Monday, April 30, 2018

BREVIÁRIO ESTÉTICO (Para A.)



"O sublime tem de ser sempre grande, o belo pode também ser pequeno. O sublime tem de ser simples; o belo pode estar adornado e engalanado. Uma grande altura é tão sublime como uma profundeza, mas esta é acompanhada de uma sensação de estremecimento e aquela de uma sensação de admiração, porquanto a primeira é uma sensação assustadora, a segunda é nobre. A visão de uma pirâmide egípcia impressiona muito mais que qualquer descrição pode representar, se ouvirmos o relato de Hasselquist, porém a sua arquitectura é simples e nobre. A basílica de São Pedro em Roma é magnífica, na sua estrutura, ao mesmo tempo grandiosa e simples, a beleza - por exemplo do ouro, dos mosaicos, etc. - está distribuída de uma forma tal, que o que mais se destaca é  sublime e o conjunto é magnífico. Um arsenal deve ser nobre e simples; um palácio residencial magnífico, enquanto o de recreio belo e ornamentado. 
Uma duração longa é sublime. Se pertence ao passado é nobre. Se for considerada num futuro a perder de vista, contém algo de terrível. Um edifício da mais remota antiguidade é venerável. A descrição que Haller faz da eternidade inspira um suave sentimento de horror, enquanto a descrição da eternidade passada suscita uma admiração perplexa."


Immanuel Kant, Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime, trad. Pedro Panarra, Lisboa: Edições 70, 2012, pp. 34-35. 

Sunday, April 29, 2018

SOBERANIA


"De la bestia hambrienta de los primeros tiempos, perseguida por las crueldades de la Naturaleza y viviendo en fraternal miseria con los animales inferiores, salía el hombre de hoy, que afirmaba su soberanía sobre los ascendientes, dominando a la Naturaleza. Del hombre de hoy, en le que todavía se equilibran las pasiones de la antigua animalidad con el naciente desarrollo del pensamiento, surgiría el ser superior y perfecto soñado por los filósofos, limpio de egoísmos bestiales y atento a convertir en un período de bienestar igualitario la vida actual, cruel y agitada por la incertidumbre."

Vicente Blasco Ibáñez, La Catedral, Barcelona: Plaza & Janes Editores, 1976, p. 273. 

Saturday, April 28, 2018

TORREÃO



"Do alto do torreão, deixo os olhos passear na distância, 
         alcançam o horizonte, o coração vai mais além. 
De cabeça na almofada, viajo por cem léguas, 
         da janela, um vislumbre de dez mil lares. 
Os homens caminham devagar pela longa estrada, 
         um sol brando dilui-se pelas aldeias. 
Emergem novelos de fumo, solitários,
         minha tristeza estende-se por vales e rios. 
Tantas qualidades, talento para escrever poesia, 
         eu, pobre mandarim, quero muito regressar ao lar.
É inútil tentar avistar a minha terra, 
         para além das nuvens, apenas traços de vazio."


Poemas de Wang Wei, trad. António Graça de Abreu, Macau: Instituto Cultural de Macau, 1993, p. 111. 

Friday, April 27, 2018

O PAÍS DE SONHO


"Aquí, por donde ha pasado el arte romano, el bizantino, el árabe, el mudéjar, el gótico y el Renacimiento, todas las artes de Europa, los hierbajos y matorrales cubren las ruinas en los campos, ocultándolas y desfigurándolas, y la barbarie de las gentes las mutila en las ciudades. Se piensa a todas horas en el pasado, y sin embargo, se desprecian sus restos. Qué país de sueño y de abandono! España no es un pueblo, es un museo desordenado y polvoriento de cosas viejas que atrae a los curiosos de Europa. En él, hasta las ruinas están arruinadas."

Vicente Blasco Ibáñez, La Catedral, Barcelona: Plaza & Janes Editores, 1976, p. 189. 

Thursday, April 26, 2018

SEM FIM



"Quero saber quem sou. Meto-me numa alcova escura, se me concentro no meu pensamento. Angustiado, abro uma janela, e um golpe de luz desvenda-me um espaço vazio e sem limites. Intimamente, todo o meu ser se perde num deserto. Cá fora, em volta de mim, a terra é outro deserto. Um deserto sem fim; e, através dele, o meu fantasma vagabundo...
Porque eu não sou eu ainda. Eu não nasci ainda! E é possível que eu morra sem ter nascido. Eis a triste condição do homem. Saber que não existe ainda, que não nasceu ainda, que a sua consciência não é mais que um vago reflexo divino entranhado no seio duma nuvem, duma substância que não conquistou ainda uma forma no espaço e uma duração no tempo - a consciência do não-ser. 
Mas este não-ser, este nada em que vivo, exalta-se e abrasa-me de tal modo, que chego a ter a ilusão duma existência verdadeira! O sonho exasperado convence-se de que é uma realidade. Também eu, um sonho exasperado pela dor e pelo amor, me convenço, às vezes, de que existo, de que fui dado à luz do dia, de que apareci na terra e sou alguém."


Teixeira de Pascoaes, 14 de outubro de 1924, in Uma Amizade - Cartas de Teixeira de Pascoaes a Anrique Paço d'Arcos, Lisboa: Vega, 1993, p. 31. 

Wednesday, April 25, 2018

PISAR


"As hetairas mais ricas consultavam-na para os seus desejos e vinganças e ela prestava-lhes os seus conhecimentos. 
Para conseguir a impotência de um homem ou a esterilidade de qualquer mulher, bastava dar-lhes um copo de vinho em que tivesse previamente afogado um barbo; para atrair um amante arredio, queimava-se num fogo de ramos de tomilhos e de loureiro uma torta de farinha sem fermento; e para converter em ódio o amor, bastava seguir o homem, pisando-lhe as suas pegadas às avessas, colocando o pé direito onde ele havia posto o esquerdo, e murmurando ao mesmo tempo: «Estou sobre ti, piso-te.»" 

Vicente Blasco Ibáñez, A Cortesã de Sagunto, trad. Ribeiro de Carvalho e Moraes Rosa, 4.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 79 [ort. atualiz.].

Tuesday, April 24, 2018

CICLÓPICAS


"O grego, ao chegar junto da Acrópole, admirou as ciclópicas muralhas formadas por enormes penhascos, amontoados por uma arte rara e solidamente unidos sem travação alguma. Era ali o berço da cidade: a recordação dos companheiros de Zazintho, aos estabelecerem-se entre os rudes indígenas."

Vicente Blasco Ibáñez, A Cortesã de Sagunto, trad. Ribeiro de Carvalho e Moraes Rosa, 4.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 63 [ort. atualiz.].

Monday, April 23, 2018

CHEGADA


" - A soberba e a riqueza dos gregos... - principiou a dizer o companheiro. 
- Sim; já conheço essa razão. O ódio entre iberos e gregos; a crença de que estes, pelas suas riquezas e sabedoria, dominam e exploram aqueles... Como se na cidade existissem realmente iberos e gregos!... Iberos são os que estão atrás dessas montanhas que nos cerram o horizonte; grego é esse homem que vimos desembarcar e que aí vem atrás de nós; mas nós outros não somos mais do que filhos de Zazintho ou de Sagunto, como queiram chamar a nossa cidade. Somos o resultado de mil encontros por terra e por mar, e Júpiter ver-se-ia em apuros para dizer quem foram nossos avós. Desde que a Zazintho lhe mordeu a serpente nesses campos e o nosso pai Hércules ergueu as grandes muralhas da Acrópole, quem poderá marcas as gentes que aqui têm vindo e aqui têm ficado, apesar de que outros chegaram depois, para lhes arrebatarem o domínio dos campos e das minhas?"


Vicente Blasco Ibáñez, A Cortesã de Sagunto, trad. Ribeiro de Carvalho e Moraes Rosa, 4.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 15 [ort. atualiz.].

Sunday, April 22, 2018

CALAVERADAS


"Con frecuencia desaparecían alumnos del Seminario, y los catedráticos contestaban con un guiño malicioso a las preguntas de los curiosos:
- Están «allá»... con los buenos. No pueden ver con calma lo que ocurre. Cosas de chicos... calaveradas. 
Y las tales calaveradas les hacían sonreír con paternal satisfacción."


Vicente Blasco Ibáñez, La Catedral, Barcelona: Plaza & Janes Editores, 1976, p. 61. 

Saturday, April 21, 2018

A SEDUÇÃO


"Evidentemente, uma arquitectura que aspira à sedução e reivindica ao mesmo tempo um sentido de crítica radical tem de fazer concessões. Os múltiplos projectos da chamada vanguarda que idolatram a imagem caem nesse paradoxo. O fetichismo da imagem, ao aderir à lógica da sedução, não pode simultaneamente procurar fundamento na crítica radical da cultura arquitectónica contemporânea, porque a crítica radical define-se a si mesma como uma política de conteúdo que opera ao nível do significado. A sedução, por seu lado, funciona a um nível superficial e serve para contrariar qualquer crítica em termos políticos ou qualquer procura de significado."

Neil Leach, A Anestética da Arquitectura, trad. Carla Oliveira, Lisboa: Antígona, 2005, p. 137. 

Thursday, April 19, 2018

POLÍTICA



"Monsieur Rabbe, escrevendo em finais do século passado, diz que ela fazia filhós para o Duque de Devonshire na biblioteca enquanto aquele lhe ensinava política - uma anedota em que gostaríamos de acreditar, mas não são indicadas as fontes. Seja como for, Caroline criou um interesse precoce pelos Whigs e seria capaz de beber canecas de leite para confundir os Tories; e foi esta paixão precoce pelos princípios dos Whigs que, como se verá mais tarde, despertou o seu interesse pelo futuro marido."


Elizabeth Jenkins, Lady Caroline Lamb, Lisboa: Editorial Futura, 1974, pp. 20-21. 

Wednesday, April 18, 2018

HECHIZO



"- Piensa usted que soy un lunático charlatán, imagino. Le diré que nos es mi costumbre merodear por la piazza abordando a inocentes turistas. Pero esta noche, lo confieso, siento como un hechizo. Y he imaginado que usted era también un artista. 
- No, no soy un artista, siento decirlo. Al menos del modo que usted debe entenderlo. Pero no es preciso que se excuse. Yo también siento el hechizo; y la eloquencia de sus reflexiones lo han intensificado."


Henry James, La Madona del futuro, trad. Carlos Ezquerra, s.l.: Siete Noches Ediciones, 2006, p. 17. 

Tuesday, April 17, 2018

QUÉ HAREMOS A ESTOS NUESTROS CORAZONES?


"Quem se lembrará de um bichinho da terra tão pequeno quando as aves de altenarias vêm por aí em bolandas é diabo. Pragas de tantos, tudo tem no cabo a queda. Eu serei preso eterno, porque aqui, segundo o uso, mente-se-me, eles não lhes dá disso. V. Eilm.ª me encaminha aos santos, rogo sem burla, mas, Senhor, qué haremos a estos nuestros corazones? As redondilhas tenho mandado tresladar, que nunca medrei cousa que soubesse ler. Pelas bocas dos maus também se dizem verdades. Eu estou sem olhos, que ver Lisboa de longe traz-me já quase cego, mas fico ao serviço de V. Eilm.ª a quem Deus guarde. 
Do castelo de Almada, 27 de Maio 628"


D. Francisco de Portugal, Epistolário a D. Rodrigo da Cunha (1616-1631), ed. José Adriano de Freitas Carvalho, Porto: CITCEM - U. Porto / Edições Afrontamento, 2015, p. 218. 

Monday, April 16, 2018

COMO CÁ ANDAMOS


"Em terra fico, mas também nelas se passam tormentos. Ao Senhor Dom João faço meus protestos de que vamos ver as águas do Leça, ele a lográ-las, eu a chorá-las, mas nem às jornadas de tanto gosto há quem corra. V. Sr.ª como nos falta cá, andamos todos desagasalhados e os engenhos ferrugentos, que não há quem estime nem quem condene."

D. Francisco de Portugal, Epistolário a D. Rodrigo da Cunha (1616-1631), ed. José Adriano de Freitas Carvalho, Porto: CITCEM - U. Porto / Edições Afrontamento, 2015, p. 175. 

Sunday, April 15, 2018

A TARDE EM SUA INTEGRIDADE



"Quase não vemos os prodígios fiéis, 
a parede solar, o torso unânime, 
o fulgor da cabeleira sobre o mar, 
o palácio de todos, de ninguém. 
Evidente mas subtraído à evidência
é quanto vemos sem ver pelo excesso 
de estar em profusão imediata. 
Qualidade lisa, ondulação silente
que reúne a plenitude e o longínquo, 
plana eclosão de um insondável fundo
que no alvor da superfície se consuma. 
Todo o sossego se nivela, ondeando em sombra
e sol. A tarde em sua integridade
fatalmente suave."

António Ramos Rosa, O Não e o Sim, Lisboa: Quetzal Editores, 1990, p. 55. 

Saturday, April 14, 2018

UMBRACLE



"Ninguém me pode ensinar o que a aragem diz. 
Eu vi um deus em repouso sob a sombra das nuvens. 
A visão era tão calma e luminosa sob as árvores
que eu próprio era parte da divindade revelada. 
Magnífico era o ser que eu olhava extasiado
mas sem distância alguma, na clara plenitude. 
Não era de outro mundo, mas o mundo suspendia-se
no hálito divino. E eu não estava a mais, 
porque o meu corpo ondulava leve como uma chama
em uníssono com os haustos do deus adormecido."


António Ramos Rosa, O Não e o Sim, Lisboa: Quetzal Editores, 1990, p. 45. 

Friday, April 13, 2018

REGRESSO


"Na América é tão forte a sombra do mundo antediluviano que às vezes Kate perdia a noção dos tempos decorridos e começava a aproximar-se do antigo modo de ser, da vontade, velha e torva, do desprezo da morte, da subtil e escura consciência, do instinto que precedeu a razão. Regressava à época em que o espírito e o poder dos homens residiam no sangue e na espinha dorsal, e as relações entre eles e com os animais se produziam através da medula."

D. H. Lawrence, A Serpente Emplumada, trad. Maria Franco e Cabral do Nascimento, Lisboa: Unibolso/Portugália Editora, s.d., pp. 391-392. 

Wednesday, April 11, 2018

FUGAZ



"Um dia fugaz eu vivi e cresci entre os meus,
Um após outro já me adormece e vai fugindo pra longe.
E no entanto, vós que dormis, 'stais-me acordados cá dentro do peito, 
Na alma parente repousa a vossa imagem que foge. 
E mais vivos viveis vós ali, onde a alegria do espírito
Divino a todos os que envelhecem, a todos os mortos rejuvenesce."


Hölderlin, Poemas, trad. Paulo Quintela, Lisboa: Relógio D'Água, 1991, p. 293. 

Tuesday, April 10, 2018

JARDIM


"Saturaba el ambiente un perfume de jardín saqueado. El suelo estaba cubierto de flores que parecían pateadas por una tromba de ginetes nocturnos. La tormenta había arrancado los pétalos del azahar y la tierra empezaba a oler a ramillete de novia descompuesto, con el fuerte perfume de la putrefacción  vegetal. Reflejaban los charcos, en su espejo tranquilo, las gotas inquietas de las estrellas."

Vicente Blasco Ibáñez, El Papa del Mar, Valencia: Vicent García Editores, 2011, p. 330. 

Monday, April 9, 2018

DESNUDA


"La Venus adorada por Borja no era la de los pintores clásicos, desnuda sobre las espumas mediterráneas, ó sentada en nubes blancas y duras como el mármol, bajo incesante lluvia de flores. Era la Venus que había conocido el poeta Tannhäuser, la que vivía durante la Edad Media en grutas de rosada luz ó en ásperas montañas como el Venusberg, atrayendo á los hombres con la tentación de su carne immortal, representando la voluptuosidade y el pecado en medio de repiques de campanas, cantos graves de procesiones y la marcha convergente de ejércitos de peregrinos hacia Roma para implorar humildemente el perdón de sus culpas."

Vicente Blasco Ibáñez, El Papa del Mar, Valencia: Vicent García Editores, 2011, p. 34. 

Sunday, April 8, 2018

PEQUENA PÁSCOA


"Nus, os homens não são mais do que homens; mas o contacto, o olhar, a palavra trocada entre os homens nus constituem o mistério da vida. Vivemos de manifestações."

D. H. Lawrence, A Serpente Emplumada, trad. Maria Franco e Cabral do Nascimento, Lisboa: Unibolso/Portugália Editora, s.d., p. 338. 

Saturday, April 7, 2018

RUDE


"E entre a monstruosidade dos elementos tremulam e pairam outras presenças: entre terríveis e rudes, gente branca, os gringos, poderosos como deuses, porém, bárbaros, demoníacos. E seres estranhos como certas aves, que flutuam no ar, e cobras, que se arrastam no chão, e peixes que nadam e que mordem. Rude, monstruoso universo de monstros grandes e pequenos, nos quais o homem se detém por simples resistência e precaução, e nunca, nunca avança para sair das trevas que o rodeiam."

D. H. Lawrence, A Serpente Emplumada, trad. Maria Franco e Cabral do Nascimento, Lisboa: Unibolso/Portugália Editora, s.d., p. 212.

Friday, April 6, 2018

ANIMA




"Kate assistia a tudo aquilo como uma criança que olha através de um gradeamento, meio curiosa, meio assustada.
Ah, a alma! Ora cintilava ora desaparecia, revestindo-se de formas sempre diferentes. Kate chegou a pensar que ela e Ramon haviam penetrado na alma um do outro, e eis que via agora um homem pálido e distante, de espírito iluminado pela mensagem do Além; longe, infinitamente longe de qualquer mulher.
Quanto a Cipriano, esse abriu-lhe um mundo novo, um mundo de penumbra onde se entrevia a face de Pã, o deus-demónio que jamais perece e surge das trevas para regressar à espécie humana. Mundo de sombra e de êxtases tenebrosos, com o vento fálico soprando na escuridão."


D. H. Lawrence, A Serpente Emplumada, trad. Maria Franco e Cabral do Nascimento, Lisboa: Unibolso/Portugália Editora, s.d., p. 299.

Thursday, April 5, 2018

A VIDA


"Aquele país enchia-a de terror; mas era mais a alma do que o corpo que sentia medo. Pela primeira vez, compreendeu que vivia numa ilusão. Até aí, julgava que cada indivíduo possuía um «eu» completo. Agora, Kate percebia que homens e mulheres não eram feitos de uma só peça mas sim de bocadinhos um pouco ao acaso. Os homens e as mulheres são seres inacabados. Criaturas que funcionam com certa regularidade mas de vez em quando se perdem numa confusão de inconsequências."

D. H. Lawrence, A Serpente Emplumada, trad. Maria Franco e Cabral do Nascimento, Lisboa: Unibolso/Portugália Editora, s.d., p. 108. 

Wednesday, April 4, 2018

IR LONGE


" - Temos de ir muito longe, em busca de Deus - respondeu Don Ramon, vagamente constrangido. 
- Já me causa horror essa história de procurar Deus e a religiosidade - replicou Kate.
- Bem sei! - exclamou ele, rindo. - Também eu sofri com a segurança agressiva da religião. 
- E afinal não se encontra Deus! É uma espécie de sentimentalismo voltar a aninhar-se em velhas conchas vazias. 
- Não - disse devagar Don Ramon. - Não posso «encontrar Deus» no sentido usual da expressão. Sei que é sentimentalismo pretender semelhante coisa. Mas estou enjoado da humanidade e vontade humana; até da minha própria vontade. Compreendi que, muito ou pouco inteligente, a minha vontade será apenas mais um mal da superfície da terra, desde que eu a comece a exercer. E a vontade alheia é às vezes ainda pior.
- Terrível, a existência humana - comentou a irlandesa. - Cada qual passa a vida a impor a sua vontade aos outros, e a si mesmo, e quase sempre convicto da sua justiça."


D. H. Lawrence, A Serpente Emplumada, trad. Maria Franco e Cabral do Nascimento, Lisboa: Unibolso/Portugália Editora, s.d., p. 76. 

Tuesday, April 3, 2018

FUNDIR


"O céu abrira sobre a terra o seu grande olho luminoso - e tudo se modificara. O frio amortecera e o gelo que resistira à noite pluviosa brilhava, agora, ao sol. Por toda a parte, os pobres pareciam respirar de alívio, pois os meses anteriores haviam sido tão rudes, tão frígidos, que até neve caíra nas regiões do sul, onde, há muitos anos, não se via a sua pinta. Agora o sol cobria tudo. Dir-se-ia um sol novinho, acabado de fundir e ainda espirrando raios do seu branco metal incandescente."

Ferreira de Castro, A Lã e a Neve, 2.ª ed., Lisboa:Guimarães Editora, 1947, p. 235. 

Sunday, April 1, 2018

ACALMAR




"Ah, se toda aquela gente desaparecesse, se as ruas se esvaziassem, se a cidade acalmasse! Se fosse possível ouvir a folha que a brisa bafeja, ver o andamento dos astros seculares, na sua rota através do espaço!
Que triste a realidade, quanta fadiga, que tédio profundo!"


I. M. Panajotopulos, Os Sete Adormecidos, trad. Maria do Carmo Lemos, Lisboa: Guimarães Editores, 1965, p. 250. 

RESSURREIÇÃO



"Como é a morte? Que é a morte? Que existe para além da morte? Em que lugares vos encontrastes? Com que seres contactastes? Pudestes observar, frente a frente, o todo Poderoso, tanto Misericordioso, o Senhor do céu e da terra?
- Não vimos nada, nem sabemos nada! - respondia Constantino. - Dormimos apenas, como a criança no regaço da mãe, como o fatigado companheiro no bosque deleitoso. Foi apenas uma noite. Dormimos e acordámos. É tudo. Acordámos."


I. M. Panajotopulos, Os Sete Adormecidos, trad. Maria do Carmo Lemos, Lisboa: Guimarães Editores, 1965, p. 245.