"Ali as coisas tendem a tornar-se homens, e os homens amigos e inimigos. O tempo que decorre para aquele que dorme, durante esses sonos, é absolutamente diferente do tempo em que se consuma a vida do homem acordado. Umas vezes corre muito mais rápido, um quarto de hora parece um dia, outras muito mais lento, e julgamos ter feito apenas um ligeiro sono quando dormimos o dia inteiro. Então, no carro do sono, descemos às profundidades onde a memória já não pode alcançá-lo e para aquém das quais o espírito foi obrigado a arrepiar caminho. O carro do sono, à semelhança do do Sol, segue num passo tão regular, numa atmosfera onde já nenhuma resistência o pode deter, que só algum pequeno calhau aerolítico alheio a nós (dardejado a partir do azul com algum Desconhecido?) pode atingir o sono regular (que se não fosse isso não teria qualquer razão para se deter e duraria num movimento assim pelos séculos dos séculos) e fazer com que, numa brusca curva, regresse ao real, salte etapas, atravesse regiões próximas da vida em que aquele que dorme não tardará a ouvir, desta, os rumores quase vagos ainda, mas já perceptíveis, embora deformados, e aterre bruscamente no despertar."
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido - Sodoma e Gomorra, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Círculo de Leitores, 2003, pp. 384-385.
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