014
EMBALAR
"Como, ao embalar-se nas folhagens de ouro,
ao manso vento, minha alma
livre, me diz que sou tudo!"
Juan Ramón Jiménez, Antologia Poética, trad. José Bento, Lisboa: Relógio d'Água, 1992, p. 103.
Monday, December 1, 2014
LEVANTAR
"Eis que me levanto à altura das raízes
(há tantos buracos no vento
quantas folhas há na árvore)
preciso de falar pra ouvir o que tu dizes
tu, o outro de mim, na solidão dos países
do meu sótão"
António Barahona, Rizoma, Lisboa: Guimarães Editores, 1983, p. 22.
Sunday, November 30, 2014
RESSONÂNCIA
"Antes de ser moralista ou artesão, Mann é desde logo um artista, isto é, como diria Proust, um homem educado que não deixa o preço nos presentes que oferece. É um artista clássico que se interessa pelos géneros e pelas suas potencialidades mais do que pelas lendas e pelas suas ressonâncias. O artista clássico não se interessa, em primeira instância, pelo mito nem pela desmistificação; interessa-se por uma operação muito precisa, aquela que faz do mito uma fábula, um muthos, na acepção aristotélica - uma representação de homens que agem, um agenciamento de acções detentoras, diz Aristóteles, de uma certa grandeza, de uma certa medida própria, um tempo que a subtrai ao tempo sem começo, sem meio, sem fim, do mundo."
Jacques Rancière, A Fábula Cinematográfica, trad. Luís Lima, Lisboa: Orfeu Negro, 2014, pp. 132-133.
Saturday, November 29, 2014
DUPLO
"A comédia do hipócrita funciona porque utiliza a mais antiga alavanca dramática: o duplo sentido das palavras. Funciona porque Tartufo, tal como Édipo, diz algo distinto do que diz. E diz algo distinto do que diz, porque as palavras, em geral, dizem algo distinto daquilo que dizem".
Jacques Rancière, A Fábula Cinematográfica, trad. Luís Lima, Lisboa: Orfeu Negro, 2014, p. 58.
Friday, November 28, 2014
COLORAÇÃO
"Um pássaro em queda mesmo
Quando é proporcional à pedra
Que tomba do muro nunca
Alcança a mesma coloração do musgo
- Já nem sequer falo do tempo
Em que mudam a pena
Para fazeres ideia pensa
Como perde um homem a idade
De encontrar os ninhos
Retém na memória: o homem cai. Desloca-se
O pássaro para que as estações não mudem
É dessa rotação que o muro
Pode cercar-se sem ninguém o construir. O cerco
Do voo é a pedra da idade
Para fazeres uma ideia pensa
Em engoli-la"
Daniel Faria, "Dos Líquidos", in Poesia, ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 293.
Thursday, November 27, 2014
JOYLESS EYE
"Art thou pale for weariness
Of climbing heaven and gazing of the earth,
Wandering companionless
Among the stars that have a different birth, -
And ever changing, like a joyless eye
That finds no object worth its constancy?"
Percy Bysshe Shelley, "To the Moon", in English Verse, Vol. IV, Oxford: Oxford University Press, 1977, p. 299.
Wednesday, November 26, 2014
INDISTINTO
"Com aquela viva consciência do imediato que é característica da mente infantil, o passado, em cada ocasião, tornava-se para Maisie tão indistinto quanto o futuro: ela entregava-se ao momento com boa-fé que poderia ter parecido tocante ao pai ou à mãe."
Henry James, Pelos Olhos de Maisie, trad. Paulo Henriques Britto, São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2010, p.44.
Tuesday, November 25, 2014
ENCONTRO
"Podem gritar
as cigarras
e as serras dos carpinteiros.
Nunca serão funestas,
fariam a tarde
que continua inconsútil.
O mundo é ininteligível,
mas é bom."
Adélia Prado, Com Licença Poética - Antologia, Lisboa: Cotovia, 2003, p. 120.
Monday, November 24, 2014
OLHARES
"Naquele momento, a menina deu menos importância a elas do que à atitude desrespeitosa e ao rosto enrubescido de Moddle, que a intrigavam; porém conseguiu relembrá-las cinco minutos depois, quando, na carruagem, sua mãe, toda beijos, fitas, olhos, braços, ruídos estranhos e cheiros gostosos, lhe perguntou: "E o biltre do seu pai, meu anjinho, mandou um recado para a sua mamãezinha querida?". Só então ela constatou que as palavras pronunciadas pelo biltre do pai tinham, afinal, entrado em seus ouvidos atônitos, de onde, atendendo ao pedido da mãe, elas passaram direto para seus lábios cândidos, dos quais saíram numa voz límpida e estridente: "Ele pediu para eu dizer", repetiu ela direitinho, "que a senhora é uma grandessíssima vaca!".
Henry James, Pelos Olhos de Maisie, trad. Paulo Henriques Britto, São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010, p. 43.
Sunday, November 23, 2014
MECANISMO
"Uma após outra, as semanas corriam e, em casa dos Saint-Clare, a vida retomara o seu curso normal, fechando-se como um oceano sobre o pequenino caixão sumido no fundo de uma cova. Como as realidades quotidianas, duras, implacáveis, imperiosas, comprimem e abafam os mais belos sentimentos da nossa alma!... É preciso comprar, vender, perguntar e receber as respostas!... Numa palavra, é preciso perseguir sombras quando perdemos a realidade. O hábito gelado, o mecanismo da vida, sobrevivem à própria vida!"
Harriet Beecher Stowe, Uncle Tom's Cabin, versão livre de Leyguarda Ferreira, 2ª ed., Lisboa: Edição Romano Torres, 1952, p. 237.
Saturday, November 22, 2014
PERMEIO
"Não se é artista sem haver de permeio uma grande infelicidade. De ódio contra qual deus? E vencê-lo, para quê?"
Jean Genet, No Sentido da Noite, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2012, p. 82.
Thursday, November 20, 2014
SUGERIR
"Mas então o drama? Se num autor existir a sua fulgurante origem, compete-lhe captar este raio e, a partir da iluminação que mostra o vazio, organizar uma arquitectura verbal - quer dizer, gramatical e cerimonial - sugerindo astuciosamente que é extraída desse vazio uma aparência que mostra o vazio."
Jean Genet, "A estranha palavra que...", in No Sentido da Noite, Lisboa: Sistema Solar, 2012, p. 94.
Tuesday, November 18, 2014
NA ONDA
"Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem
Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa
Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos"
Manuel António Pina, in Todas as Palavras - Poesia Reunida, 3ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, p. 358.
Monday, November 17, 2014
CONDIÇÃO
"Mas vou tentar que me entendam melhor. Para o poeta dispor da solidão absoluta, a que precisa se quiser realizar a sua obra - extraída de um nada que ela preencherá e fará ao mesmo tempo sensível - poderá expor-se numa atitude qualquer, que seja para ele a mais perigosa. Afasta cruelmente todos os curiosos, todos os amigos, qualquer solicitação que tratasse de inclinar a obra para o mundo. Queira ele, pode proceder assim: espalhando à volta um cheiro tão pestilencial, tão negro, que ele próprio se perca nele e fique por causa dele meio asfixiado. As pessoas evitam-no. Permanece só. A maldição aparente vai permitir-lhe todas as audácias porque mais nenhum olhar o perturba. Vê-lo-emos mover-se num elemento parecido com a morte, o deserto. A sua palavra não levanta nenhum eco. E porque ela já não se dirige a ninguém, já não deve ser compreendida pelo que está vivo, deve enunciar uma necessidade não exigida pela vida mas pela morte, que a ordenará."
Jean Genet, "O Funâmbulo", in No Sentido da Noite, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: sistema solar, 2012, p. 78.
Sunday, November 16, 2014
PARTE ALGUMA
"O que se desenrola no palco é sempre pueril. Às vezes a beleza do verbo engana-nos quanto à profundidade do tema. No teatro tudo se passa no mundo visível, mas num sítio que não está em parte alguma."
Jean Genet, "Carta a Jean-Jacques Pauvert", in No Sentido da Noite, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: sistema solar, 2012, p. 40.
Friday, November 14, 2014
OS VICIOSOS
"Encolhendo os ombros, Mme. Lysiane dizia muitas vezes, para consigo:«Felizmente que há viciosos, meninas; isso permite aos mal engendrados conhecer o amor.»Era boa."
Thursday, November 13, 2014
OCASO (em memória de Manoel de Barros)
"Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da
Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do
chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de
estar entre pedras e lagartos.
Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz.
Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me
sinto como que desonrado e fujo para o
Pantanal onde sou abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei - pelo
que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de
gado. Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só
faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore."
Manoel de Barros, O Encantador de Palavras, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2000, p. 43.
Wednesday, November 12, 2014
A LUZ APENAS (ao divino Marquês)
"Aquele outeiro sombrio
Está de névoas coberto;
Escorre entre canas, perto,
Fraco, e murmurando, um rio.
Naquele negro pinhal
Como tocha funeral,
Brilha modesta candeia,
Que ao pastor pobre alumeia
Com a luz embaciada;
Vem por corvos arrastada
A Tarde;
A luz apenas das estrelas arde!...
Que pavor
Espalha em todo o campo a minha dor!..."
Marquesa de Alorna (D. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre), "Oferenda aos Mortos", in Poetas Pré-Românticos, 2ª ed. Coimbra: Atlântida, 1970, p. 73.
Tuesday, November 11, 2014
CÍMBALOS
"As vossas faces são címbalos que nunca se chocam, mas que deslizam em silêncio um pela superfície do outro."
Jean Genet, Querelle, trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 84.
VINHA
"Sou um objecto de repulsão. Amei-o de mais, e o amor excessivo repugna. Um amor demasiado grande transtorna os órgãos e todas as profundezas - e o que sobe à superfície causa náuseas."
Jean Genet, Querelle, trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 84.
Sunday, November 9, 2014
LUZ INCENDIADA
"A mulher vacilava, rodando o botão entre os dedos.
- É o mais parecido que achei.
- Está bem, está bem - repetiu a outra reabrindo o estojo. Passou a esponja em torno dos olhos. E vagarosamente lançou um olhar em redor. Examinou as mãos. Sorriu: - Veja, Matilde, minhas mãos estão ficando da cor da tarde, tudo nesta hora vai ficando rosado...
- O céu parece brasa, que bonito!
- A gente vai ficando rosada também - disse atirando a cabeça para trás. Expôs a face à luz incendiada do crepúsculo. - E riu de repente: - Acho a vida tão maravilhosa!
- Maravilhosa?"
Lygia Fagundes Telles, "Um Chá Bem Forte e Três Xícaras", in Antes do Baile Verde, Lisboa: Círculo de Leitores, 1974, p. 121.
Friday, November 7, 2014
DISFARCE
"O homem que veste a farda de marujo não obedece somente à prudência. O seu disfarce provém do cerimonial que preside sempre à execução dos crimes premeditados. Podemos começar por dizer o seguinte: envolve o criminoso em nuvens, desliga-o de uma linha de horizonte em que o mar tocava o céu: em longas passadas ondulosas e musculadas fá-lo avançar sobre as águas, personificar a Ursa Maior, a Estrela Polar ou o Cruzeiro do Sul"
Jean Genet, Querelle, trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa- América, s.d., p. 11.
Thursday, November 6, 2014
MONSTRO
"A sua vida é toda de sonho e no fundo da alma inocente pressinto outra coisa dolorosa - outra coisa monstruosa que não cabe no mundo..."
Raul Brandão, O Pobre de Pedir, Lisboa: Editorial Comunicação, 1984, p. 134.
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