Saturday, June 30, 2018
COMUNIDADE
"Fundava comunidades em sonhos, na carne firme, nos tendões
limpos dos sonhos.
Uma amizade como que Aquiles e Pátroclo
mas sem cavalos,
sem tectos altos, sem
aspectos de glória - amizade apenas
nua, inebriando o mármore,
exercício de aranhas entre a multidão
com a sua linguagem surda,
aberta, alvar, amarfanhada.
O prazer de devassá-la, de retê-la
na boca como água de pétalas,
o gosto espesso da magnólia
à chuva, como no poema.
Em nossa casa, no lugar do vento,
a magnólia crescia."
Andreia C. Faria, Tão Bela como Qualquer Rapaz, s.l.: Língua Morta, 2017, p. 37.
Friday, June 29, 2018
NEGOCIAÇÃO
"- Ai de mim! que me estais pedindo? disse a mulher toda espantada. Eu considerava-vos um santo. Será que fica bem a um padre, a um confessor, fazer tais propostas às suas penitentes?
- Não vos admireis, querida amiga: a santidade não fica alterada com isso, porque reside na nossa própria alma. E o que vos peço só tem a ver com o corpo. Esse corpo tem as suas necessidades, que é permitido satisfazer, desde que se conserve o espírito puro. Não é a alimentação que se ingere que constitui o pecado da gula; é a fantasia de que a revestimos; e o mesmo se dá com as outras necessidades do homem. Se algo deve admirar-vos é o efeito que a vossa beleza produz sobre uma alma que tem o costume de só ver belezas celestiais."
Giovanni Boccaccio, Decameron, vol. II, trad. livre de Joaquim de Macedo, Porto: Edições Sousa & Almeida, 1964, pp. 36-37.
Thursday, June 28, 2018
ACOIMADO
"Que a negra rocha irada o vento seco a role
Nunca há-de parar nem sob pias mãos
Tacteando a semelhança com os males humanos
Como para benzer-lhes algum funesto molde.
Aqui se quase sempre arrulha a brava rola
Este luto irreal aprisiona em tantas
Pregas núbeis o astro prenhe dos amanhãs
De que um só cintilar a multidão aureole.
Quem busca, prosseguindo o solitário impulso
Por vezes aparente do nosso vagabundo -
Verlaine? Ele se esconde entre as ervas, Verlaine
A não surpreender senão num ingénuo acordo
Sem aí beber lábio nem estancar o alento
Um riacho pouco fundo acoimado a morte."
Stéphane Mallarmé, Poesias, trad. José Augusto Seabra, Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, p. 145.
Wednesday, June 27, 2018
DEGRAUS
"Ai! quando outrora tu, inocente, contavas pelos dedos os degraus da escada que ia do nosso monte até à tua casa, quando me mostravas os lugares por onde passeavas e onde te sentavas e me contavas como aí passavas o tempo e por fim me dizias que, agora, era como se também eu sempre lá tivesse estado."
Friedrich Hölderlin, Hipérion ou o Eremita da Grécia, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 1997, p. 87.
Tuesday, June 26, 2018
A UM CANTO
"A casa fechando-se
sobre a vastidão da infância
infiltrações e humidades
entranhando-se
no tempo que te resta
a um canto
a correspondência interrompida
pressupostos inadiáveis
amontoando-se
sob o pulsar irredutível
de uma exigência de infinito"
Luís Falcão, uma exigência de infinito, Lisboa: Artefacto, 2017, p. 71.
ENTRADA
"O universo é apenas uma ideia passageira na mente de Deus - um pensamento bonito e incómodo, sobretudo se se acabou de pagar a «entrada» para comprar uma casa."
Woody Allen, Para acabar de vez com a cultura, trad. Jorge Leitão Ramos, Amadora: Livraria Bertrand, 1980, p. 36.
Sunday, June 24, 2018
JOÃO
"Depois, apareceu um homem sob o aspeto de um eremita do deserto, e os patriarcas interpelaram-no:«Quem és tu?» Ele respondeu:«Eu sou João, o último dos profetas; aplanei os caminhos de Deus, preguei a penitência ao povo, para a remissão dos seus pecados. E o Filho de Deus veio até mim, e quando de longe o vi, disse ao povo:«Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.» Baptizei-o com a minha mão, na água do Jordão, e vi o Espírito Santo, em forma de pomba, descer sobre ele, E ouvi a voz de Deus nosso Pai, que dizia:«Este é o meu filho muito amado; nele pus todo o meu enlevo.»
E ele me enviou para o meio de vós também, para vos anunciar que o Filho único de Deus viria aqui para que aquele que crê nele seja salvo e aquele que nele não crê seja condenado. Também vo-lo digo a todos: quando o virdes, adorai-o. Eis os últimos dias em que vos podeis arrepender dos cultos que prestastes aos ídolos no mundo vão cá de cima, e dos pecados que cometestes. Depois, será demasiado tarde."
"Os Atos de Pilatos", 18.1., in Evangelhos Apócrifos, trad. Madalena Cardoso, 2ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, 1999, pp. 180-181.
Saturday, June 23, 2018
ESTIRAR-SE
"Doentia, a primavera expulsou tristemente
O inverno, a estação da arte calma, o lúcido
Inverno, e este meu ser que um sangue morno inunda
De impotência se estira em um bocejo lento.
O meu crânio amolece em crepúsculos brancos
Sob o ferro em tenaz, como um túmulo antigo,
E eu, triste, eis-me a errar pelos campos seguindo
Um sonho belo e vago, entre a seiva estuante,
Depois cedo ao odor das árvores, cansado,
Com a face a cavar uma fossa ao meu sonho,
E mordendo os torrões onde crescem lilases,
Aguardo, a abismar-me, o meu tédio a evolar-se...
- Entretanto o Azul, sobre a sebe e o alvor,
Ri das aves em flor ao sol a chilrear."
Stéphane Mallarmé, Poesias, trad. José Augusto Seabra, Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, p. 49.
Friday, June 22, 2018
APARENTE
"É difícil definir prazer no seu sentido mais elevado, já que a definição implica um certo número de aparentes paradoxos. Pois, devido a uma inexplicável deficiência da harmonia na constituição da natureza humana, existe frequentemente uma relação entre a dor dos elementos inferiores do nosso ser e o prazer dos elementos superiores. A mágoa, o terror, a angústia e o próprio desespero são, muitas vezes, as expressões escolhidas de uma aproximação do supremo bem."
Percy Bysshe Shelley, "Defesa da Poesia", in Poética Romântica Inglesa, org. e trad. Alcinda Pinheiro de Sousa e João Ferreira Duarte, Lisboa: apáginastantas, 1985, p. 153.
Thursday, June 21, 2018
FULVA
" Inerte, tudo arde
Na hora fulva, sem a razão revelar
De tanto hímen assim ser o alvo desejado:
Despertaria então para o primeiro ardor,
Erecto e só, à luz fluindo na memória,
Lírios! e um dentre vós para a ingenuidade."
Stéphane Mallarmé, Poesias, trad. José Augusto Seabra, Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, p. 91.
Wednesday, June 20, 2018
ESPUMA
"Vamos nas ondas como frases,
somando à espuma os seus nomes
de filacteras ou de colar sonoro"
Paulo Teixeira, Orbe, Lisboa: Editorial Caminho, 2005, p. 34.
Tuesday, June 19, 2018
DIVINO
"Há qualquer coisa de divino aqui
Uma brisa que vem não sei de aonde
Um instinto de paz e de alegria
Um espaço vasto majestoso e simples
Uma doçura nas gentes
sobretudo
No seu olhar tranquilo
Uma lentidão animal suave
Poderoso e belo
Aqui
de muito antiga
ergue-se
Uma brisa
de luz doirada
É tão antiga
Que nos murmura
Aos ouvidos mortais e encantados:
Paraíso
paraíso"
Alberto de Lacerda, Meio-Dia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1988, p. 17.
TRANSBORDANTE
"O verde é muito verde
A luz é mais clara
Do que nunca
As recordações são do tamanho
Do coração transbordante
O calor é Apolo
Perpendicular à terra
Os pássaros
os esquilos
Atravessam a imaginação numa diagonal sem fim"
Alberto de Lacerda, Meio-Dia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1988, p. 15.
MALEZA
"Aquella ruina apenaba el ánimo, oprimia el corazón. Parecía que del casuco abandonado fuesen salir fantasmas en cuanto cerrase la noche; que de su interior iban a partir gritos de personas asesinadas; que toda aquella maleza era un sudario ocultando debajo de él centenares de cadáveres."
Vicente Blasco Ibáñez, La Barraca, Barcelona: Círculo de Lectores, 1976, p. 21.
Sunday, June 17, 2018
MEMENTO
"Que de grandes palácios, que de belas mansões, que de magníficas residências, cheias outrora de criadagem, de senhores e de damas, não ficaram desertas dum dia para o outro, vendo desaparecer até ao mais humilde servidor! Que de famílias ilustres, que de propriedades enormes, que de fortunas célebres, não ficaram privadas de legítimos herdeiros! Que de valorosos senhores, de belas damas e de graciosos jovens, a quem não somente a Faculdade, mas Galiano, Hipócretes e até Esculápio teriam passado atestado de saúde robusta, não tomaram a refeição da manhã com seus pais, camaradas ou amigos e, vinda a noite, se sentaram à cela, no outro mundo, com os seus maiores!"
Giovanni Bocaccio, Decameron, vol I, trad. livre de Joaquim de Macedo, Porto: Edições Sousa & Almeida, 1964, p. 23.
RADIAÇÃO
"Gozemos, na alegria e no recreio, todo o prazer que não transponha os limites da razão. Ali poderemos escutar o chilreio das aves, olhar as planícies e as colinas cobrirem-se de verdes folhagens. Os campos de trigo ondulam como o mar. Existem árvores de mil espécies, e o céu, apesar de, por vezes, se zangar, não nos recusará, por isso, a radiação da beleza eterna cujo espectáculo é mais sedutor que o dos muros desertos da nossa cidade."
Giovanni Bocaccio, Decameron, vol I, trad. livre de Joaquim de Macedo, Porto: Edições Sousa & Almeida, 1964, p. 28.
Thursday, June 14, 2018
ALTA AGONIA
"Alta agonia é ser, difícil prova:
entre metamorfoses superar-se
e - essência viva em pureza suprema -
despir os sortilégios, brumas, mitos.
Alta agonia é esta raiz, pureza
de contingência extrema a abeberar-se
nos mares do Ser pleno, e arrebatada,
fazer-se única em seu lúcido fruto.
Alta agonia é ser: essencial
tarefa humana e sobre-humana graça
de renascermos em solidão vera
e em solidão - dor suportada e glória -
em nossa contingência suportarmos
o peso essencial do amor profundo."
Orides Fontela, Trevo (1969-1988), São Paulo: Duas Cidades, 1988, p. 244.
Wednesday, June 13, 2018
PROMETHEUS
"Nada conheço de mais pobre
Sob o Sol que vós, deuses.
Mal conseguis alimentar
Com tributos de oferendas
E o sopro de orações
A vossa majestade,
E morreríeis à míngua se não
Fossem crianças e pedintes,
Loucos cheios de esperança."
J. W. Goethe, Poesia, trad. João Barrento, Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, p. 22.
Tuesday, June 12, 2018
DAS FICÇÕES
"A perceção fundamental de Espinosa no Livro Primeiro é que a Natureza constitui um todo indivisível, incausado e substancial - na realidade, é o único todo substancial. Fora da Natureza, nada existe, e tudo o que existe é parte da Natureza e é trazido à existência com uma necessidade determinista. Este ser unificado, único, produtivo e necessário é exatamente aquilo que designamos por «Deus». Devido à necessidade inata na Natureza, não há teleologia no Universo. A Natureza não age com quaisquer finalidades e as coisas não existem com objetivos determinados. Não há «causas finais» (para utilizar a habitual expressão aristotélica). Deus não faz «coisas» por amor de mais ninguém. A ordem das coisas apenas deriva das essências divinas com um determinismo inviolável.Toda a conversa acerca dos propósitos de Deus, das suas intenções, objetivos, preferências ou desígnios, não passa de uma ficção antropomórfica."
Monday, June 11, 2018
LUCRECIANA
"Feliz pois aquele que encontrou
Um destino bem à sua medida,
Onde ainda a lembrança
Das viagens e das dores
Docemente sussurra junto à praia segura,
E donde ele possa olhar pra aqui e pra acolá
Até aos limites
Que Deus à nascença
Lhe marcou pra morada."
Hölderlin, Poemas, trad. Paulo Quintela, Lisboa: Relógio D'Água, 1991, p. 379.
Sunday, June 10, 2018
O ABISMO
"Mas dizem os Poetas que para o abismo
O sacro Pai, o teu próprio, outrora
Desterraste e que lá em baixo se chora,
Onde os Indómitos estão justamente antes de ti,
Inocente o deus da idade de ouro há já muito:
Outrora sem custo e maior do que tu, embora
Não tenha ditado nenhum mandamento
E nenhum dos mortais por nome o nomeasse."
Hölderlin, Poemas, trad. Paulo Quintela, Lisboa: Relógio D'Água, 1991, p. 185.
Saturday, June 9, 2018
ABERTA
"A mão aberta já não liga
E o sol desce tão devagar como o último voo das pombas.
Há nos meus olhos dois poços
Na paisagem
Duas estrelas que ferem como rodas dentadas dentro de máquinas
E é noite. No meio do escuro peço
Uma pedra incendiada. Pego-a com ambas as mãos
Levo-a à boca e das chamas bebo
Água"
Daniel Faria, Poesia, ed. Vera Vouga, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 48.
Friday, June 8, 2018
APORTAR
"Ai! desejaria aportar um dia à costa
De Súnion, às tuas colunas, Olympion!,
Perguntar, ali, ainda antes que o vento-norte
Te sepulte a ti também no entulho dos templos"
Hölderlin, Poemas, trad. Paulo Quintela, Lisboa: Relógio D'Água, 1991, p. 141.
Thursday, June 7, 2018
LIBERTAÇÃO (para a memória do poeta Albano Martins)
"E outra vez nascerás, e soltarás a voz emudecida, encarcerada, à hora em que os sinos dobram, não a finados, mas à serena libertação das espécies. E no teu peito farão ninho as cotovias. E o mel, o mel abundante, jorrará das tulhas, trigueiro e loiro e brando como o trigo das colinas."
Albano Martins, "Rodomel rododendro", in Assim são as algas (Poesia 1950-2000), Porto: Campo das Letras, 2000, pp. 208-209.
Tuesday, June 5, 2018
ELES
"Eles são o que nós éramos; são o que devemos tornar a ser. Fomos como eles natureza e a nossa cultura deve reconduzir-nos à natureza pela via da razão e da liberdade. Eles sã portanto, em simultâneo, uma representação da nossa infância perdida, que permanece sempre para nós o mais caro dos bens: daí que eles nos encham de uma certa nostalgia."
Friedrich Schiller, Sobre Poesia Ingénua e Sentimental, trad. Teresa Rodrigues Cadete, Lisboa: IN-CM, 2003, p. 42.
Monday, June 4, 2018
O LUGAR
"Já uma vez te disse que já não preciso nem dos deuses nem dos homens. Sei que o Céu está deserto, despovoado, e que a terra que outrora transbordava da beleza da vida humana se tornou quase um formigueiro. Mas ainda há um lugar onde o antigo Céu e a antiga Terra para mim riem. Em ti esqueço todos os deuses do Céu e todos os homens divinos da terra."
Friedrich Hölderlin, Hipérion ou o Eremita da Grécia, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 1997, p. 116.
Sunday, June 3, 2018
O ENIGMA
"Que importa saber onde nasce a água que corre, se ela não faz senão passar, sempre a mesma e sempre outra? E, de novo, nessa hora, como o pintor florentino, eu pensei no enigma, que nós nunca decifraremos, das almas que murmuram e escapam, surgem e desaparecem, misto de engano e de verdade - como a ilusão da água que canta nas bacias de mármore, beijando e fugindo.
Toda a mentira da vida é, afinal, como o mistério das fontes."
Saturday, June 2, 2018
INTANGÍVEL
"Mas todos este novos prodígios não empalidecerão perante o mais surpreendente, o mais perturbante de todos: aquele que parece finalmente dar ao homem o poder de também ele, por sua vez, criar, materializando o espectro impalpável que desaparece assim que entrevisto, sem deixar uma sombra no vidro do espelho, um estremecimento na água do lago? O homem não terá acreditado que estava, de facto, a criar, quando captou, apreendeu, fixou o intangível, conservando a visão fugaz, o clarão, hoje por ele gravados no mais duro metal?"
Félix Nadar, Quando eu era fotógrafo, trad. Inês Dias, Lisboa: Cotovia, 2017, pp. 15-16.
Friday, June 1, 2018
JOUIR
"Mas o que lhe faltava em graça na conversação, em culto das belas-letras, em requinte de convívio, sobrava-lhe em espontaneidade, em fantasia, em galantaria natural, em sinceridade de temperamento, em juventude e alegria na libertinagem. «Gozar é usar a vida», dizia a duquesa de Choiseul. L'inconduite n'est, en somme, qu'une conduite différente de celle des autres, dizia no outro dia Jehanne d'Orliac.
Paulina Bonaparte tinha o seu temperamento e nunca, com um desplante em que havia, por vezes, qualquer coisa de infantil, na sua soberana e imperial inconsciência, sentiu necessidade de o ocultar. Ignorou sempre a prudência do conselho hipócrita, em que está tanto da moral do século XVIII, que a marquesa de Merteuil dava a Valmont: Jouir du plaisir jusqu'à l'excès et de la bonne reputation jusqu' à la gloire."
Augusto de Castro, As Mulheres e as Cidades, Lisboa: Editorial Verbo, 1971, p. 66.
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