Sunday, June 30, 2019

DURO ABRIGO




"em duro abrigo nasce
a ideia do verão: semente
que a luz demora, 

ao fulgor que das armas
cai na terra, o campo
chão da trovoada, 

o corpo em vala muda aberto, des
fabricado, olhos
sem ruído, 

as mãos cobrindo a sombra
na suja tarde
dos retratos, 

os arados no vento, a terra
devagar deitada, 
e sob

o branco olhar, em seu abrigo
o claro som dobra
ao som"


António Franco Alexandre, Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 216. 

MIMESIS




"Um animal (qualquer) 
se alça a pata espessa sobre o mundo
atormenta"

Luiza Neto Jorge, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 124. 

Friday, June 28, 2019

CALIGINOSA




"Prudente, o deus esconde em caliginosa noite
o resultado do tempo futuro e ri, 
     se o mortal se inquieta mais
         do que o permitido. Lembra-te de ordenar

com serenidade o teu presente: tudo o resto se arrasta
como num rio, que ora em paz desliza
     pelo meio do seu leito até ao seu mar etrusco, 
         ora revolve em tumulto 

as rochas erodidas, os troncos arrancados, o gado, 
as casas, ressoando seu clamor nos montes
     e nas vizinhas florestas, 
         assim que o iracundo dilúvio

as quietas águas enfurece. Será dono de si
e viverá feliz aquele que pode, no final de cada dia,
     dizer: «Vivi. Amanhã, que o Pai cubra
         o céu com negras nuvens, 

ou com os puros raios do sol; contudo, 
aquilo que para trás já ficou não há-de anular, 
      nem alterar ou desfazer
         aquilo que fugidia já trouxe a hora. 

A Fortuna, feliz no seu cruel negócio, 
insistindo em jogar seu arrogante jogo, 
      suas incertas honras transfere
         ora para mim, ora favorável para outro."


Horácio, Odes, III, 29, trad. Pedro Braga Falcão, Lisboa: Cotovia, 2008, p. 252. 

Thursday, June 27, 2019

BEIRA




"A tarde não será à beira da água
nem os olhos a rápida alegria."


João Miguel Fernandes Jorge, "À Beira do Mar de Junho", in Obra Poética, vol. 5, Lisboa: Editoral Presença, 1996, p. 124. 

MARÍTIMO




"Isto meu amor é como céu marítimo
rasgado como vela de barco."


João Miguel Fernandes Jorge, "À Beira do Mar de Junho", in Obra Poética, vol. 5, Lisboa: Editoral Presença, 1996, p. 118. 

Tuesday, June 25, 2019

TORREÕES DE LINHO




"Vê acolá, erguidas sobre a areia, 
Casitas brancas, ou torreões de linho, 
Onde se escondem corpos de sereia, 
Mais brancos do que o arminho!

Daqui a pouco tu verás, ó Musa!
As donas desses corpos envolvidas
Em uma negra, funerária blusa, 
E numas saias fúnebres, compridas!

Vão assim para as épicas batalhas
Desse profundo e tenebroso mar:
Todas de negro, envoltas em mortalhas;
Como mortos que levam a enterrar!"

António Nobre, Primeiros Versos, Porto: Lello & Irmão Editores, 1984, p. 59. 

Monday, June 24, 2019

ONDE O HALO




"Onde o halo do espaço por ele iluminado?
Ele não foi chamado a figurar
numa das faces deste corpo imenso, 
mas ansiou ficar connosco, 
já não carne mas palavra do princípio, 
para alimento que devora mais do que sacia. 
E nele a luz que nunca se consome:
guiou uns dedos ao gerar-se estas imagens, 
será o olhar que procure entendê-las."


José Bento, Silabário, Lisboa: Relógio D'Água, 1992, p. 210. 

Sunday, June 23, 2019

A MUSICAL ORDEM DO ESPAÇO




"A musical ordem do espaço, 
a manifesta verdade da pedra, 
a concreta beleza 
do chão subindo os últimos degraus, 
a luminosa contenção da cal, 
o muro compacto
e certo
contra toda a ostentação, 
a refreada
e contínua e serena linha
abraçando o ritmo do ar, 
a branca arquitectura
nua
até aos ossos. 
Por onde entrava o mar."


Eugénio de Andrade, "Homenagens e outros epitáfios", in Poesia, 2ª ed. revista. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 253. 

Saturday, June 22, 2019

RICTUS


"Ouve-se cavar algures, nas jazidas prováveis do ouro de Micenas. E não estranharíamos ver aparecer sob os nossos pés a máscara dos reis com o seu ricto agridoce de contadores de sonhos."

Agustina Bessa-Luís, Conversações com Dmitri e outras fantasias, Lisboa: Relógio D'Água, 1992, p. 18. 

ÁRVORE



"Não há árvore como a Cruz; tão pouco há harmonia como o silêncio de Deus. Os pitagóricos percebiam esta harmonia no silêncio sem fundo que envolve eternamente as estrelas. A necessidade neste mundo é a vibração do silêncio de Deus."

Simone Weil, Espera de Deus, trad. Manuel Maria Barreiros, Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, p. 142. 

Friday, June 21, 2019

ORIGINAL



"Por exemplo: tal como os cacos de um vaso, para se poderem reajustar, têm de encaixar uns nos outros nos mais pequenos pormenores, embora não precisem de ser iguais, assim também a tradução, em vez de querer assemelhar-se ao sentido do original, deve antes configurar-se, num acto de amor e em todos os pormenores, de acordo com o modo de querer dizer esse original, na língua da tradução, para assim tornar ambos, original e tradução, reconhecíveis como fragmentos de uma língua maior, tal como os cacos são os fragmentos do vaso inteiro. Por isso ela deve prescindir em alto grau da intenção de comunicar alguma coisa, do sentido; o original só é essencial para ela na medida em que dispensa o tradutor e a sua obra do esforço e da disciplina de dar expressão aos conteúdos a comunicar."

Walter Benjamin, Linguagem Tradução Literatura (filosofia, teoria e crítica), trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 102. 

Wednesday, June 19, 2019

BRECHAS




"Pelas brechas da fé transluz 
o nada

Mas já o seixo 
recebe o calor
da mão"


Reiner Kunze, Poemas, trad. Luz Videira e Renato Correia, Porto: Paisagem Editora, 1984, p. 109. 

Tuesday, June 18, 2019

PERCORRER



"Não há uma só verdade, que não haja, um belo dia, descido a este mundo, cheia de força e de mocidade e coberta do fresco e maravilhoso orvalho próprio das coisas que ainda não foram ditas; percorri hoje as enfermarias da alma humana, aonde todas vêm morrer diariamente, e não encontrareis um só pensamento místico."

Maurice Maeterlinck, O Tesoiro dos Humildes, trad. Cândido de Figueiredo, Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1918, p. 114. 

Sunday, June 16, 2019

REGRESSO



"Crescera em virtude, afastados os riscos da concupiscência, cujas rédeas são difíceis de segurar. Um dia, na juventude solar que tivera, inquieta das paixões que entendera cristalizar no amor pelo marido, ela vira o Auriga num museu de Delfos e contemplara-o com pasmo. As rédeas quebradas, e ele esplêndido, como se não perdesse nunca mais a galopada dos negros alazões cujos cascos fendiam as quebradas e que ingressavam no tropel das manadas."

Agustina Bessa-Luís, Vale Abraão, 5ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, 2005, p. 135. 

Saturday, June 15, 2019

DESPRENDER




"As vozes são frágeis e no seu rumor contra a escuridão
desprendem-me e toco com a saliva
o abismo dos astros. 
Sei que limpam uma lágrima
que crepita ou flutua. 
Sei que no meu sangue naufragam 
todos os rostos. Sei que nasci
e não posso voltar atrás
como os pássaros."


Jorge Velhote, Âmago, Edições Sem Nome, 2018, p. 45. 

CRUZAR



"Pulcra foi aqui a luz: acaso um corpo. 
Amei como a uns rios, e fulgores os beijos, mortos deram. 
Porque quem lembra acalma
um som, mas não outros brilhos. 
No silêncio ainda luz, e ela não recua. 

Não é o mesmo mais beijos, 
mais palavras cruéis, 
que o silêncio herdado que ainda se escuta. 
Frágil, tenso. É azul. Céu? E são nuvens. 
Brancas nuvens sem paz que feridas cruzam."


Vicente Aleixandre, Poemas da Consumação, trad. Armando Silva Carvalho, Lisboa: Liber, 1979, p. 82. 

Thursday, June 13, 2019

VISAMOS




"Porque intrépidos na nossa breve vida tanto visamos?
Porque nos mudamos para terras
que outro sol aquece? Quem, exilado da pátria, 
   de si próprio fugiu também?"


Horácio, Odes, II, 16, trad. Pedro Braga Falcão, Lisboa: Cotovia, 2008, p. 162. 

Tuesday, June 11, 2019

ENCANTO



"O encanto das vernantes flores para sempre não dura, 
nem a lua corando brilha num só gesto:
       porque fatigas tu a alma com eternos pensamentos
       que a excedem?

Porque não antes beber enquanto é tempo, assim, sem mais, 
deitados sob um alto plátano ou sob este pinheiro, 
       perfumando os brancos cabelos
       com a rosa, 

ungindo-os com assírio nardo? Dissipa Évio
os vorazes cuidados. Que rapaz irá lestamente
      o fogo do vinho falerno extinguir
      com a água que corre?"

Horácio, Odes, II, 11, trad. Pedro Braga Falcão, Lisboa: Cotovia, 2008, p. 150. 

Monday, June 10, 2019

DIA DE PORTUGAL




"Moscas, abelhas e zangãos
me comam bofes e baço, 
se outra como esta faço
a troco de quatro frangãos."


Luís de Camões, Lírica Completa, vol. I, ed. Maria de Lourdes Saraiva, 2ª ed., Lisboa: IN-CM, 1986, p. 356. 

Sunday, June 9, 2019

E A SAUDADE




"E multipliquem os pássaros que cantam
E completo o Outono venha
Folhas e folhas aspergindo a última respiração das coisas sobre a minha
Respiração
E todos os meus anos juntos se festejem de uma só vez e eu morra
Agora
E sobre este dia todos os dias
Desçam
Como inúmeras águas sobre uma gota de sangue"


Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 308. 

Thursday, June 6, 2019

DERIVATIVO



"O que era o amor? Ema achava-o um derivativo duma vocação profunda e inflexível; um luxo que simboliza paisagens que a ninguém é dado ver; sonhos, apetites, manias que nada mais são do que o desejo de ser outra pessoa, de arrancar esses símbolos do corpo (o sexo e os olhos que primeiro pecam) a natureza da pessoa, em toda a sua difusa corrente de movimentos. Movimentos ignóbeis porque são idênticos à antiga hoste de mulheres profetas, consagradas a uma ascese que os homens proíbem, para lhes atribuir a mediocridade vivida por Eros."

Agustina Bessa-Luís, Vale Abraão, 5ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, 2005, p. 34. 

Wednesday, June 5, 2019

ARMA ANTIGA




"A arma antiga o corpo
para o fogo
areia de muralha adivinhando
furor e vento outro sentido. 

Sobre a memória
coisas de morte ou de silêncio
pousam devagar sobre as espáduas."


João Miguel Fernandes Jorge, "À Beira do Mar de Junho", in Obra Poética, vol. 5, Lisboa: Editoral Presença, 1996, p. 109. 

Tuesday, June 4, 2019

DIVINA AGUSTINA




"Eunice Muños[z] a representar lembra-me Agustina a escrever. 
Como a beleza são próximas e inacessíveis, como a poesia são cheias de ritmo e de ausência. Como a dança são precisas e livres. São graves e cheias de ternura, como só as mulheres o podem ser."


Daniel Faria, O Livro do Joaquim, Quasi Edições: V. Nova de Famalicão, 2007, p. 75. 

Monday, June 3, 2019

DA LITERATURA (para a Divina Agustina)



"Eu penso que viver as coisas é uma história; e falar dos padecimentos ou da alegria, é outra. Por muito que acertemos as contas com a realidade do mundo, ele sai sempre credor. Só às vezes percebemos isso; mas é tarde para corrigir o que ficou escrito e que, afinal, também consola, como tudo o que parece verdade e não o é, mas podia ser verdade."

Agustina Bessa-Luís, Contemplação Carinhosa da Angústia, 2ª edição, Lisboa: Guimarães Editora, 2000, p. 94. 

Sunday, June 2, 2019

GARRULA AVIS



"Ave gárrula, voa em círculos sinuosos ou voltas recurvadas, e é muito hábil a construir o ninho e a criar os filhos, tendo também como que uma certa premonição, porque abandona e evita casas que vão cair."

Livro das Aves, ed. Maria Isabel Rebelo Gonçalves, Lisboa: ed. Colibri, 1999, p. 131. 

Saturday, June 1, 2019

PUELLA



"Pássaro, delícia da minha miúda, 
com quem brinca, que aperta contra o seio, 
a quem dá a ponta do dedo, 
e provoca valentes bicadas, 
quando, ardendo de desejo por mim, 
lhe agrada divertir-se com não sei o quê de querido
como pequeno consolo para a sua dor, 
julgo, para assim acalmar o ardor intenso - 
pudesse eu, como ele, contigo brincar
e do coração afastar os tristes cuidados."


Catulo, Carmina, II, trad. José Pedro Moreira e André Simões, Lisboa: Cotovia, 2012, p. 30.