Friday, March 31, 2017
EM SIMULACRO
"Ei-lo que voa sobre a Babilónia.
O avião sagrado feito das memórias,
rebites de profetas,
carlinga cheia de iluminados
que confundem as pistas do deserto.
Deixa no ar um rasto de amargura,
um jacto que perdura
e dizem ser dos ares um conspurcante.
Quem há que te levante e guie
por entre nuvens grossas e restos
de cinzeiro?
Sôbolos rios da urbe que trespassa os mares
televisiva e viva a confusão campeia.
Cadelas são micróbios que o teu óculo
alcança. Frenética é a dança.
Amor já rarefeito, peso de mosca ou vida
saber de micro ou macro
e tudo é sobre tudo em simulacro.
Caiu, caiu a grande Babilónia
com violência será precipitada.
Percorres o silêncio muito acima do som,
as coisas ditas já e já desditas,
ave do espírito cansado de ser santo
aonde aterrarás?"
Armando Silva Carvalho, Alexandre Bissexto, Lisboa: Editorial Presença, 1983, p. 83.
Tuesday, March 28, 2017
MARUJO
"A água quente lembra-me todas as manhãs
que não tenho mais nada vivo ao pé de mim."
Yorgos Seferis, Poemas Escolhidos, trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, Lisboa: Relógio d'Água, 1993, p. 77.
Monday, March 27, 2017
TRANZIDO
"Pretendo morrer - respondeu ela -, se não me restituís o vosso coração sem o qual me é impossível viver.
- Pede-me antes a vida, infiel! - retorqui eu derramando também lágrimas que fazia esforços por conter. -, pede-me a vida que é a única coisa que me resta para sacrificar-te, porque o meu coração nunca deixou de ser teu.
Mal acabei estas palavras, ergueu-se num arrebatamento para me beijar. Encheu-me de mil ardentes carinhos. Chamou-me todos os nomes que o amor inventa para exprimir a mais viva ternura. Eu respondia a isso ainda com certa languidez. Que salto, com efeito, da situação tranquila em que me encontrava e os movimentos tumultuosos que sentia renascerem. Tremia como sucede quando nos encontramos numa paragem remota, como que sentindo-nos transportado a um novo arranjo das coisas, onde se fica tranzido com secreto horror do qual se não sai senão depois de se ter examinado muito tempo todos os lugares vizinhos."
Sunday, March 26, 2017
PARCA
"- Por muitos anos e bons... Então vossemecê de quem é filha, ainda que eu seja confiada?
- Meus pais ceifou-os a dura fouce da parca.
- A Parca? Não conheço essa senhora. Sua mãe chama-se a Sr.ª Parca?
- Não, senhora - atalhou Rosa, porque a sua amiga não podia responder, sufocando com uma gargalhada. - A mãe desta menina, e também o pai, morreram já.
- Ah!, sim? Pois Deus lhes fale na alma e eles abençoem no Céu, que é bem galantinha... Porque não vai ser freira, minha menina?
- As almas livres não querem ferros. Umas nascem para o culto dos templos, outras vêem o altar de Deus na natureza.
- Ela que diz? - perguntou a velha a Rosa.
- Diz que não nasceu para freira."
Camilo Castelo Branco, A Filha do Arcediago, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1977, p. 76.
Saturday, March 25, 2017
PERANTE
(https://www.nationalgallery.org.uk/paintings/hans-holbein-the-younger-the-ambassadors) |
Encaminham-se, os dois, para o Sol da Amizade, no retrato.
A bússola, o relógio de Sol, o bandolim, as coisas perturbantes se juntadas,
Dizem a Jean e a Georges
Que este é o momento
De unirem suas vidas.
O rico e juvenil Embaixador de França
Tem por amigo um padre que o estima. São altos os desígnios de Deus
- E ninguém sabe
O que, dia adiante, lhes acontecerá.
Porém firmes estão perante a verdade. No senhoril olhar
Não há pavor nem tédio. Sabem-no bem, de Selve e Dinteville,
Que da vida merecem do dom da gravidade.
E, nos braços que encostam na chaminé recheada
De estranhos e simbólicos sinais do século XV,
- É do futuro que os ama e eles amam,
É do futuro, sabem-no eles, que se trata.
De um para o outro, de estanha comoção escondida,
Sereno, passa o fio da eternidade.
Porque, em dia austero jamais segundo,
Os dois, Jean e Georges, pousaram para nós.
Juntos, unidos, pela Sua Amizade."
Raul de Carvalho, Elsinore, Porto: Brasília Editora, 1980, pp. 49-50.
Thursday, March 23, 2017
LECTIO DIVINA
" - Eu não tenho lido nada... Em casa do tal amigo de meu pai não havia livro nenhum. O que me lá deram foram as Horas Marianas e a Alma Convertida.
- Olha que brutos!... Deixa estar, que te hei-de contar a história do Cavalheiro Faublas, que é de morrer a gente com o riso. A Sr.ª Regente pôs-se um dia à escuta, quando a Maria Peixoto lia uma passagem, e disse uma rapariga que ela estava a rir-se; mas, depois, entrou com as cangalhas espetadas no grande nariz, perguntando que livro era aquele. A Peixoto disse-lhe que era a vida da Gloriosa Santa Maria Madalena Virgem, e a regente disse que Santa Maria Madalena não era virgem. «Então é mártir», teimou a Peixoto. «Nem mártir, nem confessora», replicou a regente, e levou-nos o livro, que, pelos modos, lhe traduz hoje o padre capelão, valha a verdade."
Camilo Castelo Branco, A Filha do Arcediago, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1977, p. 42.
Wednesday, March 22, 2017
A UNIDADE
"E assim harmonizaste tudo o que é nobre com o que é vil, numa só unidade,
de modo a originar uma Palavra eterna de tudo,
a que fogem aqueles dos mortais que são inferiores,
insensatos, sempre a almejar a posse do bem,
sem verem nem atenderem à lei universal do deus,
em cuja obediência seriam connosco felizes."
Cleantes, "Hino a Zeus", in Hélade - antologia da cultura grega, trad. e org. Maria Helena da Rocha Pereira, 5ª ed., Coimbra: 1990, pp. 444-445.
Tuesday, March 21, 2017
DIA-POESIA, ATENA
"Óleo nos membros,
talvez um cheiro rançoso
como aqui no moinho de azeite
da pequena igreja
nos poros grossos
da pedra parada.
Óleo nos cabelos
coroados de corda,
talvez com outros perfumes também
que não conhecemos
pobres e ricos
e pequeninas estátuas nos dedos
oferecendo seios pequenos.
Óleo no sol;
assustaram-se as folhas
quando o estrangeiro parou
e ficou pesado o silêncio
entre os joelhos.
Caíram as moedas;
«Invoco a deusa em ti...»
Óleo nos ombros
e na cintura que vergou
tornozelos pardos na relva,
e esta ferida no sol
enquanto tocavam vésperas
enquanto eu falava no adro
com um gebo."
Yorgos Seferis, Poemas Escolhidos, trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, Lisboa: Relógio d'Água, 1993, pp. 121;123.
Monday, March 20, 2017
PRIMAVERA SEM BOTTICELLI
"- Minha querida Gladys, eu não me atreveria a mudar os vossos nomes por nada deste mundo. São ambos perfeitos. Estava a pensar principalmente em flores. Ontem apanhei uma orquídea para pôr na lapela. Era uma coisa linda e salpicada, tão eficaz como os sete pecados mortais. Num momento de insensatez, perguntei a um dos jardineiros como se chamava. Informou-me que era um espécime de Robinsoniana, ou qualquer coisa medonha do género. É uma triste verdade, mas perdemos a faculdade de dar belos nomes às coisas. Os nomes são tudo na vida. Eu nunca discuto com ações. A única disputa é com as palavras. É por isso que odeio o realismo vulgar na literatura. Um homem que chame pá a uma pá deveria ser obrigado a usar uma. É a única coisa para que tem vocação.
- Nesse caso, o que é que te devemos chamar, Harry? - perguntou ela.
- O seu nome é Príncipe Paradoxo - disse Dorian."
Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray, trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Relógio D'Água, 1998, p. 241.
Sunday, March 19, 2017
DÚVIDA
"Pouco haveria a esperar de quem tinha a saúde, a paixão e agora a memória. A derrocada final parecia não estar longe. No entanto, em 1883, Camilo dizia a Freitas Fortuna: «Sossegue: eu tenho medo de mais para ser ateu. Voltaire diz algures que a fé é uma dúvida que se submete. Não será muito rigorosa a definição, mas mais por aqui mais por acolá vem a dar nisso. Não tenho razões ignoradas por Voltaire para não me submeter.»"
Maria Amélia Campos, Ana, a Lúcida: biografia de Ana Plácido, Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 2008, p. 274.
Saturday, March 18, 2017
ENSINO
"Deu-me a entender que ia ensinar-me o idioma e que começaríamos imediatamente. Isto alegrou-me muitíssimo, não só por me ser mais cómodo entender e ser entendido, como ainda por pensar que seria muito estranho quererem as autoridades ensinar-me a sua língua se tivessem a intenção de me entregar a algum cruel destino."
Samuel Butler, Erewhon, trad. Franco de Sousa, Lisboa: Livros do Brasil, 2007, p. 63.
Friday, March 17, 2017
VIAJÁVAMOS
"O anjo
há três anos atentos o esperávamos
olhando muito perto
os pinheiros a rebentação e as estrelas.
Unindo o gume do arado ou a quilha do barco
procurávamos encontrar de novo a primeira semente
para que recomeçasse o drama antiquíssimo.
Voltámos quebrados a nossas casas
com membros lassos, com a boca decrépita
pelo sabor da ferrugem e da ressalga.
Quando despertámos viajámos para norte, alheios
afundados dentro de névoas das asas imaculadas
dos cisnes que nos feriam.
Nas noites de inverno enlouqueciam-nos o vento forte do
levante
nos verões perdíamo-nos dentro da agonia do dia que
não conseguia expirar.
Trouxemos connosco
estes relevos de uma arte humilde."
Yorgos Seferis, Poemas Escolhidos, trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, Lisboa: Relógio d'Água, 1993, p. 23.
Thursday, March 16, 2017
AS COISAS DESTE MUNDO
"Eu baixara a cabeça e olhava para as mãos abertas, pousadas nos joelhos.
- Isso passa-te! - continuou ele. - Passa-te, e muito mais depressa do que possas supor. Claro que lamento: imagino o que sentes neste momento. Mas também te invejo um bocadinho, sabes? Na vida, para se perceber, mas perceber verdadeiramente, como são as coisas deste mundo, deve-se morrer pelo menos uma vez. E então, uma vez que é essa a lei, o melhor é morrer quando ainda se é novo, quando se tem ainda tempo diante de si, para se aguentar no balanço e ressuscitar... Perceber, quando já se é velho, é muito desagradável. Que se pode fazer? Não há tempo para voltar a partir do zero, e a nossa geração já sofreu um tal número de encontrões!... De qualquer modo, se Deus quiser, tu ainda é jovem. Dentro de alguns meses, verás, nem te parecerá verdade ter atravessado tudo isso. Talvez até te sintas satisfeito. Sentir-te-ás mais rico, não sei... mais maduro...
- Esperemos! - murmurei."
Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, trad. Egito Gonçalves, Lisboa: Quetzal, 2010, pp. 300-301.
Wednesday, March 15, 2017
O TRABALHO
"Respondendo-lhe assim falou o astucioso Ulisses:
«Não digas nada. Não penses agora. Não faças perguntas.
Assim actuam os deuses que o Olimpo detêm.»"
Homero, Odisseia, XIX, 41-43, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Biblioteca Editores Independentes/Cotovia, 2010 (reimpr.), p. 308.
Tuesday, March 14, 2017
LUZ CLARA
"Nenhum mal se perdeu,
Nenhum bem foi em vão,
À luz clara tudo arde
Mas não pode ser só isto."
Arsenii Tarkovskii, «8 ícones», trad. Paulo da Costa Domingos (vrs. ingl.), Lisboa: Assírio & Alvim, 1987, p. 43.
Monday, March 13, 2017
ANTERIOR
"Sem memória esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto. Perde-se a vida anterior. E a interior, bem entendido, porque sem referências do passado morrem os afetos e os laços sentimentais. E a noção do tempo que relaciona das imagens do passado e que lhes dá a luz e o tom que as datam e as tornam significantes, também isso. Verdade, também isso se perde porque a memória, aprendi por mim, é indispensável para que o tempo não só possa ser medido como sentido."
José Cardoso Pires, De Profundis, Valsa Lenta, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, p. 31.
Sunday, March 12, 2017
A ENTRADA
"Era ritual, de cada vez, parar diante de uma avantajada ameixoeira, de vasta ramagem e tronco poderoso como um carvalho: a sua predilecta. «Il brógn sèrbi», as ameixas ásperas, que aquela árvore dava - dizia-me ela - pareciam-lhe extraordinárias, desde pequena. Nessa altura, preferia-as a qualquer bombom da Lindt. Depois, pelos dezasseis anos, tinha deixado de repente de gostar delas, já não lhe agradavam e agora preferia, às «brogne», os bombons Lindt e sem ser Lindt (mas os amargos, apenas os amargos!). Assim, as maçãs eram «i pum»; os figos, «i figh»; os damascos, «i mugnágh», os pêssegos «i perságh». Só em dialecto se podia falar daquelas coisas. Só a palavra dialectal lhe permitia, ao citar árvores e frutos, dobrar os lábios na careta que o coração lhe sugeria e que ficava a meio caminho entre a ternura e o desinteresse."
Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, trad. Egito Gonçalves, Lisboa: Quetzal, 2010, p. 120.
Saturday, March 11, 2017
ESTIMA
" - Papá - perguntou-me ainda Giannina -, porque é que os túmulos antigos entristecem menos do que os novos?
Um grupo mais numeroso do que os outros, que ocupava uma boa parte da calçada cantando em coro e sem mostrar intenções de ceder a passagem, obrigou o automóvel quase a parar. O interpelado engrenou a segunda.
- Isso é compreensível - respondeu. - Os mortos recentes estão mais próximos de nós e precisamente por isso estimamo-los mais. Repara, os Etruscos estão mortos há tanto tempo - estava novamente a contar uma fábula - que é como se nunca tivessem vivido, como se tivessem estado sempre mortos."
Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, trad. Egito Gonçalves, Lisboa: Quetzal, 2010, p. 12.
Friday, March 10, 2017
BENEFÍCIO
"A primavera é tão boa como o inverno. A alma deve robustecer-se e endurecer-se, como deve expandir-se e folgar. Respeita qualquer nova necessidade que surja no teu coração: algo se revelou e a voz da natureza acorda-te numa nova esfera da existência; é a larva que estremece e pressente a borboleta. Não sufoques os teus suspiros, não devores as tuas lágrimas, que vêm anunciar-te uma grandeza desconhecida, ou um tesouro esquecido, ou uma virtude que se afoga e grita por socorro. A dor é benéfica, porque faz conhecer o bem; o sonho é salutar, porque pressagia uma ralidade mais bela; a aspiração é divina, porque profetiza o infinito, e o infinito é a Maia, a forma risonha ou sombria de Deus."
Henri-Frédéric Amiel, Diário Íntimo, vol. I, trad. Teresa Leitão de Barros, Porto:Livraria Tavares Martins, 1944, p. 11.
Thursday, March 9, 2017
ABYSSUS
"O precipício fascinante, ferida desde o princípio dos tempos, cicatriz."
emma santos, O Teatro, trad. Manuel João Gomes, Lisboa: Assírio & Alvim, 1981, p. 13.
Wednesday, March 8, 2017
RODOPIO
"Então, Faetonte, devorando-lhe as chamas os cabelos
avermelhados, cai rodopiando a pique, e deixa pelos ares
um longo rasto, tal como por vezes uma estrela pode
parecer estar a cair lá do céu limpo, embora não caia."
Ovídio, Metamorfoses, II, 319-322, 2ª ed., trad. Paulo Farmhouse Alberto, Lisboa: Cotovia, 2010, p. 67.
Tuesday, March 7, 2017
PUNIÇÃO
"Magoado pela perda do vate dos seus rituais sagrados,
de imediato prendeu nos bosques, com retorcidas raízes,
todas as mulheres Edonas que tinham assistido ao crime.
No local onde cada uma chegara na fuga, esticou os dedos
dos pés e espetou as suas extremidades na sólida terra."
Ovídio, Metamorfoses, XI, 68-72, 2ª ed., trad. Paulo Farmhouse Alberto, Lisboa: Cotovia, 2010, p. 269.
Monday, March 6, 2017
CONCURSO
"Também esta afirmação torna manifesto que, na verdade, nada sabemos de coisa alguma, mas, para todos os homens, a opinião é um concurso"
Demócrito, frg. 7 Diels, in Hélade - antologia da cultura grega, trad. e org. Maria Helena da Rocha Pereira, 5ª ed., Coimbra: 1990, p. 235.
Sunday, March 5, 2017
ALMAS
"Ela tinha razão. Não tínhamos qualquer afinidade com aqueles alemães lá em baixo, a marchar, ou com o morto que jazia no caixão, ou com as palavras que figuravam nos estandartes. Qualquer dia, teremos cortado todos os laços com noventa e nove por cento da população mundial, com os homens e as mulheres que ganham a vida, que asseguram a sua existência, que lutam pelo futuro dos seus filhos. Talvez na Idade Média as pessoas se sentissem assim, quando acreditavam que tinham vendido a alma ao diabo. É uma sensação curiosa, divertida e não desagradável: mas, ao mesmo tempo, sinto um certo medo. Sim, digo para com os meus botões, desta vez é que foi. Estou perdido."
Christopher Isherwood, Adeus a Berlim, trad. Maria Filomena Duarte, Lisboa: Quetzal, 2011, p. 70.
Saturday, March 4, 2017
DOS CONSELHOS
"Com os órgãos sexuais manchados de sémen, dentro de casa,
não deves aparecer junto à lareira; evita isso.
Não semeies, ao regressares de funeral, de mau augúrio,
a tua descendência, mas depois de um festim aos imortais.
Nunca urines na foz dos rios que deslizam para o mar,
nem nas fontes deves urinar, mas de todo evitar tal coisa;
nem deves defecar nunca; tal não é vantajoso para ti.
Nunca das águas dos rios de bela corrente e fluxo perene
passes a pé, antes de dirigir preces virado para as belas correntes,
com as mãos lavadas na água apetecível e transparente."
Hesíodo, Os Trabalhos e Dias,733-739, trad. Ana Elias Pinheiro e José Ribeiro Ferreira, 2ª ed., Lisboa: IN-CM, 2014, p.
Friday, March 3, 2017
O ABERTO
"Sou uma máquina fotográfica com o obturador aberto, totalmente passiva, que regista e não pensa. Registo o homem a fazer a barba na janela em frente e a mulher de quimono a lavar a cabeça. Um dia destes, tudo isto terá de ser desenvolvido, cuidadosamente revelado, fixado."
Christopher Isherwood, Adeus a Berlim, trad. Maria Filomena Duarte, Lisboa: Quetzal, 2011, p. 9.
Thursday, March 2, 2017
DOCE CONTENTAMENTO
"Doce contentamento já passado,
em que todo o meu bem já consistia,
quem vos levou de minha companhia
e me deixou de vós tão apartado?
Quem cuidou que se visse neste estado
naquelas breves horas de alegria,
quando minha ventura consentia
que de enganos vivesse meu cuidado?
Fortuna minha foi cruel e dura
aquela, que me causou meu perdimento,
com a qual ninguém pode ter cautela.
Nem se engane nenhua criatura:
que não pode nenhum impedimento
fugir do que ordena sua estrela."
Luís de Camões, Lírica Completa, vol. II, ed. Maria de Lourdes Saraiva, 2ª ed., Lisboa: IN-CM, 1994, p. 232.
Wednesday, March 1, 2017
QUIA PULVIS
"As coisas tristíssimas,
o rolomag, o teste de Cooper,
a mole carne tremente entre as coxas,
vão desaparecer quando soar a trombeta.
Levantaremos como deuses,
com a beleza das coisas que nunca pecaram,
como árvores, como pedras,
exatos e dignos de amor.
Quando o anjo passar,
o furacão ardente do seu vôo
vai secar as feridas,
as secreções desviadas dos seus vasos
e as lágrimas.
As cidades restarão silenciosas, sem um veículo:
apenas os pés de seus habitantes
reunidos na praça, à espera de seus nomes."
Adélia Prado, Bagagem, Lisboa: Cotovia, 2002, p. 30.
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