"Uma noite (nunca te cheguei a contar) acordei sufocado, sonhando-me no Inferno. Roncando de aflição, abri os olhos e vi uma forma estranha, vermelha, incandescente, que tanto podia ser a Lua a romper, como o próprio Belzebu a arder em fogo lento. Pulei da cama, aterrado, e só então compreendi que me encontrava na pensão da Lambertin e que o clarão vermelho era o meu fogão esbraseado. Em cima dele, o jarro de esmalte da água quente (que a patroa recusava dar-me às deis da manhã) estava também ao rubro, e enchia o quarto duma fumarada irrespirável, que felizmente me acordara. Abri as janelas de par em par e e ali fiquei tristemente sentado no sofá, embrulhado num cobertor de algodão, tossindo e espirrando no frio da madrugada mais desolada que jamais vi, e maldizendo a minha sorte. Se dessa vez não morri, Léah, é que me estavam reservados outros e bem maiores castigos. Em todo o caso, so hoje, a tantos anos de distância, eu saboreio o encanto dessas horas amargas..."
José Rodrigues Miguéis, "Léah", in Léah e outras histórias, 4.ª ed., Lisboa: Estúdios Cor, 1968, pp. 12-13.
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